Acho interessante conhecer outras
culturas e tenho esta oportunidade aqui no Canadá, que é um país aberto à
imigração. Os chineses, por exemplo, estão cada dia mais presentes aqui, o
chinês já é a terceira língua mais falada, após o inglês e o francês.
Outro dia, fomos jantar em casa de
amigos, uma família harmoniosa, casal e dois filhos pré-adolescentes. Quando
nos reunimos, sempre surgem temas que enriquecem a nossa bagagem cultural,
devido ao caráter “internacional” dos encontros. Ele e meu marido são canadenses,
ela chinesa e eu brasileira.
Assunto é o que não falta, na
China é assim, no Brasil é assado, o Canadá gelado... E por aí vai, c’est la vie.
O casal se conheceu na China, em
uma universidade, mas o nosso amigo não abria mão de morar no Canadá, pois, segundo
suas palavras, a liberdade de que desfrutamos aqui é algo que não se troca por
nada. Ela cedeu, embora fosse uma professora de sucesso lá, orgulhosa de seu
país, do povo e seus costumes. Como diz Adélia Prado, “Mulher é desdobrável”.
Os filhos nasceram aqui e falam
como quebequenses que são, obviamente. Aprenderam chinês com a mãe e conversam
com os avós chineses uma vez por semana, pela internet, o que os mantém em dia
com a língua e com as origens maternas.
São verdadeiros chinesinhos na
aparência, aos nossos olhos, porém não aos olhos dos chineses. E justamente por
causa dos olhos, em ambos os pareceres... Bom, há todas as outras
características também, não percebo a diferença em relação aos chineses sem
mistura.
Não deve ser fácil para uma
pessoa viver num lugar onde sua aparência é diferente daquela da maioria das
outras. Pensei que isso lhes traria problemas aqui, desde que soube de alguns
comentários quando eles ainda eram pouco mais que bebês. E eu tinha razão.
Quando eram pequenos, as pessoas
desconhecidas os ouviam falar e diziam:
- Que gracinha, eles falam exatamente como nós, quebequenses.
O mais velho, que estava mais
adiantado no chinês, retrucava:
- Eu sei falar chinês.
Imagino que lá dentro da sua
cabecinha havia interrogações e exclamações: “Hã? Claro que eu falo como eles,
eu também sou quebequense! A língua que faz diferença que eu fale é o chinês!”.
Certa vez, já faz alguns anos, eu
estava no pequeno “shopping” da nossa cidadezinha, quando vieram correndo os dois
pequerruchos:
- Maria , Maria[1]!
Bonjour!
E entre abraços e beijinhos,
muitos - Je t’aime!
São crianças irresistivelmente
adoráveis.
Em seguida, chegou o pai.
Enquanto conversávamos, não me lembro, mas provavelmente sobre trivialidades do
clima canadense – alguma nevasca, sem dúvida – veio-se juntar a nós uma outra
conhecida minha, por coincidência, prima do pai dos meninos. Eles não se viam
há muitos anos e ela ainda não conhecia os priminhos. Após todas aquelas
considerações de praxe, foram-se embora os três, a mil por hora, como sempre. Fiquei
com a minha conhecida, pondo os assuntos em dia.
E ela me solta esta:
- Não sabia que meu primo tinha adotado chinesinhos.
- Não, não são adotados, é porque a mulher dele é chinesa – fui logo me apressando em explicar e
desfazer o seu equívoco.
Ela, pelo menos, esperou que a
família fosse embora para dizer isso. Mas houve outros episódios semelhantes,
mesmo na escola que frequentam, lamentavelmente na presença das crianças e diretamente
com elas, conforme nos contaram seus pais. Claro que, sendo o pai louro de
olhos azuis, o contraste é grande e pode induzir a pensar em adoção, mas
sabe-se muito bem que os traços dos povos asiáticos prevalecem na maioria das
vezes.
O resultado disso tudo nós vimos
na última vez em que fomos visitá-los. O menino estava usando uma camiseta em
que estava escrito: “Not made in China”. Seus pais nos disseram que ele faz
questão de ir para a escola com esta camiseta. E a menina não quer mais que a
fotografemos. Ela que sempre fez tantas poses sorridentes para a minha câmera,
agora não quer mais. Não disse por que razão, mas fiquei matutando: “Uai, por que
será? Talvez porque lhe tenham dito que ela é diferente... “
Isso me entristece tanto! Vi
essas crianças crescerem e me afeiçoei a elas, pessoinhas tão educadas e
gentis... Agora estão com um certo quê de amargura, com problemas de
identidade, coisa difícil de lidar. Menos complicado, no entanto, porque não é
um problema que se origina na maneira como eles próprios veem o mundo, eles são
normais. É uma atitude de outros que lhes causa embaraço. Felizmente, são muito
inteligentes e os pais são gente muito lúcida e já estão trabalhando para que a
situação não assuma maiores proporções.
Sei que nas escolas, as próprias
crianças, muitas vezes sem maldade, fazem perguntas ou comentários dirigidos
àqueles que possuem alguma característica diferente dos outros. Até certo
ponto, isso é normal, porque estão aprendendo a conhecer o mundo que as rodeia.
Mas, algumas vezes, aprendem com os adultos a fazerem discriminações.
E
essa atitude não se limita ao âmbito doméstico e escolar. O próprio governo
canadense, a meu ver, adota um sistema discriminatório quando pretende promover
a igualdade de chances no mercado de trabalho. Em muitos casos, principalmente
quando se trata de admissão à função pública, o candidato a um emprego deve
preencher um formulário no qual, além de todas as perguntas relativas ao
Curriculum Vitæ, tem que se classificar no caso de pertencer a uma fatia
minoritária da população, marcando a opção que lhe couber segundo a língua
materna, cor da pele, origem étnica e sei lá o que mais. Se fosse só pela
igualdade de direitos, acho que a melhor conduta seria não perguntar nada
disso. Aí sim, todos estariam sendo tratados igualmente, não?
Um
desses grupos demográficos é o que eles chamam de “minorias visíveis”,
definidas como pessoas outras que não autóctones, que não sejam da raça branca
ou que não tenham a pele branca. Neste grupo se enquadram negros, mestiços,
chineses, japoneses etc. E os meus amiguinhos, será que mesmo sendo canadenses
terão que se enquadrar nessa categoria? Fui ler esta classificação no texto da
lei e constatei que sim, eles serão classificados como fazendo parte das
minorias visíveis. O critério é aplicado até a segunda geração, isto é, mesmo
os nascidos no Canadá, se um dos dois genitores for imigrante.
Na
minha opinião, as cores da pele, do cabelo e dos olhos são dados aceitáveis
para constar em documentos de identidade, como complemento ao retrato, para não
deixar dúvidas, pois é claro que a função de tais documentos é identificar. Mas
etiquetar as pessoas conforme sua origem étnica, tipo físico e outros babados,
para fins de inserção no mercado de trabalho, convenhamos que é um atraso
monumental! Inaceitável num mundo que pretende ser desenvolvido.
Se esse é um procedimento
difundido também em outros países, não é de causar surpresa que existam tantos
conflitos. O ser humano ainda tem muito que evoluir!
[1]
Aqui eu sou chamada de Maria, pronunciado Mariá no Canadá francófono, com a imutável
tendência oxítona da língua francesa.
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Publicado também pela KBR Editora Digital:
http://www.kbrdigital.com.br/blog/not-made-in-china/
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