Crônica também publicada pela KBR Editora
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Tenho acompanhado o drama brasileiro tão atentamente pelas notícias dos jornais e pelas redes sociais, que estou me sentindo in loco.
Num certo momento, vi o Brasil ficar praticamente dividido em dois: os
que estavam do lado do governo eleito em 2014 e os que estavam contra.
Ofensas mútuas, chacotas, vitupérios cruzaram o território nacional em
todas as direções, como flechas envenenadas que chegaram a estremecer
amizades. O país parecia uma grande família em conflito e estresse.
Sofri muito com isso, tive uma “Quaresma” prolongada… assez, merci.
Enquanto isso, os depoimentos vomitados pelos mais que premiados
delatores continuam revelando a lama em que estão atolados políticos,
empresários, governos e funcionários. E novas operações de investigação
estão descobrindo mais falcatruas, que parecem não ter fim. Um escândalo
ainda não acabou de ser resolvido e outros já fazem manchete nos
jornais.
Com isso, parece que a população entrou num processo semelhante a um
ato de contrição, talvez algo como uma penitência, ou quem sabe, uma
terapia familiar —abriram-se as cortinas para um segundo ato.
Provavelmente atordoadas pela constatação do envolvimento de tanta gente
em corrupção — seja pela direita, pelo centro, pela esquerda, no
presente ou no passado — muitas pessoas estão concluindo,
intempestivamente, que a contaminação é geral. Estão dizendo que todos
os brasileiros nutrem o germe da degradação moral, com atitudes
comprometedoras que já começam a brotar na interação entre pais e filhos
e que se refletem na vida adulta. Li vários textos fazendo esse tipo de
acusação, por vezes com conteúdo autopunitivo mesmo: os dardos agora se
voltaram contra a brasilidade como um todo.
Além de injustificada e difamatória, enquanto atribuída ao povo de
forma generalizada, acho essa conclusão nefasta, pois, ao colocar a
atitude corrompida como regra geral, serve sordidamente para atenuar a
culpa daqueles legalmente acusados.
Acredito que o autoexame seja um processo válido e de utilidade em
muitos casos. Mas quando se trata da análise de um povo, prefiro deixar
estudo e conclusões, para que sejam de algum proveito, aos estudiosos de
Antropologia, Sociologia, whatever, com especialização na
pesquisa sobre esse mesmo povo. No meu entender, o assunto é muito
complexo, não basta fazer parte dessa população para dar diagnósticos e
prognósticos.
Por curiosidade, fiz uma busca na internet por “percentuais de
honestidade do povo”, achando que não encontraria nada. Pois não é que
achei? Já foram feitas várias pesquisas em várias cidades do mundo, em
forma de testes, e os resultados nas cidades brasileiras não foram dos
piores. Mas não acredito na validade desses trabalhos, me pareceram
superficiais.
Não conheço percentuais fidedignos de “honestidade do povo” e imagino
que deva ser muito difícil avaliar esse parâmetro. Mas há fortes
indícios de que ela ainda exista no país. Apesar de não ser assunto da
minha área de pesquisa, posso afirmar que, felizmente, ainda há muitos
brasileiros que têm dignidade. Prova evidente disso são esses mesmos
textos e comentários que mencionei ter lido em jornais, revistas, blogs e
redes sociais, em que os autores tentam a análise da situação
honestamente, pois são honestos, advogando a urgência de um Brasil mais
limpo.
Realmente, é preciso estabelecer tolerância zero para todo tipo de
desonestidade, mesmo para atos do cotidiano que parecem inócuos, mas que
na verdade estão contaminados pela perniciosidade. Como um caso que
presenciei numa fila de banco no Brasil, já faz muito tempo, um exemplo
desses atos do dia a dia que, apesar de “pequenos”, são na verdade tão
desonestos quanto qualquer outro.
Estava eu aguardando pacientemente minha vez, no último lugar de uma
fila de oito, quando chegou uma jovem senhora fazendo uma vistoria no
ambiente, como se procurasse alguém. Rapidamente, ela vislumbrou uma
pessoa mais à frente na fila. Apressando o passo, com um discreto
sorriso nos lábios, se dirigiu a uma outra jovem que estava a dois
clientes de ser atendida pelo caixa. Após amáveis cumprimentos entre as
duas, que falavam suficientemente alto para chamar a atenção de todos,
eis que a recém-chegada baixou o tom da voz, ao mesmo tempo que
entregava uns papeluchos à outra.
Notei que as pessoas na fila começaram a se movimentar com
impaciência, como se dessem passos sem sair do lugar. Uma ou outra
olhava para os que estavam atrás dela, como se estivesse sondando a
disposição do outro para reclamar primeiro. Toda essa tensão se desfez
quando ouvimos a jovem da fila dizer à amiga (da onça), alto e bom som,
que lhe deixaria o seu lugar e que iria para o último lugar da fila; ela
que, naquele instante, já era a próxima a ser chamada a qualquer
momento. Teria sido alegado algum motivo de urgência?
Espantada, a amiga foi mudando de cor; de lívida passou a um rubor
que quase parecia inspirar cuidados. Muito envergonhada, recusou a
oferta, dizendo: “Eu que vou”. Tentava segurá-la no seu lugar mas a
outra insistia, gesticulando veementemente para se desvencilhar e se
dirigir ao último lugar. Em vista daquele impasse, a revolta dos outros
transformou-se em vergonha alheia para a furadora de fila. Para pôr pano
rápido, mais do que por bondade, alguém disparou:
— Valeu a lição, gente, vamos deixar as duas lá na frente!
Os outros aceitaram, sei lá se de bom ou mau grado. Por sorte da
aprendiz de honestidade, dois caixas livres naquele instante chamavam o
próximo, como um gongo que a salvava da vergonha de encarar os outros, saved by the bell.
De minha parte, posso dizer que ganhei o dia por ter presenciado a
atitude heroica daquela jovem, que preferia se prejudicar a ser
conivente com algo errado.
Antes fossem só casos como esse da fila. Acontece que o brasileiro
honesto está passando por uma fase terrível, cercado, massacrado e
roubado por criminosos de todos os lados: governantes e políticos em
conluio com empresários corruptos, sem esquecer os criminosos de rua,
que estão aniquilando o cotidiano do cidadão.
Mas não se pode abdicar da dignidade em hipótese alguma. É preciso
abrir as cortinas para um terceiro ato e concluir a terapia, nos
conscientizarmos de que nem estamos de acordo com desvios de conduta,
nem com conflitos. Não é este o padrão que almejamos para a família
Brasil.
Que possamos pensar e agir de forma lúcida para clarear os caminhos obscuros pelos quais tropeça a nossa nação.
Um bom domingo de Páscoa para todos!
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