sábado, março 28, 2015

Por que Cuba?

Foto by Maria do Carmo
A primavera é realmente um espetáculo maravilhoso! Principalmente quando é tão desejada, depois do longo e tenebroso inverno que tivemos na maior parte do Canadá. Ainda estamos padecendo com temperaturas abaixo do normal para o período, mas o silêncio glacial já começa a ser substituído pelo barulho das águas dos rios que degelam, pelos cantos e gritos das aves, por vezes até assustadores. A gente nem precisa de despertador, pois mal o dia começa a clarear, ainda com tênues alvores, e os alarmes da natureza disparam. Os pássaros deram para cantar tão forte nos últimos dias, que parecem estar reclamando do frio que ainda está fazendo. Eu, para dizer a verdade, já estou quase fazendo panelaço contra uma senhora que não é Presidente mas comanda tudo por aqui, a “Dame Nature”.
As aves migratórias já estão chegando para aumentar ainda mais a algazarra. Também os “snowbirds” estão voltando. Esse é o apelido dado àquelas pessoas que não aguentam mais passar o inverno nesse frio intenso e viajam para o sul dos Estados Unidos, onde permanecem por aproximadamente seis meses. São aposentados que têm um dinheirinho a mais para isso, claro. Alguns têm veículos recreativos enormes, que são casas muito bem equipadas. Outros têm casa própria ou alugam imóveis nos locais para onde migram.
Para os trabalhadores, pobres mortais, restam as curtas férias a que têm direito. Na maioria das províncias do Canadá, o empregado pode tirar férias de 2 semanas após 1 ano de trabalho numa empresa, e adiciona-se mais uma, num total de três semanas após 5 anos. A época em que se pode tirar férias varia segundo critérios de antiguidade e de acordo com períodos disponíveis autorizados pelo empregador.
Oba! Eu podia tirar duas semanas contínuas de férias em fevereiro e uma outra semana em setembro! “Vamos a la playa”! Lá fomos nós, em fevereiro de 2010. Foi a primeira vez que eu me permiti viajar para fora do Canadá, que não fosse para ir ao Brasil.
Por que Cuba? Eu nunca tinha pensado em ir lá. Várias razões foram-me apresentadas e é claro que a principal era dar uma pausa no rigoroso inverno canadense; mesmo uma curta pausa faz grande efeito. Cuba não é muito longe daqui, pelo menos em comparação à Pátria amada; eu tive que concordar com esse argumento do meu marido, pois contávamos com pouco tempo disponível. Não é necessário tomar precauções drásticas, ou seja, não são necessárias vacinas, que seriam fortemente recomendadas se fôssemos a outros países caribenhos ou ao Brasil. Acabei me convencendo também por causa dos preços – não é caro. É um dos destinos de sol preferidos dos canadenses. O Canadá foi um dos raros países ocidentais que não cortaram relações com Cuba.
Uma das providências a tomar antes de viajar foi passar numa loja, como nossa agente de viagem havia sugerido, para comprar itens de alguma utilidade. Nada de muito sofisticado, até mesmo escovas de dente seriam apreciadas pelo povo cubano. Segundo ela, eles são carentes de tudo. Inicialmente, eu achei aquilo um pouco estranho, será que eles não iriam-se ofender? Escova de dente? Mesmo assim, fiz o que fora recomendado.
Num voo direto de Montreal a uma daquelas ilhas a nordeste de Cuba, chegamos à nossa destinação, um all-inclusive resort, que faz parte de um complexo hoteleiro ali situado, onde passamos uma semana. Impressionante a quantidade de quebequenses, parecia uma festa no Quebec.
Havia dois “pesos” em Cuba, quando lá estivemos, não sei se ainda funciona assim. Para o turista, a taxa de câmbio estava a 1,00 Dólar canadense para 0,85 Pesos, no dia em que chegamos.
Os veículos no estacionamento do hotel chamaram minha atenção. Novíssimos! Pertenciam a diretores do resort e outros eram usados para levar os turistas a passeio na pequena ilha. Onde estavam os famosos carros antigos, que tanto vemos em fotos de Cuba? Eu não entendi e fiquei até um pouco desapontada.
Os funcionários, sempre com gentileza a toda prova, além de um profissionalismo impecável, tinham, muitos deles, formação universitária e eram poliglotas, falando no mínimo 3 línguas: inglês, francês e, obviamente, espanhol. Também nada a reclamar do sol e do mar que estavam esperando por nós. Fomos de sorte, tivemos bom tempo durante toda a semana. A areia branca e fina, o mar azul-turquesa intenso! Lindo!
Aquelas lembrancinhas sugeridas pela agente de viagem foram mesmo muito apreciadas pelo pessoal que trabalhava no hotel, ela tinha razão. Mas não posso me esquecer de um vendedor de bijuterias artesanais, que tinha autorização para vender dentro do território do hotel, ao perceber que eu falava "portunhol", que era brasileira, me pareceu mais à vontade em oferecer trocar suas mercadorias por qualquer coisa que pudesse ser útil. Fui correndo ao quarto buscar alguns daqueles itens que havíamos levado, meu marido foi logo separando várias camisetas e eu disse que daria tudo e não levaria nada em troca. Prudentemente, meu marido convenceu-me a trocar sim, senão seria esmola. A alegria nos olhos do vendedor, quando lhe entreguei o que tinha, foi algo tocante. E, afinal, eu também fiquei bem contente em poder escolher uma bela bijuteria.
Como em todo resort, também não faltaram atividades e animadores para divertir os hóspedes: shows, cursos de dança, ginástica etc etc. Para a minha surpresa, em quase todos os jogos de adivinhação e testes, os temas giravam em torno de músicas e filmes americanos: de que filme é tal música? Qual o ator principal de tal filme? Isso me deixou intrigada, dada a inimizade entre Cuba e Estados Unidos. E mais, toda a equipe do hotel que animava os shows e competições, tinha um jeito engraçado de dizer adeus à pessoa que perdia nos jogos; eles diziam: "Ciao, ciao, Mickey Mouse". Eu cheguei a duvidar de que eles detestassem tanto assim os americanos e até comentei intramuros minha impressão de que após a morte de Fidel Castro, os cubanos iriam voltar aos braços dos Estados Unidos. E nem foi preciso que ele morresse, as pazes já foram feitas. Acho que o povo cubano deve estar muito alegre com isso.
De acordo com o nosso guia de turismo, o investimento nestes hotéis era uma experiência que o governo cubano estava fazendo, com 50% pagos pelo Estado e 50% privado – de um outro país que ele não revelou. Suponho que fosse a Espanha, pois toalhas, copos, tudo era “Hecho en España”. Ele também disse que existia um contrato estabelecendo datas – depois de alguns anos eles decidiriam o que fazer – nacionalizar tudo, privatizar ou manter da mesma maneira. E todo esse relato foi feito numa conferência sobre Cuba, para os turistas – coisa oficial.
Pensando nisso agora, fico me perguntando que destino terão todos os investimentos que Dilma Rousseff fez e está fazendo na ilha com o dinheiro do povo brasileiro, ou seja, retirado do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Não entendo como e o quê poderemos lucrar. Mesmo porque se o governo do Brasil sonha em ter algum retorno, é bom lembrar que o governo da ilha se reserva o direito de nacionalizar tudo o que lhe caia nas mãos, seja o que for e quando bem lhe aprouver. Será que ficaremos a ver navios?
O hotel estava ótimo, mas eu estava muito interessada em reservar uma excursão para as cidades localizadas na ilha maior, porque queria conhecer a "verdadeira Cuba", nas palavras do próprio guia cubano. Havia várias opções de excursão, eu escolhi uma que oferecia mais opções para conhecer as pessoas e as suas tradições: 75 Pesos por adulto.
Não há população residente nessas pequenas ilhas da região nordeste de Cuba, apenas hotéis. A maioria das pessoas que trabalha ali vive na cidade de Morón. Para atravessar o mar e estabelecer a comunicação entre as pequenas ilhas e a llha maior, uma estrada foi construída com rochas dispostas nas partes mais rasas do oceano. É uma estrada muito sólida que tem resistido a muitos furacões, segundo o guia. A viagem dura uma hora e meia. Então, o pessoal que trabalha no hotel gasta três horas na estrada todos os dias. A estrada é rigorosamente vigiada para impedir a passagem de pessoas não autorizadas. Os cubanos não têm direito de ir a estas ilhas, a não ser que trabalhem lá. ISSO MESMO! Só com autorização especial do governo.
Nas cidades, finalmente vi os velhos carros americanos ainda em uso. Bicicletas são muito usadas e trishaws (rickshaws) são frequentes como táxi. Visitamos uma fábrica de charutos. As mulheres desempenham um papel importante nessa produção, havia apenas mulheres ali. Um detalhe: nenhum sorriso. Achei a passagem por esta fábrica constrangedora.
Tive a impressão de muita pobreza em todos os lugares que visitamos. Pudemos constatar que consumismo realmente não é o forte lá. As lojas são lamentáveis​​, não têm quase nada, tudo é bem diferente do que estamos acostumados a ver. Na entrada das lojas, havia sempre um agente de segurança que deixava entrar uma pessoa de cada vez, só quando quem já estava lá dentro saía. Tudo muito estranho. O contraste entre os resorts e o modo de vida dos cubanos é ultrajante. Acho que um dia, isso vai fazer algum efeito na mente daquele povo. Não sei...
Nas praças e nas ruas, vi muita gente sem fazer nada – jovens e menos jovens; eles não pareciam estar trabalhando. Talvez em férias? Duvidei do que o nosso guia tinha dito sobre a ausência de desemprego em Cuba. Eles nos abordavam, por vezes com muita insistência, pedindo nossos bonés ou nos oferecendo alguma coisa. E ficavam esperando... o pagamento.
Notei uma tristeza no olhar das pessoas, mesmo quando sorriam, como nunca vi antes e isso me incomodou sobremaneira.
Visitamos também uma refinaria de açúcar – com maquinaria do tempo de antes da “Revolución”. Fomos avisados de que, se tivéssemos sorte, veríamos a refinaria em atividade. Mas não tivemos. Quando chegamos lá tudo estava parado, não entendi muito bem por que razão.
Fim da excursão, voltávamos para o hotel, quando um dos turistas do nosso grupo fez uma pergunta, com uma coragem que surpreendeu a todos:
- Por que há tantas fotos de Che Guevara, em todos os lugares em Cuba, e tão poucas de Fidel Castro?
E o guia respondeu sem hesitação:
- É normal; é porque Che Guevara está morto. Quando Fidel Castro morrer, teremos mais fotos dele também.
Fiquei pensando: Será isso mesmo? Talvez, nem Che Guevara nem Fidel Castro...

Publicado também pela KBR Editora Digital em 28 de março de 2015
http://www.kbrdigital.com.br/blog/cuba1/


segunda-feira, março 23, 2015

Cabras, escorpiões, cobras e lagartos

Nesse final de inverno canadense de 2015 d.C. – o inverno mais frio que tenho presenciado em quase 16 anos vivendo aqui – recebemos visitas diárias inusitadas: perus selvagens em bandos passam de casa em casa à procura de alimento, coisa nunca vista antes. Eles comem grãos que os passarinhos deixam cair dos comedouros, além da mistura de sal e não sei que outros ingredientes usados para derreter a neve das ruas. Estão famintos a tal ponto que deixaram de ser ariscos como de costume e têm vindo quase bater à nossa porta.
            Essa vizinhança natural com animais fez-me lembrar de tempos idos, na minha terra natal – uma associação de ideias que só pode ser explicada por um capricho de neurônios friorentos e nostálgicos, pois o cenário tem tudo do mais extremo oposto que pode haver no planeta. Minha cabeça conseguiu transformar perus selvagens nórdicos ciscando na neve em galinhas a esgaravatar a terra tórrida... E me transportei àquele pedaço do meu país, que eu acreditava ser bom e ditoso – pura inocência de uma criança.
Século XX, no final dos anos 50, início dos 60, tempos da minha infância, Belo Horizonte era uma cidade pacata com aproximadamente 600 000 habitantes. Já tinha uns ares de cidade grande, pelos privilégios de ser a capital do estado, mas era ainda pequena, tipicamente interiorana, onde todas as famílias se conheciam, ao menos pelo nome. Essa incipiente maneira de ser de metrópole desaparecia abruptamente logo que saíamos do centro comercial e da região administrativa da cidade, e nos deparávamos com um ambiente rural que se urbanizava de modo irregular, fora do projeto inicial.
Praticamente todas as casas, mesmo as dos pobres, tinham quintais com árvores frutíferas e hortas. Infalível era a presença de um galinheiro. Além da produção de ovos, vez por outra algum frango ia para a panela. Sem esquecer dos benefícios do equilíbrio ambiental, pois os galináceos controlavam bem a população de escorpiões; os que lhes escapavam eram acondicionados em vidros e levados ao órgão de saúde pública responsável pela produção de antídoto, a Fundação Ezequiel Dias... Sim, Belo Horizonte era um foco desses temidos aracnídeos.
As carroças partilhavam ruas e avenidas com os automóveis; cachorros vira-latas por toda parte e, por vezes, pequenos grupos de caprinos, a praticarem suas habilidades de alpinistas nas ruas íngremes de Belo Horizonte, compunham um cenário intrigante e divertido para nossos primos cariocas que vinham de férias todo ano e pareciam curtir a cidade, como diríamos, híbrida urbano-rural – roça, em outras palavras.
Certa vez, tivemos uma cena de filme – talvez circo seja mais adequado dizer – digna de ser imortalizada. Uma cabra em estado avançado de prenhez conseguiu subir no beiral de nossa casa, entre os dois andares. A casa de esquina tinha o beiral mais baixo de um lado e muito alto do outro, devido às diferenças de inclinação das ruas. Tendo alcançado o fim do beiral, do lado onde a distância ao chão era abissal, a cabra não podia virar-se devido à estreiteza da saliência e tampouco sabia andar de marcha à ré. Pôs-se, então, a berrar apavorada e o fato que a esperava na rua – cabras, cabritos e bode – juntaram-se em coro. Ao que toda a população das redondezas acorreu, enquanto minha mãe, desesperada na ausência do meu pai que estava no trabalho, telefonava para o Corpo de Bombeiros pedindo ajuda.
A multidão se aglomerava na rua, ansiosa, uns tentando encontrar uma solução, outros esperando o desenrolar dos acontecimentos, quando alguém anunciou a todos, em tom de importante comunicado: - “Os bombeiros já estão vindo, o problema está resolvido!” A multidão se agitou mais ainda, naquela grave expectativa. E os bombeiros não tardaram a chegar, estudaram a situação, amarra aqui, amarra ali, um deles se debruçou na janela mais próxima do local onde a gestante se encontrava e, rapidamente a tomou nos braços. Ah... Ouviu-se o suspiro aliviado e em uníssono da multidão, que aplaudiu veementemente o herói. Sã e salva, colocada de volta na rua, a cabra correu o mais rápido que pôde, saltar já não podia devido ao seu estado, e foi juntar-se aos seus companheiros, que já tinham se afastado, assustados com a multidão.
Os bombeiros são mesmo heróis, enfrentam todas as situações, não só em caso de incêndio. E não é só no Brasil, eu também já tive que chamar os bombeiros aqui no Canadá e fui prontamente atendida. Mas não foi por causa de uma cabra, obviamente. Quero registrar aqui minha homenagem ao Corpo de Bombeiros do mundo inteiro.
As favelas de Belo Horizonte estavam ainda se esboçando e as poucas famílias que se instalavam nos morros, eram de gente que vinha em busca de trabalho na nova capital e acabavam se empregando nas casas dos bairros contíguos, nas minas ou construções das proximidades.
Uma pena não terem sido tomadas providências para que essas pessoas pudessem ter melhores salários e condições de habitação. Mas as leis trabalhistas não eram seguidas e, sejamos realistas, a mentalidade escravocrata ainda persistia no subconsciente das pessoas, embora essa ideia não fosse admitida racionalmente. E Belo Horizonte, que foi uma cidade planejada inicialmente, entrou inexoravelmente no ritmo de outras grandes cidades brasileiras, desorganizadas com toda a complexidade dos problemas sócio-econômicos que se sucederam, até os dias atuais.
Naquela época, as taxas de criminalidade eram baixíssimas.  Ninguém tinha medo de outros seres humanos, portas e janelas não eram trancadas, muito menos gradeadas. Os muros das casas eram baixinhos, só mesmo à guisa de marco divisório e enfeite, e serviam também de assento para turminhas de adolescentes, que se reuniam saudavelmente às tardinhas, para bater papo e “paquerar”. Excetuando-se o alcoolismo, não havia consumo nem tráfico de drogas, isso chegou mais tarde a Belo Horizonte.
Nos fins de semana, a programação era ir à casa dos avós, mesmo porque não havia muitas outras opções de diversão. Mas como era gostoso ir à casa da nossa avó. As crianças brincavam até quando conseguiam resistir ao sono e muitos sucumbiam nos colos maternos e paternos, ou nos divãs da casa, saindo carregados. Mas eu era uma das que continuavam acesas, prestando atenção na conversa dos adultos. Não é à toa que fiquei irremediavelmente notívaga, o costume vem desde a infância. Eram comuns os debates políticos, por vezes acalorados – ainda se votava, antes da Ditadura Militar. Outras vezes, eram notícias sobre familiares, esse ou aquele viajou, o filho daquele outro vai trabalhar fora, os parentes do Rio ou do Espírito Santo vão chegar em tal data para o casamento da sobrinha ou da prima. Lá pelas 11 horas, meia-noite, fazia-se uma pausa nas conversas infindáveis, era hora de ir embora.
Ah... As estrelas, estas eram vasculhadas no céu antes do “adeusinho” final. A turma toda parava no jardim em frente à casa, ou no passeio, e punha-se a identificar as constelações, que brilhavam intensamente, sem serem ofuscadas pela iluminação da cidade; só havia luzes incandescentes em postes de madeira bem espaçados, mesmo na Avenida Getúlio Vargas, uma avenida de uma certa importância. A constelação que mais me impressionava era Escorpião, talvez pelo fato de um de meus irmãos ter quase morrido, picado por um e salvo pela injeção do antídoto.
Quando tínhamos a carona de um de meus tios, ele nos deixava até onde o carro podia ir e, com os faróis acesos, esperava que entrássemos em casa. A nossa rua não era pavimentada, embora nossa casa ficasse somente a uns 200 metros da Avenida do Contorno. Isso bastava para que fosse considerada em situação afastada da cidade. Como tudo é tão relativo!
Havia poucas casas no nosso quarteirão e a iluminação pública era precária. Lembro-me que sempre deixávamos alguma luz acesa, para iluminar o caminho de algum transeunte e, no caso de alguém precisar de ajuda, saber onde bater à porta – atualmente, deixamos luzes acesas para espantar ladrão. E muitas vezes bateram à nossa porta, para pedir socorro ao meu pai, que era médico. Era um plantão permanente. Havia até quem pensasse que nossa casa era posto de saúde... Talvez pela simplicidade.
Para além da simplicidade, havia naquela casa uma característica que causava espanto em muitos que a visitavam mais de uma vez: era o fato de estar sempre inacabada; mudavam-se portas, janelas e paredes de lugar, como se fossem móveis. Tudo era mutável... Era surreal. Mas como éramos felizes! Um dia ainda terei que escrever sobre isso...
Belo Horizonte tinha outras vantagens naqueles velhos tempos, uma delas era o clima mais ameno. Não fazia tanto calor como hoje em dia. Em qualquer época do ano, após o pôr do sol o ar refrescava, tínhamos sempre um agasalho à mão. E ir à pé para casa, tarde da noite, naquele friozinho gostoso, bem agasalhados, era um deleite. Nenhuma viv’alma nas ruas, além de nós, perigo zero. Quando chegávamos na Praça Esperanto – confluência de Contorno, Getúlio Vargas, Rua do Ouro, Rua Aimorés – éramos quase empurrados pelo vento que vinha dos lados da Serra da Piedade. Atravessávamos a praça fazendo uma diagonal, da esquina da Aimorés com Grão Pará – pertinho de onde morava a família do então Juiz Moacyr Pimenta Brant, pai do compositor Fernando Brant – passando pelo único poste de luz no centro da praça, galgávamos a esquina da Contorno com Rua Pouso Alto, do outro lado, onde moravam também outras famílias conhecidas – a esta hora todos já a sono solto, tudo fechado. O muro dos Franco tinha acabamento em pedras e havia uma obra de artista, duas pedras com o desenho perfeito dos mapas de Minas Gerais e do Brasil – achar os mapas, cada vez que passávamos por ali, era divertido, um ritual que não podia faltar.
Um quarteirão abaixo e entrávamos na nossa rua, protegidos do vento. Faltava pouco para chegar em casa. Deo gratias, dizia meu pai.

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Publicado também pela KBR Editora Digital:

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sábado, março 14, 2015

Outono nas Planícies de Abraham

Version en français

Publicado também pela Editora KBR:
http://www.kbrdigital.com.br/blog/outono-2/




Outono é outra primavera, cada folha uma flor.
Albert Camus

Ir à cidade de Quebec é como ir a Ouro Preto, ou a Salvador da Bahia, percorrer o passado que nos forjou; é revisitar histórias que traçaram nosso destino e viraram vitrine de nós mesmos. Nem sempre nos orgulhamos de tudo o que aconteceu ali, mas é o que temos. Há, pelo menos, tantos sonhos de justiça que viveram naquelas construções sólidas, na arquitetura de nossas ancestralidades.

Há um fascínio especial em caminhar pelas Planícies de Abraham, sobretudo quando sabemos que foram palco de batalhas que decidiram o futuro do Canadá. Impossível andar por ali sem pensar nisso, apesar de hoje ser um parque que nos transmite tanta paz.

Igualmente tocante pensar que a cidadela, no alto das planícies, já foi local de reuniões secretas dos Aliados para decidir estratégias que mudariam o rumo do planeta, uma delas a reunião entre Roosevelt, Churchill e o então Primeiro Ministro do Canadá, Mackenzie King, encontro que estabeleceu planos para dar fim à Segunda Guerra Mundial.

Absorta nesses pensamentos, estava eu passeando no parque, numa manhã de domingo, desses de céu azul, azul, sem nuvens. Era outono. Cheguei cedo para desfrutar do silêncio. Enquanto a cidade parecia ainda adormecida, o parque não dormia. Como sempre à escuta, oferecia seus mimos aos visitantes. Pequenos passarinhos, com sua habitual retórica, também lá estavam, balbuciando saudações matinais.

A natureza estava especialmente eloquente naquele dia. As folhas outonais, já caídas em grande número, estalavam esmagadas pelos meus passos, e aquelas que ainda estavam presas aos galhos das árvores resistiam ao vento e murmuravam velhas histórias de memórias distantes, ao sol tépido da manhã. Sentei-me em um banco no alto do parque, de onde podia admirar a beleza da paisagem, tendo diante de mim a vastidão do Rio São Lourenço, bom pano de fundo para o livro que queria ler.

Mal comecei a primeira página e percebi que chegava uma pessoa; com certa hesitação, sentou-se num banco quase em frente ao meu, de costas para o rio. Era um senhor idoso, pensei, e logo me corrigi: se o considero idoso, ele deve ser bem velho, pois idosa já estou eu, mesmo que na cabeça ainda me sinta jovem. Quando finalmente se sentou, levantei os olhos discretamente para vê-lo melhor e, um pequeno sobressalto, ele também me olhava, com um ligeiro sorriso. Sorri também, e gaguejei um bom-dia. Ao que ele me respondeu que eu tinha a melhor vista do parque sentada naquele banco, que era seu favorito. Mais que depressa levantei-me e cedi-lhe o lugar, dizendo que minha intenção era ler, onde quer que eu ficasse seria bom.

— Há espaço para os dois, se não se importar — disse ele, vindo sentar-se no meu banco. — A senhora é madrugadora, chegou antes de mim.

— Desculpe-me, estou de passagem, não moro na cidade — retruquei, tentando ser amável e, ao mesmo tempo, tranquilizando-o quanto ao fato de que o lugar no banco não seria ocupado todos os dias.

Ele continuou sua conversa, que parecia mais um relatório de vida, fazendo-me concluir que não conseguiria avançar muito na leitura. Mas não me importei; ele parecia simpático e inofensivo e, visivelmente, estava precisando conversar.

— Depois que me aposentei, venho quase todos os dias respirar o ar puro do parque. Às vezes, eu vinha com minha esposa, antes da doença.

Ficou pensativo por um momento e prosseguiu:

— Hoje, penso naqueles tempos felizes da nossa juventude. Minha mulher e eu vivemos em tempos mais difíceis, não havia todos os recursos que há hoje para criar uma família, mas as preocupações eram todas superáveis. Depois, momentos dolorosos vieram e perdi minha companheira na batalha pela vida. Justamente eu, que salvei a vida de muitos, não pude fazê-lo para a pessoa que amava tanto. Mas tenho a sensação de missão cumprida, porque estive sempre ao seu lado para confortá-la e dar-lhe tudo de que ela precisava… Tudo o que era possível.

— O senhor fez muito bem, se todos soubessem que ajudar a quem amamos pode fazer-nos um bem ainda maior do que ao outro…

Após a morte de sua doce companheira, ele vendera a casa onde moravam e, como tantas outras pessoas da sua idade, optara por morar em um apartamento, num edifício desses construídos para abrigar idosos que ainda são autônomos, capazes de cuidarem de si próprios. Ali ele esperava continuar, sem incomodar ninguém, até que viesse o momento de se juntar à sua querida.

E acrescentou:

— Desculpe-me incomodá-la com minhas histórias, por favor, continue sua leitura; tenho um compromisso, estou esperando alguém, não demorarei muito por aqui hoje. Dizendo isso, recostou-se, como quem não tem pressa.

Tenho a impressão de que as pessoas aqui no Canadá encaram o envelhecimento e a morte com mais serenidade, com mais naturalidade.

Consegui ler algumas poucas linhas, enquanto o meu vizinho de banco cochilava. Aos poucos, outras pessoas chegavam ao parque, podia-se ouvir os gritinhos e as risadas alegres das crianças. Minha concentração na leitura esvaiu-se completamente no voo de dois lindos gaios azuis, que soltavam seus gritos com pleno vigor. Uma pequena rajada de vento cobriu nosso banco de folhinhas miúdas, como uma chuva de estrelas douradas. Pensei que, com tudo isso, o nosso dorminhoco acordaria, mas não, ele devia estar acostumado.

O sol preguiçoso de domingo se levantava e aquecia o parque. Olhei para as árvores em volta e percebi que as cores já tinham mudado muito. Havia vermelhos em vários tons, havia amarelo e laranja, verdes ainda vários… As folhas estavam brilhantes, pareciam ter luz própria. O outono estava em sua plenitude, o ciclo da vida seguia sua jornada com muita graça e, acima de tudo, sem sofrimento. Identifiquei-me com a natureza, tive a impressão de integrar-me a esse cenário esplêndido e completo em sua dimensão. Por alguns instantes, não senti necessidade de fazer perguntas, compreendi e aceitei minha condição humana intuitivamente.

Um grande suspiro reteve a respiração do senhor ao meu lado por tanto tempo que ele acordou de seu cochilo, assustado. E percebeu uma lágrima descendo de seu olho esquerdo, sem o seu consentimento… Uma lágrima pesada, que seus dedos enxugaram instintivamente.

— Doutor!

Meu amigo teve um sobressalto quando ouviu este chamamento, certamente cada vez mais raro depois da aposentadoria. Olhou para o lado de onde vinha o chamado inesperado e viu um homem que parecia ainda mais velho, e corria em sua direção. Em boa forma, apesar da idade, o homem aproximou-se rapidamente, com um grande sorriso.

— Você me reconhece? Fui seu paciente durante muito tempo e você me curou.

Pelo semblante do doutor, pude concluir que ele não o reconhecera, mas ficou aliviado que seu paciente tivera a gentileza de se identificar e ainda mais feliz em saber que tudo correra bem após o tratamento.

— E como está sua saúde agora? Você parece estar muito bem.

O velho senhor fez um breve relato de seu estado de saúde, concluindo rapidamente que tudo estava bem e que estava muito feliz. Mas não podia ficar ali por muito tempo, tinha uma reunião dominical com os filhos. E acrescentou que tinha sido um presente tê-lo encontrado mais uma vez, para agradecer-lhe por tudo. Em seguida, desapareceu rapidamente em seu caminho, como se fosse um anjo que apenas viera transmitir uma mensagem.

Depois que o paciente se foi, meu amigo confessou-me que aquele encontro fora uma grande recompensa, tinha ficado contente em ver seus esforços reconhecidos.

Neste momento, ouvimos os gritinhos alegres de seus netos o chamando, e ele me explicou que era seu filho mais novo que vinha buscá-lo, acompanhado de sua nora e netos; todos pareciam radiantes com o encontro. Apontando para Jérôme, o neto mais novo, ele disse: este tem os olhos suaves de minha mulher. E voltando-se para Marie-Ève, contou-me que ela também tinha herdado algo de sua avó: o mais belo sorriso do mundo.

Era hora de partir, ele também, para a sua reunião dominical com a família. Tomou Jérôme nos braços e Marie-Ève deu-lhe a mão — seu filho e sua nora caminhando na frente, o avô atrás, com os netos e muitas histórias, lá se foram eles lentamente, deixando no parque vestígios radiosos de vida.

Compreendi a serenidade daquele avô. Ele teve a chance de viver num mundo civilizado que ajudou a edificar. Apesar de todas as dificuldades que teve que enfrentar, tinha feito a sua parte, tanto profissionalmente como em família. Seus filhos tinham sido bem educados, escolhido bem suas companheiras e estavam transmitindo essa boa herança para seus netos. Ele havia ajudado a povoar a Terra com pessoas boas, de bons princípios — isso valia os sacrifícios vividos, e poderia morrer em paz. Não havia sido inútil ter feito o melhor que pôde. Essa ideia me pareceu clara o bastante.

Fiquei ali nas Planícies de Abraham, esperando meu marido, para irmos almoçar juntos. Ainda não era minha hora de partir.

sábado, março 07, 2015

Brasil x Canadá



 Crônica publicada também pela Editora KBR
http://www.kbrdigital.com.br/blog/brasilxcanada/


Não me esqueço do que me disse uma prima certa vez, quando retornei ao Brasil, numa tentativa frustrada de levar meu marido para viver lá: se eu decidisse me mudar definitivamente para o Canadá, teria que abrir meu coração para acolher a nova terra e seus costumes; para dar certo teria que me desapegar. Segui seu conselho, e isso apaziguou meu dilema.
Mas parece que temos raízes invisíveis que nunca se despregam de nossas origens. Há sempre um pensamento latente que nos conecta à terra que nos viu nascer, que nos alimentou. Existe um elo inquebrantável com nossas origens, que nos garante o sentimento de pertença, que nunca nos deixa órfãos. E isso é reconfortante.
Perdi a conta das vezes em que me perguntaram aqui no Canadá se eu não me sentia desenraizada em demasia. Não, eu nunca me senti assim, talvez por ter seguido o conselho de minha prima, ao mesmo tempo mantendo o elo com minhas origens. Acabei por me adaptar à minha dupla cidadania, essa quase dupla personalidade.
                Vivendo nessa dualidade, parece inevitável fazer comparações. Quando não partem de meus próprios pensamentos, é algum canadense que me faz perguntas que geram comparações. Em geral, suas perguntas envolvem costumes tão corriqueiros nos dois países ou itens que o Canadá produz e dos quais seus cidadãos se orgulham. E com razão, pois a performance que o país consegue ter com um clima tão difícil, é mesmo para se orgulhar.
                Devo confessar, porém, que já fiquei irritada algumas vezes com essas indagações sobre o Brasil. Mas não sou uma boa conhecedora de dados de produção do Brasil, infelizmente, desculpem-me. Daí, quando me perguntam “Tem maçã no seu país?” respondo simplesmente: "Sim, tem maçã lá, sim," Esta é uma dos milhares de perguntas que já tive que responder.
Depois, pesquiso na internet e descubro que o Brasil está entre os maiores produtores; no caso da maçã, atualmente é o 11º no mundo. Casos semelhantes, até em que a situação é ainda melhor, aconteceram inúmeras vezes. Nos primeiros tempos aqui, eu vinha logo com a informação colhida sobre o Brasil e soltava os dados ao interlocutor.
Parei de fazer isso, primeiro porque podem pensar que sou megalomaníaca, não vão sequer se dar ao trabalho de conferir. Segundo, porque as perguntas não me irritam mais. Se eu própria não conheço todos os dados sobre o Brasil, eles é que deveriam saber? Percebi a absurda futilidade da irritação e a completa inutilidade de responder com precisão. Eles vão continuar enxergando o Brasil como o país do carnaval, das favelas e, agora, em primeiro plano, o país da corrupção. É essa a imagem que chega aqui, os documentários e noticiários sobre o Brasil são todos acerca desses assuntos.
Não, não me esqueci do futebol! É que no Canadá o interesse pelo “soccer” é praticamente nulo entre os adultos. Já ouviram falar de Pelé e olhe lá. Só mesmo nas escolas, as crianças tomam algum gosto quando passam pela temporada do futebol, durante o curto verão. E depois perdem o interesse. Então, é muito raro aparecerem notícias sobre esse esporte de poucos gols, muito monótono (sic). 
Até há bem pouco tempo atrás, nem a Copa do Mundo da FIFA era transmitida nos canais gratuitos de televisão, eu tive que fazer assinatura de canais especializados em esporte para assistir aos jogos. Porque eu ainda tinha aquela mania de torcer ardentemente pelo Brasil, nas Copas do Mundo. Mas acho que nunca mais recuperarei esse gosto, depois dos Jogos de 2014. Até no futebol o Brasil está decadente e nos deixando envergonhados. Por que tudo tem que ser exagerado? Ou se ganha muito ou se perde muito também. 7 x 1 não é placar de jogo de futebol! Não sei o que é, mas não é futebol.
Voltando às questões das comparações e analisando-as por um outro ângulo, são tantos produtos que o Canadá tem que importar, pela absoluta impossibilidade de cultivá-los no clima que possui, que é compreensível que os canadenses pensem que outros países também tenham dificuldades, quando se trata de um produto que existe aqui... Se existe aqui, não deve existir lá? Talvez por isso se interroguem sobre coisas que nos parecem tão óbvias no Brasil.
O mais provável, entretanto, é que não concebam a ideia de que uma nação no estado miserável de corrupção e desgoverno em que se encontra, possa corresponder a um país tão produtivo. Não me dizem isso, mas devem pensar.
Diga-se de passagem, os aviões fazem parte de um capítulo à parte. As rixas e conflitos entre as duas empresas concorrentes, de um e de outro país, ocuparam espaço na mídia por um bom tempo, ninguém ficou alheio à situação, não há perguntas. Nem eu teria respostas sobre a empresa brasileira e me dá até medo de pesquisar sobre o assunto.
Enfim, de tudo isso eu tirei uma lição: aprendi mais uma vez que o Brasil tem uma capacidade impressionante e não sabe aproveitá-la. Só mesmo muita, muita farsa para explicar por que ainda continuam existindo pobres num país tão rico como o Brasil.
Todos os governantes que o Brasil já teve se vangloriaram de seus bem-feitos para com os pobres do país... E, no entanto, continuamos praticamente na estaca zero. Ou até pior, pois as estatísticas estão dizendo que o número de miseráveis aumentou. Que decepção! Quisera eu que o meu país também tivesse bom desempenho nesse quesito, que deveria ser considerado essencial. Se toda a população vivesse bem, seria melhor para todos. Bem, talvez não para os políticos, pois não teriam mais esse item para alimentar seus discursos populistas e se elegerem às custas dos ingênuos... digamos assim.
Xô, farsantes!
Como é difícil sair desse círculo vicioso que leva os responsáveis pela gestão do país a repetirem modelos ultrapassados de governabilidade e populismo, como se estivéssemos num “loop” infinito. E com a incompetência generalizada que tomou conta do poder, ultimamente, o Brasil entrou numa espiral de decadência que está desiludindo e preocupando mesmo os mais otimistas.
Se ao menos aparecesse um líder honesto, competente e corajoso, livre de amarras com antigos ou atuais governos, com disposição para enfrentar a dura batalha de endireitar a nação... Triste, porém, é constatar que mesmo se aparecesse um líder com essas características, a maior parte da população brasileira – pelo menos a metade dela, como pudemos constatar nas últimas eleições de 2014, que reelegeram Dilma Rousseff – essa metade, que não é minha cara, não votaria nele, pois só tem olhos para candidatos populistas. Falta o mínimo discernimento para escolher o que é realmente bom para o povo e, portanto, para o país. E todos ficam a mercê dessas escolhas nefastas.
Penso que não verei minha Pátria amada recobrar os sentidos, se isso acontecer um dia. Ela foi e está sendo vilipendiada em toda a sua estrutura, um processo de recuperação será demorado. A cada dia, um novo escândalo vem à tona, mostrando que todos os setores do país estão corrompidos. A cada dia que passa, mais decepções para quem ainda tinha alguma esperança.
Estou com vergonha de ser brasileira e quase sem forças para retomar algum ânimo no que se refere à confiança nos governos do Brasil. Mas a idéia de um líder desapegado de discursos desgastados, como disse acima, é atraente e precisamos tomar providências para isso. Em vez de esperarmos virem as campanhas para as próximas eleições, poderíamos surpreender esses partidos todos, antecipando-nos com uma campanha do povo, talvez usando as redes sociais, que têm-se mostrado tão eficazes. Começaríamos por exigir a participação na escolha de pré-candidatos, porque depois que eles já são candidatos, ficamos de pés e mãos atados, sem outras opções. E estabeleceríamos os critérios desejados, entre eles transparência 100% e alguém que não esteja diretamente envolvido em governos passados e atuais!
A escolha de pré-candidatos com participação mais efetiva do povo seria, filosoficamente, um sistema semelhante às “primárias” dos Estados Unidos.
Que acham de uma campanha assim, antecipada? “Fica a dica”, a ser estudada...

terça-feira, março 03, 2015

Floresta Sem Lobo Mau

Crônica também publicada pela Editora KBR
http://www.kbrdigital.com.br/blog/floresta-sem-lobo-mau/



Durante meus primeiros anos no Canadá, convenci-me de que todas essas mudanças sazonais eram encantadoras, e, a cada estação que chegava, me punha a admirá-la; por vezes, até surpreendia os nativos, que me achavam valente e resistente, diante de tantas intempéries. Realmente, são paisagens lindas e diferentes, sobretudo para quem, como eu, vem de um país tropical: um mesmo lugar muda completamente de aspecto a cada estação do ano.

Ultimamente, porém, comecei a perceber que já estou bem avançada no processo de assimilação, incorporada à nação canadense, ao Quebec, mais precisamente.  Ou seja, como todo quebequense, já estou cansada desses longos invernos, com frio intenso e sem muita trégua. Só no mês de fevereiro foram raras as noites em que tivemos temperaturas acima de 20°C negativos. Além disso, começa a dar um desânimo por ter que abrir caminho na neve todos os dias, deixar passar um é suficiente para que a neve se torne dura como rocha. E aí, só mesmo quando a primavera chegar, coisa incerta por estas bandas de cá.

Há empresas que oferecem o serviço de remoção da neve a domicílio. Mas, qual o quê! O homem da casa prefere ele mesmo se ocupar do assunto, economizando um dinheirinho ao mesmo tempo que se diverte dirigindo um veículo tão prático como a pequena souffleuse. A maioria dos homens gosta de brincar de “carrinho”, não é?

Bem, isso é verdade no início do inverno. Mas após 5, 6 meses tendo que ir lá fora a cada vez que passa o caminhão que limpa a rua, o snowplow — ou charrue à neige em bom “québécois” —, e deixa um muro de neve na entrada da sua casa, aí o divertimento passa a ficar menos interessante. Mas vale a economia, o inverno vai acabar logo, logo, é um bom exercício físico — são as justificativas para dar força a continuar na batalha. Ufa!

Por essas e por outras é que já aprendi todo o repertório de palavrões do quebequense que, diga-se de passagem, é único no mundo inteiro. Resultado da revolta do povo contra o Catolicismo, os termos são todos provenientes do que é sagrado para a Igreja Católica, blasfêmias consideradas, por eles mesmos, os piores palavrões que existem. Mas este é um “casinho filhote”, como diria minha mãe. Vamos deixar o assunto para uma outra vez.

Não vejo a hora de degustar os primeiros sinais de primavera, e ela está chegando aqui no Hemisfério Norte: a gente vai insistindo na ideia, e um dia ela chega. Brevemente entraremos na Temporada do Açúcar no Canadá, entrará em cena novamente o maple syrup (sirop d’érable). Os Estados Unidos são também produtores importantes, mas a província do Quebec é de longe a maior produtora, responsável pela maior parte da produção mundial.

Adoro quando chega o “Temps des Sucres”, pois é sinal de que o longo inverno está acabando… prenúncio da primavera! É doce, mas não é ilusão.

A obviedade do fato de sermos parte integrante da terra é mais evidente nessas altas latitudes. A gente entra no ritmo. O burburinho começa nas florestas de ácer (maple/ érable), as cabanas de açúcar literalmente a todo vapor. As raízes das árvores se espreguiçam e a seiva começa a subir: é sangue novo que circula.

Todo ano se repete o ritual de fazer o sirop d’érable, uma tradição herdada dos ameríndios e muito apreciada por aqui. Embora haja uma produção enorme usando modernos sistemas, existem ainda muitas cabanas de açúcar que utilizam o tradicional método rústico: faz-se um orifício no tronco da árvore e coloca-se o balde para coletar a seiva. Em seguida, esta “água” é fervida em grandes recipientes, dentro da cabana. Por evaporação, a seiva é concentrada para se transformar no syrup 100% natural.

Nos fins de semana, famílias e amigos costumam se reunir nas cabanas para se regalarem com pratos típicos, tocar acordeon e cantar canções folclóricas, ou simplesmente para se divertir enquanto ajudam nos trabalhos. Cada um toma para si uma tarefa.

Andar na floresta não é tão fácil como parece, e isso até que ajuda a perder os quilinhos a mais adquiridos durante o inverno. E por mais que a tecnologia tenha tornado as roupas e as botas de inverno mais leves, elas ainda representam uma considerável sobrecarga, quando se trata de sair coletando essa água toda para levar para a cabana. Quando ainda resta muita neve no solo, a gente não sabe se o pé vai afundar ou não, se vai pisar em algum galho quebrado, ou numa rocha, e se desequilibrar. Não tendo esse costume, pode-se imaginar a lentidão na qual me locomovo e os risos que provoco, a começar pelos do meu marido. Resultado: prefiro ficar na cabana para lavar a louça. Lá fora, só mesmo para bater fotos e respirar o ar puro, sem medo do lobo mau.

A cabana de açúcar faz pensar em um lugar de druida, como se estivéssemos num mundo mágico a nos deliciarmos com uma poção que está sendo preparada. O foguista, aquele que põe lenha na fornalha, é também quem calibra a “poção” ao ponto certo. A água se converte em açúcar. Uma nuvem doce nos envolve, o cheiro é doce, um gosto açucarado nos invade o paladar. O vapor açucarado se condensa no teto e cai em gotas sobre nossos corpos, e é o foguista que opera o milagre dessa transformação.

Os milagres não acabam mais: é água virando creme, caramelo, bombom, bala… Toda a doçura do mundo na cabana.

Aí… tudo vira primavera!

Flor de Cacto

Minha estreia como cronista da Editora KBR
http://www.kbrdigital.com.br/blog/flor-de-cacto/




A neve é a prova viva, gelada, mas viva, de que estou no primeiro mundo! Quanto mais frio melhor! 
(Noga Sklar, 18 de fevereiro de 2015)

Hoje, embora o inverno no lugar onde vivo esteja com tantos graus negativos, estou tão alegre em estrear como cronista que meu texto vem com pensamentos positivos. E foi neste frio intenso que brotou-me uma idéia, como brotam as flores dos cactos, que nos surpreendem, em terreno árido e adverso, com suas formas variadas e coloridas, às vezes bizarras.

Foi a frase da escritora Noga Sklar, que coloquei como epígrafe, que me deixou pensativa… E da neve, tão branquinha, surgiu a pergunta: será que o ser humano necessita da adversidade para se desenvolver?

Reparem como os países do chamado primeiro mundo estão todos localizados em terras que não são produtivas o ano inteiro. Há exceções, eu sei, e também há muitas outras explicações possíveis, como jogos de poder e outras cositas más. Mas não parece lógico que a necessidade do esforço para sobreviver possa ter formado populações mais desenvolvidas, digamos assim, para se organizarem melhor?

Não sou estudiosa do assunto, mas não posso deixar de fazer comparações entre dois extremos em termos de clima: meu país de origem, o Brasil, onde vivi a maior parte da minha vida — terra que “em se plantando, tudo dá”, como já dizia Pero Vaz de Caminha, e com recursos naturais abundantes, um verdadeiro paraíso tropical; e o Canadá, onde vivo há 15 anos, um país considerado por muitos como terra inóspita — quelques arpents de neige, nas palavras depreciativas de Voltaire, para influenciar o rei da França no século XVIII a abandonar a guerra contra a Inglaterra na disputa das terras do Canadá.

Houve um grande engano nessa avaliação, e os ingleses saíram ganhando bem mais que “alguns hectares de neve”. O Canadá é um país também muito rico em recursos naturais, mas para obter lucro com esses recursos, foi, e ainda é preciso muito sacrifício, para superar as condições climáticas inclementes. E este país de primeiro mundo, com excelente qualidade de vida, como é hoje o Canadá, não teve ajuda de mão de obra escrava, diga-se de passagem.

E quanto ao Brasil? Com tudo o que tinha para ser não só grande, mas também grandioso, por que continua com todas as mazelas de um país de terceiro mundo? Os séculos passam e os problemas não se resolvem. O que foi feito antes, ou deixou de ser feito, não é desculpa para não agir no momento em que se tem a faca e o queijo nas mãos — e já há mais de uma década que o partido que está no poder vem colocando a responsabilidade nos seus predecessores, como fez novamente, no seu mais recente discurso, a Sra. Dilma Roussef. E assim caminha o país, num empurra-empurra de culpas e responsabilidades, enquanto aumenta, cada vez mais, a já exorbitante corrupção.

Apesar das decepções constantes com o Brasil, eu me preocupo com ele. E é por isso que, afinal, é para ele que se dirigem meus pensamentos positivos: ao meu pobre Brasil, “tão longe, de mim distante”. Que, de tão rico, está ficando pobre, a seca se alastrando, crimes de toda espécie e a permissividade a eles se avolumando… E uma estranha apatia instalada — idiopática. Será que o Brasil deixará de ser um dia o país rico que foi ou que poderia ter sido? Será que a ganância conseguirá, enfim, dar cabo de tudo? Será que as evidências de que isso já está acontecendo poderão mudar a mentalidade das pessoas, fazer com que elas se esforcem e se organizem melhor?

Será que vai ser preciso nevar bastante em todo o território brasileiro, para que se tomem providências? Um fato incontestável é que quando saimos à rua aqui no Canadá, atolados em alguns centímetros de neve e vestidos como ursos para não morrermos de hipotermia, certamente não encontramos um bandido esperando na próxima esquina para nos assaltar. Ele teria virado estátua de gelo em pouco tempo.

Mas não precisamos chegar a esse ponto!

Minha esperança, meu desejo, é de que as adversidades pelas quais o Brasil passa no momento — problemas climáticos e desgovernos — sirvam de lição para que venham mudanças, para que vozes e mais vozes se levantem contra a apatia que congela mais que as baixas temperaturas. Se é na adversidade que evoluímos, eis aí o momento.

Entre outras maneiras, precisamos apoiar a imprensa, que denuncia aquilo que está errado e que nos lembra de que ainda existe quem pense honestamente.

Hoje, estou muito contente mesmo, pois ganhei um instrumento precioso que é o de poder comunicar o que penso através de crônicas! Para estrear, quis levantar minha voz para o bem do meu amado Brasil. E espero poder usar esse canal para muitas mensagens que possam florir, mesmo que, por vezes, sejam apenas cactos no deserto.