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Outono é outra primavera, cada folha uma flor.
Albert Camus
Ir à cidade de Quebec é como ir a Ouro Preto, ou a Salvador da Bahia,
percorrer o passado que nos forjou; é revisitar histórias que traçaram
nosso destino e viraram vitrine de nós mesmos. Nem sempre nos orgulhamos
de tudo o que aconteceu ali, mas é o que temos. Há, pelo menos, tantos
sonhos de justiça que viveram naquelas construções sólidas, na
arquitetura de nossas ancestralidades.
Há um fascínio especial em caminhar pelas Planícies de Abraham,
sobretudo quando sabemos que foram palco de batalhas que decidiram o
futuro do Canadá. Impossível andar por ali sem pensar nisso, apesar de
hoje ser um parque que nos transmite tanta paz.
Igualmente tocante pensar que a cidadela, no alto das planícies, já
foi local de reuniões secretas dos Aliados para decidir estratégias que
mudariam o rumo do planeta, uma delas a reunião entre Roosevelt,
Churchill e o então Primeiro Ministro do Canadá, Mackenzie King,
encontro que estabeleceu planos para dar fim à Segunda Guerra Mundial.
Absorta nesses pensamentos, estava eu passeando no parque, numa manhã
de domingo, desses de céu azul, azul, sem nuvens. Era outono. Cheguei
cedo para desfrutar do silêncio. Enquanto a cidade parecia ainda
adormecida, o parque não dormia. Como sempre à escuta, oferecia seus
mimos aos visitantes. Pequenos passarinhos, com sua habitual retórica,
também lá estavam, balbuciando saudações matinais.
A natureza estava especialmente eloquente naquele dia. As folhas
outonais, já caídas em grande número, estalavam esmagadas pelos meus
passos, e aquelas que ainda estavam presas aos galhos das árvores
resistiam ao vento e murmuravam velhas histórias de memórias distantes,
ao sol tépido da manhã. Sentei-me em um banco no alto do parque, de onde
podia admirar a beleza da paisagem, tendo diante de mim a vastidão do
Rio São Lourenço, bom pano de fundo para o livro que queria ler.
Mal comecei a primeira página e percebi que chegava uma pessoa; com
certa hesitação, sentou-se num banco quase em frente ao meu, de costas
para o rio. Era um senhor idoso, pensei, e logo me corrigi: se o considero idoso, ele deve ser bem velho, pois idosa já estou eu, mesmo que na cabeça ainda me sinta jovem.
Quando finalmente se sentou, levantei os olhos discretamente para vê-lo
melhor e, um pequeno sobressalto, ele também me olhava, com um ligeiro
sorriso. Sorri também, e gaguejei um bom-dia. Ao que ele me respondeu
que eu tinha a melhor vista do parque sentada naquele banco, que era seu
favorito. Mais que depressa levantei-me e cedi-lhe o lugar, dizendo que
minha intenção era ler, onde quer que eu ficasse seria bom.
— Há espaço para os dois, se não se importar — disse ele, vindo
sentar-se no meu banco. — A senhora é madrugadora, chegou antes de mim.
— Desculpe-me, estou de passagem, não moro na cidade — retruquei,
tentando ser amável e, ao mesmo tempo, tranquilizando-o quanto ao fato
de que o lugar no banco não seria ocupado todos os dias.
Ele continuou sua conversa, que parecia mais um relatório de vida,
fazendo-me concluir que não conseguiria avançar muito na leitura. Mas
não me importei; ele parecia simpático e inofensivo e, visivelmente,
estava precisando conversar.
— Depois que me aposentei, venho quase todos os dias respirar o ar
puro do parque. Às vezes, eu vinha com minha esposa, antes da doença.
Ficou pensativo por um momento e prosseguiu:
— Hoje, penso naqueles tempos felizes da nossa juventude. Minha
mulher e eu vivemos em tempos mais difíceis, não havia todos os recursos
que há hoje para criar uma família, mas as preocupações eram todas
superáveis. Depois, momentos dolorosos vieram e perdi minha companheira
na batalha pela vida. Justamente eu, que salvei a vida de muitos, não
pude fazê-lo para a pessoa que amava tanto. Mas tenho a sensação de
missão cumprida, porque estive sempre ao seu lado para confortá-la e
dar-lhe tudo de que ela precisava… Tudo o que era possível.
— O senhor fez muito bem, se todos soubessem que ajudar a quem amamos pode fazer-nos um bem ainda maior do que ao outro…
Após a morte de sua doce companheira, ele vendera a casa onde moravam
e, como tantas outras pessoas da sua idade, optara por morar em um
apartamento, num edifício desses construídos para abrigar idosos que
ainda são autônomos, capazes de cuidarem de si próprios. Ali ele
esperava continuar, sem incomodar ninguém, até que viesse o momento de
se juntar à sua querida.
E acrescentou:
— Desculpe-me incomodá-la com minhas histórias, por favor, continue
sua leitura; tenho um compromisso, estou esperando alguém, não demorarei
muito por aqui hoje. Dizendo isso, recostou-se, como quem não tem
pressa.
Tenho a impressão de que as pessoas aqui no Canadá encaram o
envelhecimento e a morte com mais serenidade, com mais naturalidade.
Consegui ler algumas poucas linhas, enquanto o meu vizinho de banco
cochilava. Aos poucos, outras pessoas chegavam ao parque, podia-se ouvir
os gritinhos e as risadas alegres das crianças. Minha concentração na
leitura esvaiu-se completamente no voo de dois lindos gaios azuis, que
soltavam seus gritos com pleno vigor. Uma pequena rajada de vento cobriu
nosso banco de folhinhas miúdas, como uma chuva de estrelas douradas.
Pensei que, com tudo isso, o nosso dorminhoco acordaria, mas não, ele
devia estar acostumado.
O sol preguiçoso de domingo se levantava e aquecia o parque. Olhei
para as árvores em volta e percebi que as cores já tinham mudado muito.
Havia vermelhos em vários tons, havia amarelo e laranja, verdes ainda
vários… As folhas estavam brilhantes, pareciam ter luz própria. O outono
estava em sua plenitude, o ciclo da vida seguia sua jornada com muita
graça e, acima de tudo, sem sofrimento. Identifiquei-me com a natureza,
tive a impressão de integrar-me a esse cenário esplêndido e completo em
sua dimensão. Por alguns instantes, não senti necessidade de fazer
perguntas, compreendi e aceitei minha condição humana intuitivamente.
Um grande suspiro reteve a respiração do senhor ao meu lado por tanto
tempo que ele acordou de seu cochilo, assustado. E percebeu uma lágrima
descendo de seu olho esquerdo, sem o seu consentimento… Uma lágrima
pesada, que seus dedos enxugaram instintivamente.
— Doutor!
Meu amigo teve um sobressalto quando ouviu este chamamento,
certamente cada vez mais raro depois da aposentadoria. Olhou para o lado
de onde vinha o chamado inesperado e viu um homem que parecia ainda
mais velho, e corria em sua direção. Em boa forma, apesar da idade, o
homem aproximou-se rapidamente, com um grande sorriso.
— Você me reconhece? Fui seu paciente durante muito tempo e você me curou.
Pelo semblante do doutor, pude concluir que ele não o reconhecera,
mas ficou aliviado que seu paciente tivera a gentileza de se identificar
e ainda mais feliz em saber que tudo correra bem após o tratamento.
— E como está sua saúde agora? Você parece estar muito bem.
O velho senhor fez um breve relato de seu estado de saúde, concluindo
rapidamente que tudo estava bem e que estava muito feliz. Mas não podia
ficar ali por muito tempo, tinha uma reunião dominical com os filhos. E
acrescentou que tinha sido um presente tê-lo encontrado mais uma vez,
para agradecer-lhe por tudo. Em seguida, desapareceu rapidamente em seu
caminho, como se fosse um anjo que apenas viera transmitir uma mensagem.
Depois que o paciente se foi, meu amigo confessou-me que aquele
encontro fora uma grande recompensa, tinha ficado contente em ver seus
esforços reconhecidos.
Neste momento, ouvimos os gritinhos alegres de seus netos o chamando,
e ele me explicou que era seu filho mais novo que vinha buscá-lo,
acompanhado de sua nora e netos; todos pareciam radiantes com o
encontro. Apontando para Jérôme, o neto mais novo, ele disse: este tem
os olhos suaves de minha mulher. E voltando-se para Marie-Ève, contou-me
que ela também tinha herdado algo de sua avó: o mais belo sorriso do
mundo.
Era hora de partir, ele também, para a sua reunião dominical com a
família. Tomou Jérôme nos braços e Marie-Ève deu-lhe a mão — seu filho e
sua nora caminhando na frente, o avô atrás, com os netos e muitas
histórias, lá se foram eles lentamente, deixando no parque vestígios
radiosos de vida.
Compreendi a serenidade daquele avô. Ele teve a chance de viver num
mundo civilizado que ajudou a edificar. Apesar de todas as dificuldades
que teve que enfrentar, tinha feito a sua parte, tanto profissionalmente
como em família. Seus filhos tinham sido bem educados, escolhido bem
suas companheiras e estavam transmitindo essa boa herança para seus
netos. Ele havia ajudado a povoar a Terra com pessoas boas, de bons
princípios — isso valia os sacrifícios vividos, e poderia morrer em paz.
Não havia sido inútil ter feito o melhor que pôde. Essa ideia me
pareceu clara o bastante.
Fiquei ali nas Planícies de Abraham, esperando meu marido, para irmos almoçar juntos. Ainda não era minha hora de partir.
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