sábado, abril 25, 2015

Not made in China



Acho interessante conhecer outras culturas e tenho esta oportunidade aqui no Canadá, que é um país aberto à imigração. Os chineses, por exemplo, estão cada dia mais presentes aqui, o chinês já é a terceira língua mais falada, após o inglês e o francês.

Outro dia, fomos jantar em casa de amigos, uma família harmoniosa, casal e dois filhos pré-adolescentes. Quando nos reunimos, sempre surgem temas que enriquecem a nossa bagagem cultural, devido ao caráter “internacional” dos encontros. Ele e meu marido são canadenses, ela chinesa e eu brasileira.

Assunto é o que não falta, na China é assim, no Brasil é assado, o Canadá gelado... E por aí vai, c’est la vie

O casal se conheceu na China, em uma universidade, mas o nosso amigo não abria mão de morar no Canadá, pois, segundo suas palavras, a liberdade de que desfrutamos aqui é algo que não se troca por nada. Ela cedeu, embora fosse uma professora de sucesso lá, orgulhosa de seu país, do povo e seus costumes. Como diz Adélia Prado, “Mulher é desdobrável”. 

Os filhos nasceram aqui e falam como quebequenses que são, obviamente. Aprenderam chinês com a mãe e conversam com os avós chineses uma vez por semana, pela internet, o que os mantém em dia com a língua e com as origens maternas.

São verdadeiros chinesinhos na aparência, aos nossos olhos, porém não aos olhos dos chineses. E justamente por causa dos olhos, em ambos os pareceres... Bom, há todas as outras características também, não percebo a diferença em relação aos chineses sem mistura.

Não deve ser fácil para uma pessoa viver num lugar onde sua aparência é diferente daquela da maioria das outras. Pensei que isso lhes traria problemas aqui, desde que soube de alguns comentários quando eles ainda eram pouco mais que bebês. E eu tinha razão.

Quando eram pequenos, as pessoas desconhecidas os ouviam falar e diziam:
- Que gracinha, eles falam exatamente como nós, quebequenses.
O mais velho, que estava mais adiantado no chinês, retrucava:
- Eu sei falar chinês.
Imagino que lá dentro da sua cabecinha havia interrogações e exclamações: “Hã? Claro que eu falo como eles, eu também sou quebequense! A língua que faz diferença que eu fale é o chinês!”. 

Certa vez, já faz alguns anos, eu estava no pequeno “shopping” da nossa cidadezinha, quando vieram correndo os dois pequerruchos:
- Maria , Maria[1]! Bonjour!
E entre abraços e beijinhos, muitos - Je t’aime!
São crianças irresistivelmente adoráveis. 

Em seguida, chegou o pai. Enquanto conversávamos, não me lembro, mas provavelmente sobre trivialidades do clima canadense – alguma nevasca, sem dúvida – veio-se juntar a nós uma outra conhecida minha, por coincidência, prima do pai dos meninos. Eles não se viam há muitos anos e ela ainda não conhecia os priminhos. Após todas aquelas considerações de praxe, foram-se embora os três, a mil por hora, como sempre. Fiquei com a minha conhecida, pondo os assuntos em dia. 
E ela me solta esta:
- Não sabia que meu primo tinha adotado chinesinhos.
- Não, não são adotados, é porque a mulher dele é chinesa fui logo me apressando em explicar e desfazer o seu equívoco.

Ela, pelo menos, esperou que a família fosse embora para dizer isso. Mas houve outros episódios semelhantes, mesmo na escola que frequentam, lamentavelmente na presença das crianças e diretamente com elas, conforme nos contaram seus pais. Claro que, sendo o pai louro de olhos azuis, o contraste é grande e pode induzir a pensar em adoção, mas sabe-se muito bem que os traços dos povos asiáticos prevalecem na maioria das vezes.

O resultado disso tudo nós vimos na última vez em que fomos visitá-los. O menino estava usando uma camiseta em que estava escrito: “Not made in China”. Seus pais nos disseram que ele faz questão de ir para a escola com esta camiseta. E a menina não quer mais que a fotografemos. Ela que sempre fez tantas poses sorridentes para a minha câmera, agora não quer mais. Não disse por que razão, mas fiquei matutando: “Uai, por que será? Talvez porque lhe tenham dito que ela é diferente... “

Isso me entristece tanto! Vi essas crianças crescerem e me afeiçoei a elas, pessoinhas tão educadas e gentis... Agora estão com um certo quê de amargura, com problemas de identidade, coisa difícil de lidar. Menos complicado, no entanto, porque não é um problema que se origina na maneira como eles próprios veem o mundo, eles são normais. É uma atitude de outros que lhes causa embaraço. Felizmente, são muito inteligentes e os pais são gente muito lúcida e já estão trabalhando para que a situação não assuma maiores proporções. 

Sei que nas escolas, as próprias crianças, muitas vezes sem maldade, fazem perguntas ou comentários dirigidos àqueles que possuem alguma característica diferente dos outros. Até certo ponto, isso é normal, porque estão aprendendo a conhecer o mundo que as rodeia. Mas, algumas vezes, aprendem com os adultos a fazerem discriminações. 

E essa atitude não se limita ao âmbito doméstico e escolar. O próprio governo canadense, a meu ver, adota um sistema discriminatório quando pretende promover a igualdade de chances no mercado de trabalho. Em muitos casos, principalmente quando se trata de admissão à função pública, o candidato a um emprego deve preencher um formulário no qual, além de todas as perguntas relativas ao Curriculum Vitæ, tem que se classificar no caso de pertencer a uma fatia minoritária da população, marcando a opção que lhe couber segundo a língua materna, cor da pele, origem étnica e sei lá o que mais. Se fosse só pela igualdade de direitos, acho que a melhor conduta seria não perguntar nada disso. Aí sim, todos estariam sendo tratados igualmente, não?

Um desses grupos demográficos é o que eles chamam de “minorias visíveis”, definidas como pessoas outras que não autóctones, que não sejam da raça branca ou que não tenham a pele branca. Neste grupo se enquadram negros, mestiços, chineses, japoneses etc. E os meus amiguinhos, será que mesmo sendo canadenses terão que se enquadrar nessa categoria? Fui ler esta classificação no texto da lei e constatei que sim, eles serão classificados como fazendo parte das minorias visíveis. O critério é aplicado até a segunda geração, isto é, mesmo os nascidos no Canadá, se um dos dois genitores for imigrante.

Na minha opinião, as cores da pele, do cabelo e dos olhos são dados aceitáveis para constar em documentos de identidade, como complemento ao retrato, para não deixar dúvidas, pois é claro que a função de tais documentos é identificar. Mas etiquetar as pessoas conforme sua origem étnica, tipo físico e outros babados, para fins de inserção no mercado de trabalho, convenhamos que é um atraso monumental! Inaceitável num mundo que pretende ser desenvolvido.

Se esse é um procedimento difundido também em outros países, não é de causar surpresa que existam tantos conflitos. O ser humano ainda tem muito que evoluir!


[1] Aqui eu sou chamada de Maria, pronunciado Mariá no Canadá francófono, com a imutável tendência oxítona da língua francesa.
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Publicado também pela KBR Editora Digital:
http://www.kbrdigital.com.br/blog/not-made-in-china/

sábado, abril 18, 2015

Intraduzível


Aviar uma receita só não é coisa relegada a segundo plano, porque as pessoas estão cada vez mais tomando remédios para tudo quanto há... e mesmo para o que não há. Mas tornou-se uma atividade paralela, digamos assim, nas farmácias de hoje em dia, que se transformaram em verdadeiras lojas de departamento. Acha-se de tudo, até mesmo estúdio de fotografia credenciado, com direito a tirar retrato para documentos oficiais.
Com o envelhecimento da população canadense, esses estabelecimentos também se transformaram em ponto de bate-papo para os mais idosos e aposentados, principalmente no final do mês, quando recebem suas pensões. Vem-se tornando cada vez mais frequente vê-los na sala de espera do laboratório da farmácia, aproveitando para pôr as notícias em dia, enquanto aguardam sua receita ser aviada.
                Há muitos itens dos quais a compra é mais vantajosa numa farmácia do que no supermercado. Uma vez ou outra, dou uma passadinha pelo departamento de produtos de higiene pessoal, para procurar por desodorantes como os que eu usava no Brasil, tipo spray sem gás comprimido e que não sejam antiperspirantes; daqueles modelos em que a pressão se faz apertando o próprio frasco ou, quando muito, com aquele tubinho com uma bombinha na tampa, para provocar o esguicho. A procura é quase em vão, pois os desodorantes são quase todos vendidos ou em aerossol, ou em bastões, aqueles detestáveis roll on, ou em cremes e loções.
Faço essa busca há anos e raramente encontro, mas não desisto. Existem algumas poucas marcas que oferecem o produto dentro das minhas exigentes especificações. Quando os vejo nas prateleiras, que é coisa rara, compro mais de um, para ter uma reserva, pois nunca sei se vou achar de novo. Confesso que isso se transformou quase numa obsessão, embora eu leve para o lado do divertimento, como um jogo em que se procura um tesouro escondido.
                Falar de desodorante parece um assunto insignificante e até impróprio, diria minha mãe em voz baixa, imbuída pela recatada discrição que o tema requer para alguém do início do século passado... Mas, desculpem-me, torna-se relevante para quem está com a mala cheia de vazios de sua terra natal, seja por metáfora ou pela realidade da mala vazia de fato, guardada já sem nenhum daqueles produtos trazidos da última viagem ao Brasil.
Reconheço que não deveria sequer pensar nisso, considerando tanta coisa que minha família envia, para satisfazer meus caprichos. O carteiro de nossa cidade já até conhece as embalagens do correio brasileiro. Mesmo se o endereço não estiver certo, os pacotes chegam ao destino – mas vai que o carteiro muda, melhor estar com o endereço escrito direitinho.
Esse negócio de se instalar num outro país depois de adultos, nos faz vivenciar um sem-fim de superações, com inopinadas etapas de adaptação e aprendizado, inimagináveis antes de passar pela experiência. A tal homesickness tem mil e uma formas de se manifestar e, às vezes, nos surpreende, como se não fôssemos os protagonistas da nossa própria história. Nem vou mencionar aquela palavra intraduzível, para não reavivar outros vazios.
É claro que há compensações, e não são poucas;  sempre há vantagens e desvantagens em viver aqui ou lá...
Pensando nessas e outras quimeras, enquanto procurava o meu produto nas prateleiras, escutei uma conversa confusa de um grupo de pessoas, vindo da mesma ala onde eu me encontrava. Olhei discretamente para o lado onde estavam e vi três homens que se alternavam na vã tentativa de explicar, em espanhol, o que queriam comprar. Duas jovens responsáveis pelo atendimento à clientela se debatiam ora em inglês, ora em francês, gestualizando formas de objetos e suas funções, sem sucesso. Realmente em apuros, as atendentes já começavam a falar alto, como se o problema dos rapazes fosse surdez. Eles, sem alterar o tom de voz, pareciam serenos e repetiam as mesmas frases várias vezes, como se pudessem se fazer entender, por força da insistência.
Outros clientes começavam a aparecer de todos os lados, com ares de indagação, ninguém se arriscava a entrar no embate linguístico, que permanecia em empate técnico. Um dos curiosos chegou a lamentar que só sabia falar “Hola”, não seria de grande serventia. Sem demora, veio a farmacêutica, triunfalmente a passos largos, pelo corredor, entre clientes e prateleiras. Ela deve saber espanhol, pensei. E todos aguardavam o desfecho, otimistas como eu.
Não, ela não falava espanhol, e foi aí que se deu o desempate; os três clientes estavam prestes a desistir e ir embora, somente com as parcas mercadorias que já tinham juntado no carrinho de compras.
Mas eu compreendia o que eles diziam, que estava fazendo ali parada? Peguei aquela comichão de tentar ajudar e lá fui eu, um pouco temerosa, praticar meu fraco “portunhol”. Feitas breves apresentações, anunciei a possibilidade de tentar traduzir alguma coisa. Eles eram mexicanos, ainda bem, pois eu acho que têm uma pronúncia mais inteligível. Felizmente, consegui o intento de ajudá-los. Os clientes foram me dizendo o que queriam e eu fui anotando a lista traduzida num papelzinho, não sem passar por alguma mímica, e entreguei às empregadas da farmácia, que não me deixaram ir embora enquanto tudo não ficasse resolvido. Ganhei meu dia por ter feito aquela boa ação.
Gracias, gracias, gracias...
Na primavera, verão e início do outono, período em que os agricultores daqui aceleram sua produção, mexicanos e outros estrangeiros originários de países da América Central são contratados para trabalhar nas fazendas canadenses: são os trabalhadores estrangeiros agrícolas sazonais. Aliás, como de costume, tudo aqui é sazonal. Quando chega o frio, eles partem de volta aos seus países, levando as economias que fizeram. Na curta temporada de calor do Canadá, eles ganham mais dinheiro do que se trabalhassem o ano inteiro onde vivem.
Creio que esta é uma boa estratégia do governo canadense. Pelo menos é a ideia que se tem por aqui: ao mesmo tempo que se garante o crescimento da produção do país, esses outros povos recebem ajuda. Antigamente, eram as famílias dos proprietários que trabalhavam nas fazendas; os filhos eram numerosos e davam conta do recado. Atualmente, falta mão de obra para uma produção agrícola cada vez maior e os empregados sazonais vêm preencher essa lacuna.
Não sei se esse método traz benefícios verdadeiros aos países desses trabalhadores, mas parece que sim, pois cada vez maior número de candidatos se inscreve, com o aval dos governos. Será que é bom mesmo?
Como as aves migratórias, no outono, eles voltam para o sul. Fico imaginando a alegria que sentem quando chegam em seus lares. Com que ansiedade suas famílias devem esperá-los, quanto afeto guardado durante meses! Deve ser uma grande festa, todo ano.
E eu, de volta às minhas quimeras, me lembro de uma conhecida e pragmática curiosidade, de um sul mais longínquo:
- E afinal, achou o desodorante? – cochicha Dona Esther, escondendo parcialmente a boca com a mão.
- Achei, sim, mãezinha. Besitos!

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Publicado também pela KBR Editora Digital em 18 de abril de 2015
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sábado, abril 11, 2015

Saúde!

Publicado também pela KBR Editora Digital
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Mais um médico cubano contratado pelo Programa Mais Médicos,[1] implantado pelo governo do Brasil, foge para Miami. Foi o 40º caso, segundo as notícias; essas fugas já estão se tornando rotina, ninguém mais se surpreende. Desta vez, no final de março 2015, foi uma médica que estava morando em São Paulo com marido e um filho de cinco anos. O governo de Cuba permite que a família dos médicos os visite, mas não pode permanecer no Brasil. Sob ameaças de cassação de seu diploma pelo governo cubano se o marido e o filho não retornassem a Cuba, ela decidiu fugir para não ter que se separar da família.

Além de sofrerem estas e outras tantas restrições absurdas à liberdade, a maior parte do salário que recebem, como todos sabemos, vai diretamente para o governo da Ilha. E o Brasil está, infelizmente, compactuando com mais esse modelo de escravidão, além de estar pouco se importando com a saúde do povo brasileiro, já que não se faz uma avaliação adequada desses médicos pelos órgãos competentes. Parece que o programa visa mais beneficiar o Estado Cubano, e o resto que se dane.

Li um artigo,[2] republicado recentemente em redes sociais, que reacende a discussão sobre a idoneidade do programa “Mais Médicos”, embora o alvo principal do autor seja outro. Um texto muito bem escrito por sinal, defendendo a tese da “meritocracia” como explicação para o suposto conservadorismo da classe média do país. Ele usa, como base para seu raciocínio, a atitude dos médicos brasileiros contra o programa “Mais Médicos”.

Para resumir, o autor não acredita na alegada justificativa de salvaguardar a saúde do povo, e privilegia a hipótese de que o médico brasileiro não aceita que alguém de fora desfrute das mesmas prerrogativas, pois resultam de um percurso difícil pelo qual o profissional brasileiro teve que passar. Ou seja, ele coloca o médico brasileiro como alguém que se julga cheio de méritos. Ora, os médicos estrangeiros também têm seus méritos, também passaram por estudos difíceis. Em todos os países, o curso de medicina é dos mais árduos, e os colegas brasileiros sabem disso.

O problema não é esse. Entre outras coisas, os povos têm suas características próprias, vivem em ambientes diversos, têm doenças que podem variar conforme a geografia, sem esquecer um elemento muito importante, que é a língua que falam.

A certa altura, o artigo diz:
Estudantes de medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros segmentos profissionais.
De fato, o padrão de pensamento médico já principia a ficar diferente desde o início do curso de medicina, porque o estudante começa a ter noção da enorme responsabilidade que é cuidar do bem mais importante para manter o ser humano vivo e funcional: a saúde. Bate-se nessa mesma tecla ao longo de todo o curso. E, à medida que o estudante avança no conhecimento, vai-se conscientizando da gravidade desse compromisso e das normas que terá que seguir para o cumprimento de sua missão.

Essas normas constituem um conjunto de leis e regulamentos que mantêm coesa a classe médica, efetivamente, com o objetivo de observar os princípios da boa prática médica a fim de resguardar a saúde da população.

O pensamento médico é diferente também porque sua atuação é forjada para interferir no estado perecível da condição humana, do qual ele mesmo faz parte; ele recebe uma formação para nadar contra a corrente, isto é, em oposição a essa índole perecível, que é uma coisa muito maior que ele e seu mérito pessoal. O médico luta constantemente para desacelerar essa deterioração natural, nem sempre com sucesso, por mais méritos que tenha.

Em geral, o estudante e o médico compreendem a magnitude dessa problemática ao ponto de enxergarem méritos como algo de menor relevância. A vaidade, quando presente na personalidade de um médico, é característica individual, não adquirida com o exercício da profissão; aquele que é vaidoso, o seria igualmente em qualquer outra área que tivesse estudado ou na qual tivesse trabalhado.

Portanto, não me parece ser pela “meritocracia” explicada no artigo que os médicos são contra o programa “Mais Médicos”, da maneira como foi implantado. Não é porque tiveram que “estudar muito”, como ele diz, para conseguir entrar na universidade, num dos cursos mais difíceis; não é porque é um curso “longo e exigente”, segundo suas palavras.

Por que a insistência da preocupação com a revalidação do diploma estrangeiro? O corpo humano se deteriora de maneira diferente em cada parte do planeta, estando sujeito, entre outras coisas, às condições climáticas e ao ambiente em que vive. As doenças, os doentes, as linguagens são diversas. Por isso, é preciso uma adaptação da atitude médica, quando se muda de um lugar para outro. É exatamente por se ter consciência de que não é possível gozar de todos os méritos, que se torna evidente a necessidade de estudar mais e se submeter a reavaliações quando as circunstâncias mudam.

Esse padrão de pensamento não é exclusivamente brasileiro. Em todos os países, os médicos recebem esse tipo de formação. E existem órgãos que se provêem dos métodos necessários para fiscalizar e regulamentar a prática médica, com o intuito de garantir a qualidade do atendimento ao povo. Esses órgãos é que estão capacitados para dar a permissão de exercer a profissão, se o candidato se mostrar apto para tal: no Brasil, são os Conselhos Regionais de Medicina e o Conselho Federal de Medicina.

Para dar um exemplo mais esclarecedor: se um médico canadense quisesse praticar no Brasil em contato direto com a população, teria que saber falar muito bem o português e fazer uma atualização de seus conhecimentos, por exemplo, na área da Medicina Tropical. E teria que passar por uma avaliação para ser confirmada ou não a sua aptidão para cuidar da saúde da população brasileira, com suas peculiaridades, que são tão diferentes das canadenses. Um médico que tenha cursado medicina e sempre vivido no Canadá, não estudou a Esquistossomose ou a Doença de Chagas como são estudadas no Brasil, só para citar alguns exemplos. Além disso, ele nunca terá visto um caso na sua prática, exceto se tiver atendido algum paciente originário dos trópicos, que tenha uma dessas doenças. Isso seria muito difícil acontecer, pois para um estrangeiro vir morar no Canadá, ele passa por exames médicos completos e, se for detectada alguma doença, na maioria dos casos o indivíduo não é admitido no país.

Já que estou falando do Canadá, apesar da penúria de médicos na Província do Quebec, que vem de longa data, não se admite aqui um programa do tipo “Mais Médicos”. Muitas campanhas já foram feitas para atrair profissionais estrangeiros, preferencialmente francófonos, sem no entanto mudar os severos critérios de admissão. Os órgãos que regulamentam a profissão e resguardam a qualidade do atendimento à população continuam com o mesmo rigor.

É também compreensível a preferência dada aos francófonos, pois a população do Quebec é majoritariamente francófona, e o médico tem que conhecer a língua que o paciente fala. Não basta o conhecimento básico, ele tem que poder identificar todas as nuances do linguajar, pois do diálogo entre médico e paciente, decorre grande parte do diagnóstico, até mesmo sutilezas do vocabulário podem sugerir interpretações diferentes dos sintomas. Além disso, é imprescindível que ele se faça entender adequadamente.

Concordo plenamente com o fato de que o médico, do país ou estrangeiro, tenha que passar por avaliações rigorosas a fim de obter a permissão para exercer a profissão. É por esta razão que continuo sendo contra o programa “Mais Médicos” implantado pelo governo brasileiro.

Espero que não haja consequências graves para o povo em decorrência desse programa.

[1] http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/acoes-e-programas/mais-medicos

[2] http://www.materiaincognita.com.br/a-meritocracia-na-raiz-do-conservadorismo-da-nossa-classe-media/#axzz3VtZwA11i

sábado, abril 04, 2015

Em busca da lucidez

Crônica também publicada pela KBR Editora
http://www.kbrdigital.com.br/blog/em-busca-da-lucidez/



Tenho acompanhado o drama brasileiro tão atentamente pelas notícias dos jornais e pelas redes sociais, que estou me sentindo in loco. Num certo momento, vi o Brasil ficar praticamente dividido em dois: os que estavam do lado do governo eleito em 2014 e os que estavam contra. Ofensas mútuas, chacotas, vitupérios cruzaram o território nacional em todas as direções, como flechas envenenadas que chegaram a estremecer amizades. O país parecia uma grande família em conflito e estresse. Sofri muito com isso, tive uma “Quaresma” prolongada… assez, merci.

Enquanto isso, os depoimentos vomitados pelos mais que premiados delatores continuam revelando a lama em que estão atolados políticos, empresários, governos e funcionários. E novas operações de investigação estão descobrindo mais falcatruas, que parecem não ter fim. Um escândalo ainda não acabou de ser resolvido e outros já fazem manchete nos jornais.

Com isso, parece que a população entrou num processo semelhante a um ato de contrição, talvez algo como uma penitência, ou quem sabe, uma terapia familiar —abriram-se as cortinas para um segundo ato. Provavelmente atordoadas pela constatação do envolvimento de tanta gente em corrupção — seja pela direita, pelo centro, pela esquerda, no presente ou no passado — muitas pessoas estão concluindo, intempestivamente, que a contaminação é geral. Estão dizendo que todos os brasileiros nutrem o germe da degradação moral, com atitudes comprometedoras que já começam a brotar na interação entre pais e filhos e que se refletem na vida adulta. Li vários textos fazendo esse tipo de acusação, por vezes com conteúdo autopunitivo mesmo: os dardos agora se voltaram contra a brasilidade como um todo.

Além de injustificada e difamatória, enquanto atribuída ao povo de forma generalizada, acho essa conclusão nefasta, pois, ao colocar a atitude corrompida como regra geral, serve sordidamente para atenuar a culpa daqueles legalmente acusados.

Acredito que o autoexame seja um processo válido e de utilidade em muitos casos. Mas quando se trata da análise de um povo, prefiro deixar estudo e conclusões, para que sejam de algum proveito, aos estudiosos de Antropologia, Sociologia, whatever, com especialização na pesquisa sobre esse mesmo povo. No meu entender, o assunto é muito complexo, não basta fazer parte dessa população para dar diagnósticos e prognósticos.

Por curiosidade, fiz uma busca na internet por “percentuais de honestidade do povo”, achando que não encontraria nada. Pois não é que achei? Já foram feitas várias pesquisas em várias cidades do mundo, em forma de testes, e os resultados nas cidades brasileiras não foram dos piores. Mas não acredito na validade desses trabalhos, me pareceram superficiais.

Não conheço percentuais fidedignos de “honestidade do povo” e imagino que deva ser muito difícil avaliar esse parâmetro. Mas há fortes indícios de que ela ainda exista no país. Apesar de não ser assunto da minha área de pesquisa, posso afirmar que, felizmente, ainda há muitos brasileiros que têm dignidade. Prova evidente disso são esses mesmos textos e comentários que mencionei ter lido em jornais, revistas, blogs e redes sociais, em que os autores tentam a análise da situação honestamente, pois são honestos, advogando a urgência de um Brasil mais limpo.

Realmente, é preciso estabelecer tolerância zero para todo tipo de desonestidade, mesmo para atos do cotidiano que parecem inócuos, mas que na verdade estão contaminados pela perniciosidade. Como um caso que presenciei numa fila de banco no Brasil, já faz muito tempo, um exemplo desses atos do dia a dia que, apesar de “pequenos”, são na verdade tão desonestos quanto qualquer outro.

Estava eu aguardando pacientemente minha vez, no último lugar de uma fila de oito, quando chegou uma jovem senhora fazendo uma vistoria no ambiente, como se procurasse alguém. Rapidamente, ela vislumbrou uma pessoa mais à frente na fila. Apressando o passo, com um discreto sorriso nos lábios, se dirigiu a uma outra jovem que estava a dois clientes de ser atendida pelo  caixa. Após amáveis cumprimentos entre as duas, que falavam suficientemente alto para chamar a atenção de todos, eis que a recém-chegada baixou o tom da voz, ao mesmo tempo que entregava uns papeluchos à outra.

Notei que as pessoas na fila começaram a se movimentar com impaciência, como se dessem passos sem sair do lugar. Uma ou outra olhava para os que estavam atrás dela, como se estivesse sondando a disposição do outro para reclamar primeiro. Toda essa tensão se desfez quando ouvimos a jovem da fila dizer à amiga (da onça), alto e bom som, que lhe deixaria o seu lugar e que iria para o último lugar da fila; ela que, naquele instante, já era a próxima a ser chamada a qualquer momento. Teria sido alegado algum motivo de urgência?

Espantada, a amiga foi mudando de cor; de lívida passou a um rubor que quase parecia inspirar cuidados. Muito envergonhada, recusou a oferta, dizendo: “Eu que vou”. Tentava segurá-la no seu lugar mas a outra insistia, gesticulando veementemente para se desvencilhar e se dirigir ao último lugar. Em vista daquele impasse, a revolta dos outros transformou-se em vergonha alheia para a furadora de fila. Para pôr pano rápido, mais do que por bondade, alguém disparou:

— Valeu a lição, gente, vamos deixar as duas lá na frente!

Os outros aceitaram, sei lá se de bom ou mau grado. Por sorte da aprendiz de honestidade, dois caixas livres naquele instante chamavam o próximo, como um gongo que a salvava da vergonha de encarar os outros, saved by the bell.

De minha parte, posso dizer que ganhei o dia por ter presenciado a atitude heroica daquela jovem, que preferia se prejudicar a ser conivente com algo errado.

Antes fossem só casos como esse da fila. Acontece que o brasileiro honesto está passando por uma fase terrível, cercado, massacrado e roubado por criminosos de todos os lados: governantes e políticos em conluio com empresários corruptos, sem esquecer os criminosos de rua, que estão aniquilando o cotidiano do cidadão.

Mas não se pode abdicar da dignidade em hipótese alguma. É preciso abrir as cortinas para um terceiro ato e concluir a terapia, nos conscientizarmos de que nem estamos de acordo com desvios de conduta, nem com conflitos. Não é este o padrão que almejamos para a família Brasil.

Que possamos pensar e agir de forma lúcida para clarear os caminhos obscuros pelos quais tropeça a nossa nação.

Um bom domingo de Páscoa para todos!