quinta-feira, outubro 26, 2017

Otimismo



Muito interessante esse vídeo (link no final deste texto), partilhado por um amigo feicibuquiano. O Facebook tem suas vantagens!
Resumindo, o trabalho estatístico apresentado por Hans Rosling mostra como evoluiu a saúde da humanidade, tendo como referência a esperança de vida, e a evolução da riqueza, tendo como base a renda individual. Entre 1810 e 2009, houve uma melhoria significativa global, com uma tendência, grosso modo, à convergência para aumento da riqueza e da saúde de todos.
Embora haja ainda muita desigualdade, não evidenciada quando se fala em termos de médias, parece estar confirmada uma propensão ao desenvolvimento, embora mais lentamente para uns que para outros.
Vale a pena assistir a esse vídeo que, com excelente tecnologia, facilita a compreensão do desempenho da humanidade ao longo dos anos.
A partir desses dados, ouso pensar, com otimismo, em algumas possíveis previsões... Com tudo o que vem acontecendo nos últimos tempos, principalmente com as grandes correntes migratórias recentes, em escala planetária, num mundo cada vez mais populoso, verificamos que a manutenção do bem-estar dos mais ricos depende grandemente da melhoria das condições de vida dos mais pobres, para que eles não precisem migrar.
O interesse de todos em melhorar a situação dos países em crise, qualquer que seja a causa, é crescente. Assim tem acontecido na União Europeia, que mantém um pacto fiscal, a fim de exercer um rígido controle dos países-membros, e um fundo de resgate para socorrer economias endividadas. Ou no Canadá, por exemplo, quando uma província do país tem performance pior, as outras vêm em seu socorro.
Tomara que sigamos nessa tendência e que ela se espalhe por todo o planeta. Mesmo que um país ou outro sofra algum transtorno que o retarde (como aconteceu com o Brasil), inevitavelmente, terá que se aprumar, pois o avanço da humanidade não pode ser prejudicado por mesquinharias locais que ponham em risco a "saúde" global.
Creio que, num futuro não muito distante, haverá um controle mundial rigoroso que não permitirá atuações desgovernadas de qualquer país que seja, provocando desestabilização geral. Rudimentos dessa predisposição já estão presentes no mundo atual. Se as consequências dessas possíveis mudanças serão predominantemente benéficas... só o futuro poderá dizer.

Com legenda em português (clicar no pequeno retângulo branco para ativar a legenda):

quinta-feira, outubro 19, 2017

Rua Rio Doce através do tempo


Rua Rio Doce (by Maria do Carmo)
Belo Horizonte, MG, Brasil
Para quem morou na rua Rio Doce, para recordar alguns momentos...


Década de 1950 (segunda metade):
Na esquina com a Marquesa de Alorna, quatro crianças ainda bem pequenas estão esperando o ônibus escolar, cabelo penteado, uniforme escovado, sapato engraxado: José João, Leonídia, Francisquinho e Simoninha, esta última a dois passos de sua casa, logo ao lado da casa de Dona Esterzinha. Os outros três moram na esquina com a rua Dante. 

- Bons tempos aqueles, quatro pequerruchos poderem ficar sozinhos na esquina. 

- Mas a vizinhança era como uma grande família, os pais cuidavam de seus filhos e um pouco dos outros também. Mesmo assim, quase que essas crianças foram raptadas por um homem que passou em um carro chique, oferecendo carona. 

- Não fosse o José João sair gritando “papai”, mesmo sabendo que seu pai já tinha saído para o trabalho, e não fosse o Dr. Wilson chegar ao portão da sua casa, do outro lado da rua, ao lado da casa das gêmeas, não fosse todo o estardalhaço que se formou, com a vizinhança em polvorosa, talvez o pior tivesse acontecido. Naquela altura, o carro já estava longe.

- Benditas advertências da mãe do menino que disparou o alarme, que sempre alertava para todos os perigos possíveis e imagináveis.
 --/--
Noite fechada, o vento sopra forte na Avenida do Contorno, vindo dos lados da Serra da Piedade, nenhuma viv’alma nas ruas. Aponta na boca da Rio Doce a família do Dr. Yvon, depois de passar o domingo na casa da avó das crianças; o caçula no colo de Dona Esther, os mais velhos pulando e correndo em volta do casal, todos bem agasalhados. O friozinho da noite não perdoa, mas já ao virar a esquina e entrar na rua, protegidos do vento e quase a um passo de casa, eles já se sentem aconchegados. Todos dormem tranquilos nas suas casas, não passam carros na rua, o único barulho que se ouve são os latidos dos cachorros, no Morro do Pau Comeu, ao longe. Lá vão eles na escuridão. Com um pouco de sorte, a luz da varanda da casa de Dona Nair Prates pode ainda estar acesa.

- Mas não havia perigo. O problema era mesmo a precária iluminação com lâmpadas incandescentes, em somente dois ou três postes de madeira, em todo o trajeto. Até chegar na Marquesa de Alorna, era fácil, a rua já era calçada. O difícil era o segundo lance, ainda sem calçamento. Pior ainda, quando chovia, as enxurradas de barro.
 --/--
 Abril, outono, o mês das florinhas douradas, o morro está cheio de raios de sol descendo as ladeiras, inundando a rua Rio Doce. Cabras com seus cabritinhos escalam barrancos e beirais, mulas e cavalos pastam no mato alto, cães vira-lata, escorpiões... dá de tudo. De vez em quando, tem cavalo que sai dando coice e relinchando. Quem foi que atazanou o animal? Com os escorpiões é preciso tomar muito cuidado! E recolher para mandar para o Instituto Ezequiel Dias fazer soro.

- Francisquinho, por um triz, quase morreu, picado por escorpião.
 --/--
Lá vai Sá Maria Pequena, com seu cajado, olhando pra todo lado. A menina na calçada corre pra dentro de casa, com medo dela; o irmão segredou-lhe no ouvido que ela é muito brava. Ele não tem medo, continua brincando na rua, guerrinha de mamona no bodoque. Melhor entrar mesmo, antes de levar uma bodocada.
 -//-
Década de 1960:
Rede de vôlei bem no meio da rua, jovens adolescentes se divertem na tarde de sábado. Mais abaixo, alguns meninos jogam pelada. – Vem um carro, gente, para a bola! – Seu Melchior no portão, com seus cachorrinhos miniatura pinscher, observa a turma.
De repente, desce a rua, correndo, o Tupã, o cão boxer mais corredor que já se viu; e, atrás dele, desabalado, o Deda, filho de Dona Didi e Seu Gorasil. Todos ficam em suspense, se perguntando se o Deda vai conseguir alcançá-lo... sempre consegue.
Sérgio de Dona Zenólia, Fernando "Branco", "Rato", José João, "Cecéu" e mais alguns outros, todos já rapazinhos, sentados nas grades da casa de Dona Ruth e Seu Melchior, conversam com Lelena, Dóris, Vânia... Quem mais? A criançada pequena brinca na rua também, uma correria danada. Solange brinca de boneca, com as amiguinhas, no alpendre da sua casa, em meio às rosas do jardim mais bem cuidado da região.

 - Finalmente, um longo trecho da rua Rio Doce já tinha recebido calçamento, até a altura da rua Monte Alegre, lá no alto. Já era hora. A rua já estava cheia de casas e prédios residenciais, a urbanização ia de vento em popa, a população só crescendo... um verdadeiro “baby-boom”.

- Por falar em Dona Ruth, a rua Rio Doce sempre teve famílias morando em pontos diversos. Dona Ruth era irmã de Seu Cícero, ela morava no primeiro lance da rua, na altura da Marquesa de Alorna, ele morava lá no alto. Os Benfica, estes se instalaram em três ou quatro pontos. E tinha os Chaves também, Dona Chiquita (do Seu Candinho) tinha irmãos que moravam no quarteirão de cima. O João da Sônia (de Dona Zenólia) também é irmão dela. As famílias se visitavam frequentemente.

- É mesmo. A gente sempre via um Benfica que subia a rua, um Chaves que descia, e vice-versa, gente de alta estatura, em todos os sentidos. Dona Chiquita, sempre risonha, dando adeusinho para a vizinha que estava no portão. Seu Cícero descia a rua em passos apressadíssimos.
--/--
- Dona Marta, a eterna professora... era criança que entrava e saía da casa dela sem parar, o dia inteiro. Dr. Machado e sua famosa kombi, Dr. Abel e Dona Cecília, Dona Maria Helena e Dr. Pedro, Dona Neusa, simpática representante do Nordeste – “é bonito que é medonho!” – dizia ela, com aquele sotaque delicioso.

- Tanta gente passou por essa rua. Faltam muitos nesta história: os Gianetti, os Laender, os Couto, os Bicalho, os Siqueira, Seu Licas e família, Dona Hilda “malheira”. Aos poucos, a gente vai-se lembrando de todo mundo. O tempo não parecia passar tão rápido naquela época, agora tem-se a impressão de que foi tudo num piscar de olhos.

- Depois do calçamento, mais gente lá do alto do morro começou a passar pela rua, como as irmãs de Sá Ana: Etervina, Malvina, Minervina... elas também fizeram parte importante da história da Rio Doce. Sim, tanta gente passou por aqui, fazendo amizades, deixando saudades...
-//-
Década de 1970:
Verão colorido, alegre, na rua Rio Doce, férias escolares, crianças e adolescentes se movimentam no passeio, ora em frente ao prédio onde moram Dona Dalva e Seu Murilo, ora na casa da Dona Lúcia Moraes, ora em frente ao prédio da Rafaela, ora no prédio onde moram o Baixinho, a Dona Beatriz Bicalho, também Eliane e Mônica e outros tantos... 

- A turma vivia num entra e sai de uma casa para a outra, sobe rua, desce rua... Ah... a alegria da juventude!

- Dona Dalva deixou muita saudade, aqueles lindos olhos que emanavam bondade...

- Entra e sai também na casa da Josina, que era a costureira de plantão da Rio Doce.
--/--
Sons melodiosos escapam pela janela do prédio na esquina da rua Dante... deve ser o Rodolfo.
--/--
Chove torrencialmente, água desce como correnteza de rio... Rio Doce, “marotar” faça chuva ou faça sol... Baixinho, Tarcísio, Bamba e muitos outros se reúnem na casa do Marote, questão de discutir todos os assuntos, desde os mais filosóficos aos mais corriqueiros, prazer de atividades lúdicas, rir, gargalhar.
--/--
Vista: o sol aparece na hora de se pôr, entre o Edifício Brooklin e uma nuvem dourada. Uma rajada de vento vem do morro, do outro lado, e traz um batuque de escolas de samba que se preparam para o desfile do Carnaval.
--/--
- Nessa época, um interesse crescente por música mineira tomou conta da cidade e os moradores da rua Rio Doce acompanharam a tendência com especial carinho. Claro, a musa de Beto Guedes morava na rua... a bela Silvana.

-//-
Década de 1980:
Dezembro, Natal: Papai Noel desce a rua de carroça, a criançada agitada, os adultos também. A rua toda participa, vem gente de longe para ver. Palanque montado, show à noite. Será que vai ter show do Beto Guedes? 

 - Todo ano corria o boato de que o Beto Guedes ia cantar naquela noite... mas não passava de boato.
- (Update 22/10/2017) Os shows eram uma beleza, não posso deixar de dizer isso. Eram feitos pelo grupo O BONDE. O primeiro show foi em 1979.

- Bons tempos de rua alegre e festeira... Saudades.

- Acho que foram os últimos tempos com todo mundo reunido. Depois disso, a rua virou cidade grande, cada um no seu canto...
 

domingo, outubro 15, 2017

Zê-á-zá



Não sei se hoje é obrigatório cursar o que chamávamos de "Jardim de infância", no Brasil. No meu tempo não era, e eu não fiz. A obrigatoriedade era a partir dos 6-7 anos de idade, para o curso primário. Mas não posso dizer exatamente que não fiz o "Jardim de infância". Havia um jardim lindo na casa de Dona Zenólia, nossa vizinha muito querida. Ele era cheio de rosas, cuidadas com extremo zelo. Pois foi ora em minha casa, com meus pais, ora brincando nesse jardim, frequentando a casa dela, quase que diariamente, que aprendi a ler e a escrever, muito antes de ir para a escola.
A gente nunca esquece a primeira mestra. Ela era professora e diretora de um Grupo Escolar, como eram chamadas as escolas públicas de ensino primário, naquele tempo. No ano em que eu completaria 7 anos, de acordo com resoluções educacionais, não poderia me matricular em uma escola, porque meu aniversário era em julho. Teria que esperar o ano seguinte. Dona Zenólia não admitiu que isso acontecesse.  "Esta menina já sabe escrever e ler correntemente, não pode perder um ano inteiro", disse ela, e me lembro nitidamente da sua voz dizendo isso. Pois lá fui eu, com o aval da Diretora, estudar no Grupo Escolar Henrique Diniz. Agradeço a ela por isso e por muito mais.
Também não me esqueço do rosto e da delicadeza de minha primeira professora oficial, no Grupo, apesar de tê-la visto por tão pouco tempo. Dona Zeni era um encanto. Logo, logo ela tirou licença-maternidade e outra a substituiu, Dona Zenaide. Curioso, não? Minhas três primeiras professoras tinham o nome começando pela letra Z.
No ano seguinte, Dona Zenólia se aposentou, e meus pais me puseram em uma outra escola. Mas esse primeiro ano me marcou, tenho dele tão boas recordações! Felizmente, pude aprender ainda muitas coisas com minha primeira professora, pois ela sempre me ajudava nos deveres de casa. Naquele tempo, em Belo Horizonte, a vizinhança era como uma grande família, todos se ajudavam mutuamente, em todas as circunstâncias da vida.
Fomos abençoados de ter Dona Zenólia como vizinha, uma professora exemplar. Era uma pessoa admirável, assim como seu marido e toda a sua família – pessoas boníssimas, que cultivavam o saber, sem alarido nem vaidades, e que ajudavam, com discrição e eficiência, todos que porventura precisassem deles – exemplo da verdadeira elegância da existência humana.
A casa era um caso à parte. Em estilo moderno, no auge na década de 1960, era uma joia incrustada na rusticidade da rua sem calçamento e onde ainda predominavam os lotes vagos. A parede do salão de visitas era em curva, toda de vidro, dando para o jardim. O sofá acompanhava a curva. O alpendre era coberto por uma marquise em forma geométrica, suportada por um conjunto de cilindros, cada um de uma cor, que se apoiavam embaixo, juntos, em um cubo, e iam encontrar o teto em forma de leque, fazendo lembrar um jogo pega-varetas. Por dentro, tudo impecável, cada cômodo era de uma cor.
Ah... Como gostávamos daquela casa! Para meu irmão caçula e para mim, era um segundo lar. Quando meu irmãozinho era ainda neném, não saía do colo da filha mais velha de Dona Zenólia que, ainda mocinha-menina, largou suas bonecas para brincar com um “baby” de verdade. Muitas vezes, ela ia buscá-lo lá em casa e passava horas com ele. Essa imagem me veio à cabeça como uma fotografia que, lamentavelmente, não tiramos, e que eu não poderia deixar de registrar aqui.
            Mas voltando à minha professora, ela reinava na sua casa com a mansidão dos sábios. Dona Zenólia não era brava, mas impunha muito respeito, delicadamente, sem precisar falar alto. Com sua voz calma e pausada, controlava as crianças como num passe de mágica. Ela tinha realmente o dom do magistério e exercia sua profissão com dedicação vocacional.
Aproveito o Dia do Professor para homenageá-la, com muita gratidão e saudade.

sexta-feira, outubro 13, 2017

Marinada


Os acufenos do silêncio não me pertencem
Nem me possuem
Eles estão lá fora, entorpecidos
Em alguma usina longínqua, talvez
A se perder em dar ouvidos
Pela minha vidraça
Passa, lívido, um fragmento de horizonte
Entre as folhagens outonais
Tênue luz insone, como eu
 Sofro de pálidas auroras boreais
Verdes esperanças no meio da noite
Sem tropeço nas latitudes planas
A perder de vista
Mas sem sossego
O vento por açoite
Assustado
Verde-espanto nos olhos do gato
Ao meu lado, desamparado
Tanto quanto eu
Em pleno exercício do anonimato
Em comunhão nessa caminhada
Num diálogo mudo entre nós
A esperar pelo dia da grande refeição
Não estamos sós
Submersos nessa surda marinada

Marinade

(clique aqui para versão em português)

Les acouphènes du silence ne m'appartiennent pas
Ils ne me possèdent pas, non plus
Ils sont dehors, endormis
Peut-être lointain, dans une usine
Perdue à en prêter l’oreille
Par la fenêtre
Je vois un fragment livide d'horizon
Parmi le feuillage automnal
Une faible et insomniaque lumière, comme moi
Je souffre de pâles aurores boréales
Verts espoirs dans la nuit
Sans obstacles sur les vastes latitudes
À perte de vue
Mais sans repos
Le vent comme fouet
Inquiet
Le vert affolé aux yeux du chat
À côté de moi, impuissant
Autant que moi
En plein exercice de l'anonymat
En communion sur ce chemin
Un dialogue silencieux entre nous
En attente du jour du grand repas
Nous ne sommes pas seuls
Dans cette sourde marinade