quarta-feira, setembro 11, 2019

Estalo de Vieira

En français

Estava a lembrar-me do meu casamento... já lá se vão 20 anos (1). O Léo havia convidado o pai dele para ser seu padrinho; aqui é só um e não é chamado de padrinho, é testemunha mesmo. O pai dele simplesmente não compareceu à igreja. Até hoje não sei por que razão. Talvez pensasse que a coisa não era tão séria assim. Após esperar um certo tempo, o Léo decidiu chamar seu amigo, René, para substituí-lo. Foi uma lástima, pois ficamos o tempo todo preocupados com o que poderia ter acontecido ao pai. Não foi a primeira nem a última vez que vi quão bom filho o Léo é: não demorou mais que alguns segundos para perdoá-lo, quando o viu chegar para o méchoui “chez nous”, após a cerimônia. Finalmente, tudo correu bem.
Com essas lembranças, veio uma espécie de “estalo de Vieira”, sem barulho... Ufa! Meu marido não teve o pai dele como testemunha; em compensação, sem saber, teve o meu, pois escolheu um de seus melhores amigos, cujo sobrenome é nada mais, nada menos do que YVON, que é o nome do meu pai! Assim, ele teve duas testemunhas formidáveis. Eis aí o que meu coração compreendeu hoje, depois de tantos anos. Na linguagem moderna, eu poderia dizer que "a ficha caiu".
Foi também o René Yvon que nos indicou a Paróquia de Saint-Pie, onde ele conhecia o vigário, para facilitar as coisas. Eu ainda não era fluente em francês, como poderia participar do Curso de Noivos, exigido pela Igreja? O padre aceitou o pedido do René e fez uma entrevista conosco, valendo como curso.
Conversávamos, outro dia, meus irmãos e eu, sobre coincidências que aconteceram com o nome do meu pai, as quais interpreto como um sinal da sua presença, uma delicadeza concedida por Deus para nos consolar das nossas misérias, nesse mundo em que experimentamos tantas ausências. Com mais este sinal que “estalou” hoje, emergindo da minha memória, sem mais nem menos, resolvi enumerá-los aqui – são dignos de nota.
A primeira “coincidência” de que me lembro foi quando viajamos para a França (2). Em 20 de junho de 1998, fizemos um passeio à Ilha de Ouessant, localizada no limite das águas entre o Canal da Mancha e do Mar de Iroise no Oceano Atlântico, um dos lugares com tráfego de navegação dos mais movimentados do mundo e um dos mais perigosos – é um lugar cheio de histórias que nos remetem às fronteiras da morte. Visitamos um cemitério na ilha, e Léo achou as edificações nos túmulos diferentes dos cemitérios do Canadá. Eu achei muito parecidas com as do Brasil. Enquanto ele procurava nomes de família, eu procurava um túmulo que fosse parecido com o do meu pai, em Belo Horizonte, para mostrar a ele. Nas últimas fileiras, vislumbrei um e, quando me aproximei, vi que estava escrito YVON em maiúsculas e o nome de família em minúsculas. Tive até um sobressalto e emiti um grito abafado, ao que o Léo veio ver o que se passava. Era o único túmulo parecido e tinha o nome do meu pai!
A segunda vez, ou melhor, a terceira – para pôr em ordem cronológica – foi quando eu já morava aqui no Canadá. Da cidade até chegarmos em casa, temos que pegar estrada. Pela via principal, há uma conversão à esquerda (saindo da via de mão dupla), onde já ouvi contar terem acontecido muitos acidentes, incluindo um em que morreu um rapaz que trabalhava no mesmo lugar que eu. Esta morte abalou a todos nós, colegas dele. Fiquei receosa de passar nesse local tão perigoso. Comentei isso com meu irmão, Francisco, e ele, lá do Brasil, pela internet, descobriu um outro caminho, de modo a não precisar fazer a tal virada à esquerda; eu atravessaria a rodovia, numa reta. Quando fui percorrer o caminho indicado por ele, qual não foi a minha surpresa quando vi o nome da rua: YVON, com um trechinho na rua Guilbert, sobrenome da minha sogra. Desde então, só passo por esta rua, para ir para casa, e me sinto protegida por eles.
A quarta vez foi recentemente. No início de agosto, em viagem à Península Gaspesiana, pela “Route des Navigateurs”, vendo as estradas cheias de veículos em direção a algum destino, fiz uma associação de ideias, imaginando todos os que já se foram em sua última viagem – as estradas estão repletas de peregrinos. E, talvez, por estar-se aproximando o Dia dos Pais no Brasil, pensei muito no meu. Levei um susto bom, quando passamos por uma cidadezinha chamada Saint-YVON. Nunca tinha ouvido falar dela, tampouco sabia que havia um santo – outro – com o nome do meu pai. Léo entrou na cidade para tirarmos fotos (3).
Pode ser tudo coincidência, carência por desamparo existencial, sei lá... digam o que quiserem. Penso que não estou abusando de sentimentalismos, pois quatro vezes no decorrer de quarenta anos após a morte do meu pai, não é tanto assim. Devem estar certas aquelas pessoas da nossa antiga vizinhança que nos contavam que "pegavam com Dr. Yvon" em orações, nos momentos de dificuldade, e obtinham bênçãos. 
       Enfim, quero crer que “l’au-delà” é habitado e está muito mais "perto" do que possamos imaginar. Repetindo o que eu disse em outro texto (4): “Fui tomada por uma sensação indescritivelmente boa. Tive a impressão de que esse amor infinito que entrelaça todos, que nos redime de nossos passos sem rumo, tão desacertados, deve poder reconhecer identidades e afinidades. Se há grandiosidade e compreensão de tudo, há de haver magnanimidade para o reconhecimento e partilha de nossas ligações afetivas, mesmo que livre de amarras.
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Dia do médico
Vista de terraço
Rua Rio Doce através do tempo
Yvon Rodrigues Vieira (Wikipedia)

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