terça-feira, janeiro 30, 2018

Não era o Batman

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Com o surto de febre amarela no Brasil, com taxas elevadas de mortalidade e também devido aos surpreendentes casos em que o sistema imunitário não responde à vacina contra o vírus - felizmente raros -, o uso de produtos repelentes e de telas tornou-se indispensável. Uma pena que as telas não sejam muito apreciadas pelos brasileiros. Muitos reclamam que o material e a instalação ficam muito caros. Mas se tivessem começado a instalar, em uma janela de cada vez, desde que as epidemias de dengue começaram, todas as janelas e portas do país já estariam teladas. Já ouvi dizer que há condomínios que não as permitem para não desfigurar as fachadas dos prédios. Há ainda os que alegam que a tela dificulta a entrada do ventinho tão desejado para aliviar a canícula do verão. Inacreditável. Para os menos favorecidos, penso que as telas deveriam ser fornecidas pelo Estado.
Muitas vezes não nos damos conta de que o contexto dentro do qual nascemos e vivemos está parado no tempo e de que há como melhorar. Eu mesma nunca questionei essa falha, antes de começarem os surtos urbanos de doenças veiculadas por pernilongos e antes de conhecer o meu canadense.
Tínhamos, em casa, no Brasil, aqueles mosquiteiros sobre as camas. Para mim, era um verdadeiro suplício passar a noite a ouvir o zumbido dos insetos em torno daquela parafernália, tentando encontrar uma brecha para entrar. Só pegava no sono mesmo após horas de exaustão. Havia também aparelhinhos elétricos que liberavam uma substância repelente, mas tínhamos receio de que fosse nocivo, com o uso prolongado - eu preferia correr este risco.
Foi, então, que conheci meu “Québécois” pela internet – esta história tem dado “pano pra manga” – e ele ficou espantado ao saber que não tínhamos telas em todas as portas e janelas. Aqui no Canadá, todas as construções têm. Foi outra vantagem de tê-lo conhecido, tratei de mandar instalar em todas as janelas e nas portas externas de grade, antes que ele viesse nos visitar. Minha mãe foi a maior beneficiada, passou ilesa por todos os surtos de dengue e outros, durante seus últimos anos de vida, tendo chegado quase aos 100 anos completos, sem passar por esse dissabor.
Mas não são só as casas residenciais do Brasil que não têm telas. Os hospitais também não! Pelo menos, não tinham (só os centros cirúrgicos, as UTIs e alguns departamentos específicos eram calafetados). Foi uma das primeiras observações feitas pelo meu marido, ao visitar o hospital onde eu trabalhava, lá pelos idos de 1998. Ele achou uma beleza poder ter portas e janelas abertas, jardins internos com o charme do paisagismo. Mas foi logo indagando sobre os insetos... ele que não tem formação nenhuma na área biomédica. Tentei defender o lado arejado da situação, mas minha defesa não passou de bairrismo carregado de subdesenvolvimento.
Não são só os insetos que aproveitam a entrada franca. Bichos bem maiores também fazem suas incursões, para pavor de alguns, entre estes, eu mesma.
Era uma vez uma médica que estava de plantão e foi chamada à noite, num dos hospitais onde trabalhava. Sim, era eu. Atendi o paciente no seu quarto, em seguida me dirigi ao posto de enfermagem para dar as diretivas à enfermeira que lá estava. Comecei a prescrever e fazer pedidos de exames, sentada de um lado da longa mesa. Na outra extremidade, estava sentada a enfermeira, aguardando a papelada que eu estava produzindo.
O hospital é daqueles que têm jardins internos, que dão passagem a outras alas e departamentos. Estava muito quente. A porta que dava para o jardim contíguo estava aberta, bem como a janela do recinto. Uma brisa notívaga circulava agradavelmente, atenuando o calor e os odores farmacêutico-hospitalares.
Eis que, de repente, algo bem mais denso que a brisa entra pela porta, farfalhando no ar – vuf, vuf. A sala não era grande, num instante o monstro alado passou por cima da minha cabeça, num voo rasante. Não encostou em mim, mas senti o deslocamento do ar bem próximo e vi a sombra daquele bicho sobre a mesa onde escrevia. Imediatamente, soube que era um morcego – e não era o Batman. Fui tomada por um medo incontrolável. Com muito custo consegui abafar meus gritos, que saíram como gemidos sufocados. Desabalada, fui em direção à enfermeira, me agachei ao lado dela, me encolhendo o máximo que podia, quase em posição fetal, cobrindo minha cabeça com as mãos. E, mais vexaminoso ainda, creio que apoiava minha cabeça nos joelhos dela – minha memória tenta apagar esta parte, mas receio que seja verdade. A enfermeira permaneceu impávida, talvez paralisada diante da minha reação – uma médica que veio socorrer um doente, em pânico por causa de um morcego.
Naquela altura, já não sabíamos onde estava o animal. Voltei para a minha cadeira rapidamente, envergonhadíssima, rindo sem graça, tentando recobrar minha dignidade... rsrsrs. Para completar a cena, entra um moço uniformizado, do setor de manutenção, empunhando uma rede parecida com aquelas de pegar borboleta, em forma de coador de café, só que enorme e com um cabo bem longo. Fez uma vistoria no local, mas não encontrou o morcego. Talvez, tivesse saído pela porta por onde entrou ou, pior, ido para outros cômodos do hospital.
Isso tudo é muito grotesco! Hospital não é lugar de morcego! Nem de mosquitos transmitindo doenças, nem de mosquitos ponto. E vamos deixar outros casos "cabeludos" para uma outra vez...
Sempre que me lembro desse meu vexame, lembro também de um outro que o Jô Soares contou sobre o Max Nunes, produtor do programa dele e médico, que tinha pavor de bruxas – aquelas mariposas, insetos assemelhados a borboletas, de voo noturno. Segundo o Jô Soares, ele passou uma noite inteira no quarto de um paciente, pois cada vez que abria a porta para sair, tinha uma bruxa voando no corredor. O paciente nunca teve um médico tão dedicado! Vocês podem imaginar o Jô Soares contando essa história, é de chorar de rir. Bom, pelo menos estou em boa companhia nos meus medos... rsrsrs
Mas, por favor, ponham telas nas janelas e segundas portas de tela, se quiserem deixar o ar entrar!
Para complementar: 
Não achei o vídeo do Jô Soares contando o caso, mas achei um da filha do Max Nunes falando sobre isso, também em um programa do Jô:
https://globoplay.globo.com/v/1365252/

segunda-feira, janeiro 29, 2018

Janelas de hospitais

Fonte da imagem: Fiocruz

Notícias preocupantes sobre o Brasil não faltam. O que está me chamando a atenção desta vez são os casos de febre amarela cada vez mais numerosos, incluindo mortes pela doença e pela vacina. Parece que o foco maior de transmissão se encontra em Minas Gerais e vai-se alastrando aos estados vizinhos, infelizmente.
Procurei me informar lendo artigos de especialistas e, pelo que entendi, os casos ainda estão limitados às zonas rurais, em áreas de matas e seus arredores, onde o vírus está sendo veiculado pelos mosquitos dos gêneros Hæmagogus e Sabethes. A doença ainda não se urbanizou – e espero que isso não aconteça –, ainda não infectou o Ædes ægypti, que é um potencial veículo transmissor.
Fiquei sabendo, também, que as pessoas acometidas pela doença são levadas a hospitais das cidades e estão sendo colocadas em isolamento. Aí reside um dos riscos de se desencadearem os casos urbanos. Se o doente estiver em estado grave e, portanto, isolado dentro de uma Unidade de Tratamento Intensivo, as chances são menores, pois acredito que todas essas unidades funcionam com janelas lacradas.
Mas e se o paciente for hospitalizado para ficar sob observação e cuidados especiais, num quarto comum, apenas separado dos outros, adaptado às pressas para servir de isolamento, como é bem possível de acontecer no meu Brasil que conheço tão bem? Quartos com janelas que podem-se abrir fácil e livremente, em tempos de calor insuportável, sem a interposição de telas, podem deixar entrar, junto com a brisa arrefecedora, os ávidos mosquitos Ædes ægypti. Uma vez saciados em sua volúpia por sangue, estarão infectados pelo vírus da febre amarela e aptos a inaugurarem o ciclo urbano da doença.
Não estou querendo aumentar a aflição do aflito, que é a situação do brasileiro neste momento. É justamente para evitar maiores aflições. Se virem quartos precariamente “arranjados” para isolar pacientes com febre amarela, não deixem a situação passar em brancas nuvens. Alertem quem de direito, para tomarem as devidas providências. Parece óbvio, mas é sempre bom alertar.

segunda-feira, janeiro 22, 2018

Traullitada


Outro dia, em uma conversa informal, lamentando o estado em que o Brasil se encontra, com crimes poluindo o ar que se respira, culpei o governo e os políticos, mais uma vez – coisa que, por força das circunstâncias, sabemos fazer muito bem. Meu interlocutor, que não é brasileiro, foi logo dizendo: - não, a culpa é do povo que os elegeu.
É verdade, infelizmente. E somos reincidentes. Candidatos comprovadamente bandidos se candidatam e se reelegem. Temos visto isso se repetir indefinidamente, pelos mesmos e por hereditariedade – os filhos dos políticos entram no “negócio” – business mesmo – e vão acumulando seus ricos haveres, às nossas expensas.
Quando a hipótese de um candidato fora da área política é aventada, há quem diga que ele não tem experiência político-administrativa para se candidatar. Será que é a experiência que temos visto na história do Brasil que queremos?
Neste ano de 2018, estamos diante de um déjà-vu inaceitável (texto de Vânia Gomes explica isso melhor que eu - link #1 abaixo). Pré-candidatos já manjados por incompetência – no mínimo – e corrupção estão se apresentando com a cara mais deslavada e, pior, obtendo pontos nas pesquisas. Essas pré-candidaturas deveriam ser repudiadas com mais eficiência, com alguma medida amparada por lei. É inadmissível e chocante que isso seja permitido.
O texto de Tatiana Rezende – link #2 – mostra o quadro patético que se apresenta no Brasil, com uma “pá de cal” assustadora, para acabar de enterrar o país: a pré-candidatura do Collor! E que pá de cal! A escolha da expressão pela autora foi boa. Essa pá tilintou como uma traulitada na cabeça do brasileiro, soando como sirene de alerta no último grau de advertência, realmente. Só surdos ou já comatosos não ouvem.
Tem uma coisa que me preocupa. Tal foi o desgaste que o caso Collor provocou na época em que foi presidente que, após o impeachment, não se falou muito mais nele, todo mundo estava saturado e preferindo se alegrar com as melhorias implantadas nos governos imediatemente seguintes. Então, existe uma faixa etária, atualmente, que não sentiu o impacto dos desvarios criminosos do Collor. Ele foi destituído ("renunciado") em 1992 – fácil fazer os cálculos –, é muita gente que nasceu ou era ainda criança depois disso e que está com idade para votar em 2018 😟.
E só para lembrar como estamos enrascados e parece que preferimos nos enganar, o esquecimento com que beneficiamos esse ex-presidente custou caro: depois de muitos atrasos e engavetamentos das denúncias contra Collor, em instâncias inferiores, quando o caso chegou na reta final, os processos foram engavetados durante mais 5 anos... Lembram-se por quem? Pela ministra do STF, Carmen Lúcia, então relatora do caso. Por fim, ela o absolveu, já quase 22 anos após a denúncia do MP... nem precisava mais, os crimes já estavam prescritos/proscritos 😠 (link #3).
Assim caminha – para trás – o Brasil.

sexta-feira, janeiro 19, 2018

Coentro não dá rima pra mim, tô fora

Coriandrum sativum

Version en français
English version 
- Você não gosta de coentro? Eu não. Tenho uma intolerância visceral a esta folhinha que parece inocente e tão apreciada por tanta gente. Recentemente, fiquei sabendo que esta planta dá muito o que falar e que já foi até mesmo assunto para pesquisa genética, tão acaloradamente divide opiniões gustativas (links ao final do texto).
Segundo os pesquisadores, há dois fatores principais que podem estar relacionados ao fato de gostar ou não de coentro, embora não se tenha chegado a um veredicto definitivo. Um deles seria o hábito de usá-lo em pratos tradicionais de certas regiões do planeta favorecendo seus habitantes a se acostumarem e gostarem dele. Mas mesmo nesses lugares, há pessoas que têm verdadeira aversão ao ingrediente, o que levou alguns pesquisadores a pensarem em uma causa genética como segundo fator.
Há tantos alimentos, tantos temperos que uns gostam e outros não, e ninguém se preocupa. Penso que, no caso do coentro, o que intrigou os cientistas foi a intensidade da aversão de quem não gosta, como eu. Por que essa repugnância tão forte?
No início dos anos 2000, usando o olfato e o paladar como parâmetros, o pesquisador em neurociência Charles Wysocki, do Monell Chemical Senses Center, na Filadélfia, Pensilvânia, testou centenas de gêmeos uni e bivitelinos, presentes em um festival de gêmeos em Ohio, e encontrou em cerca de 80% dos gêmeos idênticos a mesma reação à planta, contra cerca de 41% dos não idênticos, o que sugere um substrato genético para esta característica.
Na tentativa de identificar uma base genética sólida, dois outros estudos foram realizados, um por Lilli Mauer, da Universidade de Toronto no Canadá, em 2011, e outro pela equipe de Nicholas Eriksson da companhia 23andMe, na Califórnia, em 2012. Em ambos os estudos foram encontradas variantes em genes de receptores olfatórios e, na pesquisa do Canadá, também em genes de receptores de gosto amargo, relacionado às reações ao coentro.
Seria interessante que os cientistas estudassem mais sobre isso. Há um consenso de que a aversão seja causada pelo cheiro da planta. Apesar de eu mesma sentir uma aversão intensa ao cheiro dela, penso que há algo mais amplo do que isso. Creio que o aroma é o componente mais evidente, mas não é o único motivador dessa rejeição visceral. Pelo menos no meu caso, a magnitude da reação é muito maior, embora o odor que a planta exala tenha também um papel importante na aversão que me provoca.
Na casa dos meus pais, nunca tivemos queda por especiarias ou receitas culinárias elaboradas e bem condimentadas. Usávamos o essencial, ou seja, sal, alho e cebola, óleo de cozinha, às vezes uma salsinha, se tanto. E era muito bom! Quando muito, uma Pimenta Malagueta, que minha mãe adorava.
Abro parênteses: cá estou eu usando a primeira pessoa do plural, até parece que eu sou afeita à cozinha. Sou um fracasso. Fecho parênteses.
Por um determinado período, tivemos uma cozinheira mais despachada, que resolveu ela própria ir comprar os ingredientes para cozinhar. Com certeza, já estava cansada da monotonia gustativa lá de casa. Um belo dia, na primeira garfada, senti que tinha engolido algo estranho, mas não consegui definir muito bem se era o gosto ou o cheiro que tinha me desagradado. E a tal ponto me desagradou que tive que ir correndo ao banheiro para vomitar, coisa que tenho uma certa dificuldade para fazer, em outras situações nauseosas que se apresentam. Já comi alimentos de que não gostava, por educação, sem maiores problemas, mas desta vez, foi como se meu estômago estivesse dizendo, peremptoriamente: - Isto não!
Não consegui engolir mais nada que estava naquele prato pois percebi que havia um cheiro muito incômodo. Mais estranho ainda foi que ninguém na mesa sentia o tal cheiro no meu prato, só eu. Fui perguntar à cozinheira se havia alguma coisa diferente do habitual na comida e ela foi logo respondendo: - Ah, hoje comprei coentro e resolvi usar para temperar. Em seguida, ela pegou umas folhinhas que restavam e me deu para cheirar. Era exatamente aquele cheiro e eu tive que voltar correndo para o banheiro. Nem preciso dizer que nunca mais passei perto de coentro. E, ainda por cima, o episódio me rememorou uma outra vez em que passei mal após um jantar com frutos do mar... Aposto que devia ter coentro.
Com o resultado dessas pesquisas científicas, então, está explicado, tenho esse tal traço genético. Fiquei aliviada, não é fricote.   
       Passaram-se anos... de outra feita, confirmei a minha intolerância quando passei um creme de mão e minhas mãos foram ficando vermelhas e coçando... Nem estava me lembrando do coentro e nem sabia que podia entrar em composição de creme de mão. Devido à reação (tipo alérgica mesmo), tive curiosidade de ler os ingredientes: o danadinho do coentro estava lá.
Penso que essa aversão é a manifestação de alguma coisa mais complexa. Esperemos que venham mais estudos sobre isso.
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P.S.: os estudos genéticos realizados, que constataram a sensibilidade maior a aldeídos, me fizeram lembrar de um teste que era feito em aula prática de laboratório, quando estudei medicina. O professor nos fez cheirar uma substância que, se me lembro bem, continha aldeído, para nos mostrar que alguns sentiam o cheiro e outros não.
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Imagem por Franz Eugen Köhler, Köhler's Medizinal-Pflanzen - List of Koehler Images, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=255535
 Referências sobre os estudos: