terça-feira, março 21, 2017

Vista de terraço


Vista do terraço by Chico Lima
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Já escrevi muito sobre minha mãe, muito pouco sobre o meu pai. Tantas vezes tentei e desisti. Vários tios e primos mais velhos já nos disseram, a nós, os filhos, que não conhecemos o nosso pai em todo o vigor da juventude. Não há dúvida de que isso seja verdade, pois ele se casou com 42 anos. A vantagem que podemos vislumbrar para nós é a de que tenhamos lucrado em maturidade. Pena que foi por pouco tempo, pois ele começou a adoecer quando ainda éramos bem jovens. Mas ele cumpriu sua missão de pai com precisão e extremada dedicação, em plena forma quando mais precisávamos dele para termos uma boa formação.
Não quero me ater longamente a suas qualidades e realizações, pois o ser humano que conheci não era dado a vaidades, não gostava de se exibir. Seria injusta, no entanto, se não mencionasse sua atuação humanitária e científica, ajudando não só sua numerosa família, mas também tantos pobres de um Brasil antigo, indigente, subdesenvolvido, selvagem. E tudo isso sem alarde nem troféu, mas teve a gratidão daqueles a quem socorreu e a admiração de quem com ele conviveu.
Hoje fui impulsionada a escrever, quando visitei virtualmente o terraço da casa de uma amiga, de onde se tem uma ampla vista de montanhas e árvores, com um céu imenso ao inteiro dispor de olhos receptivos a maravilhas, sem nenhum prédio para embaraçar o espetáculo. Meu pai gostava de casas com terraços. Assim ele construiu a nossa.
Ah... São tantas lembranças que afloraram! A harmonia do casal eternamente enamorado, que nos propiciou um ambiente solidamente seguro. O nosso “Google”, nossa enciclopédia, ele sabia tudo. As pesquisas para os trabalhos de escola tinham voz e até desenhavam se preciso fosse. E as leituras e discussões filosófico-literárias de minha irmã mais velha – que desde nova já transbordava de inteligência – que meu pai escutava com paciência de Jó, literalmente já careca de saber aquilo tudo, mas certamente orgulhoso da filha. Quanta coisa aprendi ouvindo as conversas deles!
No que toca à música, tocava um pouco, sim, de violão, piano e violino. Quando se tratava de ouvi-lo tocar violino, não queríamos que terminasse, pois uma vez guardado, o instrumento desaparecia de circulação por muito tempo – porque aquilo não era brinquedo. Violão sobrou até para mim, apesar de não ter talento nenhum para música e de ser bem pequena – o meu violãozinho também era pequeno. Meu pai me ensinou uns acordes menos que básicos, mas que pareciam rebuscados e que, me lembro bem, faziam a assistência dar risada.
Ah! O piano... ele tocava nas raras ocasiões em que as portas da sala de visitas da casa da minha avó eram abertas ao público. Em nossa casa, ele começou a fabricar um, mas nunca acabou.
Os filhos mais velhos conviveram mais tempo com ele ainda bem vigoroso, naturalmente. Ele já começava a ficar cansado, com o passar do tempo. Mesmo assim, meu irmão mais novo se recorda de muita coisa que ele ensinou e relembra sempre de como ele frisava e repetia que todos os seres humanos são iguais. Isso ficou marcado na sua memória. Foram muitos momentos alegres com os filhos menorzinhos também; embevecidos e sem querer largá-lo um só instante, o pai tinha que mandá-los contar de 1 até quanto a circunstância exigisse, para entretê-los, enquanto esperavam que saísse do banheiro.
Uma das maiores dádivas que tivemos no convívio com ele foi ter-nos ensinado e treinado a extrapolar, dentro do inabalável universo da sua fé - um homem de comunhão diária, enquanto teve saúde para ir à igreja por conta própria. Um pequeno exemplo, eu me lembro que, voltando do catecismo na nossa Paróquia, cheia de perguntas sobre aquelas imagens desenhadas de Deus, Adão e Eva no Paraíso, em poucas palavras, ele me sensibilizou ao imponderável, dizendo que não podemos saber como são, que aquelas representações com imagens eram para facilitar o nosso fraco entendimento humano. Ele sabia que as crianças podiam captar ideias de maneira mais livre de amarras que os adultos. Ele não nos poupou e isso foi ótimo.
Meu pai gostava de admirar uma noite estrelada, sobre a laje do primeiro andar da casa, depois do terraço, quando o segundo andar foi construído. Ele nos mostrava as constelações, nos dava noções sobre a imensidão do universo. Assim ele incutiu em mim esta fascinação que tenho, ao olhar para o céu, de sentir a minha pequenez diante do imensurável, de compreender que há o incompreensível.
Penso que uma visão ampla de Céu e Terra é a imagem que melhor representa meu pai, seja no sentido óbvio, seja metaforicamente. É no terraço da minha memória que eu o visualizo, com os olhos voltados para o infinito, os meus nos dele. 
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Yvon Rodrigues Vieira
 Yvon Rodrigues Vieira nasceu e morreu em Belo Horizonte, MG (*23-02-1905 +15-02-1979). Formou-se em Medicina em 1926. Trabalhou no Departamento de Anatomia Patológica da UFMG (entre 1927 e 1936); médico no Instituto de cegos São Rafael; médico do Serviço Público do Estado de Minas Gerais; Co-fundador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Co-fundador da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, professor nas disciplinas de Histologia e Embriologia; professor de Medicina Legal na Faculdade de Direito; Membro do Conselho Diretor da Sociedade Mineira de Cultura, mantenedora das Faculdades Católicas de Minas Gerais; patologista no Laboratório Central do Departamento de Lepra do Estado de Minas Gerais, até o ano de 1963, quando se aposentou.




Algumas referências encontradas na web, para efeito de ilustração:
http://www.medicina.ufmg.br/cememor/wp-content/uploads/sites/51/2016/11/TURMA_1926.pdf          
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http://www.medicina.ufmg.br/apm/sobre/   (ver Histórico)                                                                          ~~~~~~~~~//~~~~~~~~~~~~~                   
http://rmmg.org/artigo/detalhes/566                                                                                                           ~~~~~~~~~//~~~~~~~~~~~~~
http://www.wikiwand.com/pt/Faculdade_de_Ci%C3%AAncias_M%C3%A9dicas_de_Minas_Gerais#/O_primeiro_corpo_docente  (ver em O primeiro corpo docente)
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http://portal.pucminas.br/centrodememoria/documentos/relacao-documentos-transcritos.pdf
 (Página 103, Doc 54)
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http://portal.pucminas.br/centrodememoria/acervos/87.jpg
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http://ila.ilsl.br/pdfs/v16n3a08.pdf
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http://hansen.bvs.ilsl.br/textoc/revistas/brasleprol/1946/pdf/v14n2/v14n2not.pdf  (pág. 1 e 4)                              
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http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=313394&pagfis=115927&url=http://memoria.bn.br/docreader# 
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http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1298924135_ARQUIVO_lepraouhanseniase-anpuhSaoPaulo-LeicyFranciscadaSilva.pdf (onde se lê "reticalocitose", leia-se reticulocitose).
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 https://www.pucminas.br/centrodememoria/documents/inventario-dom-antonio.pdf
( inventário de correspondências recebidas por Dom Antonio dos Santos Cabral, incluindo Carta de Yvon Rodrigues Vieira, em 10/12/1948: aceitação do convite para a Regência da cadeira de Medicina Legal da UCMG)



4 comentários:

  1. Amei! Já tinha ouvido muitas dessas histórias do vovô, mas não todas. É sempre bom ler e ouvir esses casos, e assim poder conhecê-lo um pouquinho mais =)

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    1. Que bom que você gostou, Lulu. Obrigada por ter lido. Beijinhos, Tia Du.

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  2. Amei, estou emocionada... Que lindo, tia Du! Queria muito tê-lo conhecido. Seu texto transmiti toda a delicadeza da vida desse homem gentil e humano. Beijinhos com saudades! Clá

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