segunda-feira, março 23, 2015

Cabras, escorpiões, cobras e lagartos

Nesse final de inverno canadense de 2015 d.C. – o inverno mais frio que tenho presenciado em quase 16 anos vivendo aqui – recebemos visitas diárias inusitadas: perus selvagens em bandos passam de casa em casa à procura de alimento, coisa nunca vista antes. Eles comem grãos que os passarinhos deixam cair dos comedouros, além da mistura de sal e não sei que outros ingredientes usados para derreter a neve das ruas. Estão famintos a tal ponto que deixaram de ser ariscos como de costume e têm vindo quase bater à nossa porta.
            Essa vizinhança natural com animais fez-me lembrar de tempos idos, na minha terra natal – uma associação de ideias que só pode ser explicada por um capricho de neurônios friorentos e nostálgicos, pois o cenário tem tudo do mais extremo oposto que pode haver no planeta. Minha cabeça conseguiu transformar perus selvagens nórdicos ciscando na neve em galinhas a esgaravatar a terra tórrida... E me transportei àquele pedaço do meu país, que eu acreditava ser bom e ditoso – pura inocência de uma criança.
Século XX, no final dos anos 50, início dos 60, tempos da minha infância, Belo Horizonte era uma cidade pacata com aproximadamente 600 000 habitantes. Já tinha uns ares de cidade grande, pelos privilégios de ser a capital do estado, mas era ainda pequena, tipicamente interiorana, onde todas as famílias se conheciam, ao menos pelo nome. Essa incipiente maneira de ser de metrópole desaparecia abruptamente logo que saíamos do centro comercial e da região administrativa da cidade, e nos deparávamos com um ambiente rural que se urbanizava de modo irregular, fora do projeto inicial.
Praticamente todas as casas, mesmo as dos pobres, tinham quintais com árvores frutíferas e hortas. Infalível era a presença de um galinheiro. Além da produção de ovos, vez por outra algum frango ia para a panela. Sem esquecer dos benefícios do equilíbrio ambiental, pois os galináceos controlavam bem a população de escorpiões; os que lhes escapavam eram acondicionados em vidros e levados ao órgão de saúde pública responsável pela produção de antídoto, a Fundação Ezequiel Dias... Sim, Belo Horizonte era um foco desses temidos aracnídeos.
As carroças partilhavam ruas e avenidas com os automóveis; cachorros vira-latas por toda parte e, por vezes, pequenos grupos de caprinos, a praticarem suas habilidades de alpinistas nas ruas íngremes de Belo Horizonte, compunham um cenário intrigante e divertido para nossos primos cariocas que vinham de férias todo ano e pareciam curtir a cidade, como diríamos, híbrida urbano-rural – roça, em outras palavras.
Certa vez, tivemos uma cena de filme – talvez circo seja mais adequado dizer – digna de ser imortalizada. Uma cabra em estado avançado de prenhez conseguiu subir no beiral de nossa casa, entre os dois andares. A casa de esquina tinha o beiral mais baixo de um lado e muito alto do outro, devido às diferenças de inclinação das ruas. Tendo alcançado o fim do beiral, do lado onde a distância ao chão era abissal, a cabra não podia virar-se devido à estreiteza da saliência e tampouco sabia andar de marcha à ré. Pôs-se, então, a berrar apavorada e o fato que a esperava na rua – cabras, cabritos e bode – juntaram-se em coro. Ao que toda a população das redondezas acorreu, enquanto minha mãe, desesperada na ausência do meu pai que estava no trabalho, telefonava para o Corpo de Bombeiros pedindo ajuda.
A multidão se aglomerava na rua, ansiosa, uns tentando encontrar uma solução, outros esperando o desenrolar dos acontecimentos, quando alguém anunciou a todos, em tom de importante comunicado: - “Os bombeiros já estão vindo, o problema está resolvido!” A multidão se agitou mais ainda, naquela grave expectativa. E os bombeiros não tardaram a chegar, estudaram a situação, amarra aqui, amarra ali, um deles se debruçou na janela mais próxima do local onde a gestante se encontrava e, rapidamente a tomou nos braços. Ah... Ouviu-se o suspiro aliviado e em uníssono da multidão, que aplaudiu veementemente o herói. Sã e salva, colocada de volta na rua, a cabra correu o mais rápido que pôde, saltar já não podia devido ao seu estado, e foi juntar-se aos seus companheiros, que já tinham se afastado, assustados com a multidão.
Os bombeiros são mesmo heróis, enfrentam todas as situações, não só em caso de incêndio. E não é só no Brasil, eu também já tive que chamar os bombeiros aqui no Canadá e fui prontamente atendida. Mas não foi por causa de uma cabra, obviamente. Quero registrar aqui minha homenagem ao Corpo de Bombeiros do mundo inteiro.
As favelas de Belo Horizonte estavam ainda se esboçando e as poucas famílias que se instalavam nos morros, eram de gente que vinha em busca de trabalho na nova capital e acabavam se empregando nas casas dos bairros contíguos, nas minas ou construções das proximidades.
Uma pena não terem sido tomadas providências para que essas pessoas pudessem ter melhores salários e condições de habitação. Mas as leis trabalhistas não eram seguidas e, sejamos realistas, a mentalidade escravocrata ainda persistia no subconsciente das pessoas, embora essa ideia não fosse admitida racionalmente. E Belo Horizonte, que foi uma cidade planejada inicialmente, entrou inexoravelmente no ritmo de outras grandes cidades brasileiras, desorganizadas com toda a complexidade dos problemas sócio-econômicos que se sucederam, até os dias atuais.
Naquela época, as taxas de criminalidade eram baixíssimas.  Ninguém tinha medo de outros seres humanos, portas e janelas não eram trancadas, muito menos gradeadas. Os muros das casas eram baixinhos, só mesmo à guisa de marco divisório e enfeite, e serviam também de assento para turminhas de adolescentes, que se reuniam saudavelmente às tardinhas, para bater papo e “paquerar”. Excetuando-se o alcoolismo, não havia consumo nem tráfico de drogas, isso chegou mais tarde a Belo Horizonte.
Nos fins de semana, a programação era ir à casa dos avós, mesmo porque não havia muitas outras opções de diversão. Mas como era gostoso ir à casa da nossa avó. As crianças brincavam até quando conseguiam resistir ao sono e muitos sucumbiam nos colos maternos e paternos, ou nos divãs da casa, saindo carregados. Mas eu era uma das que continuavam acesas, prestando atenção na conversa dos adultos. Não é à toa que fiquei irremediavelmente notívaga, o costume vem desde a infância. Eram comuns os debates políticos, por vezes acalorados – ainda se votava, antes da Ditadura Militar. Outras vezes, eram notícias sobre familiares, esse ou aquele viajou, o filho daquele outro vai trabalhar fora, os parentes do Rio ou do Espírito Santo vão chegar em tal data para o casamento da sobrinha ou da prima. Lá pelas 11 horas, meia-noite, fazia-se uma pausa nas conversas infindáveis, era hora de ir embora.
Ah... As estrelas, estas eram vasculhadas no céu antes do “adeusinho” final. A turma toda parava no jardim em frente à casa, ou no passeio, e punha-se a identificar as constelações, que brilhavam intensamente, sem serem ofuscadas pela iluminação da cidade; só havia luzes incandescentes em postes de madeira bem espaçados, mesmo na Avenida Getúlio Vargas, uma avenida de uma certa importância. A constelação que mais me impressionava era Escorpião, talvez pelo fato de um de meus irmãos ter quase morrido, picado por um e salvo pela injeção do antídoto.
Quando tínhamos a carona de um de meus tios, ele nos deixava até onde o carro podia ir e, com os faróis acesos, esperava que entrássemos em casa. A nossa rua não era pavimentada, embora nossa casa ficasse somente a uns 200 metros da Avenida do Contorno. Isso bastava para que fosse considerada em situação afastada da cidade. Como tudo é tão relativo!
Havia poucas casas no nosso quarteirão e a iluminação pública era precária. Lembro-me que sempre deixávamos alguma luz acesa, para iluminar o caminho de algum transeunte e, no caso de alguém precisar de ajuda, saber onde bater à porta – atualmente, deixamos luzes acesas para espantar ladrão. E muitas vezes bateram à nossa porta, para pedir socorro ao meu pai, que era médico. Era um plantão permanente. Havia até quem pensasse que nossa casa era posto de saúde... Talvez pela simplicidade.
Para além da simplicidade, havia naquela casa uma característica que causava espanto em muitos que a visitavam mais de uma vez: era o fato de estar sempre inacabada; mudavam-se portas, janelas e paredes de lugar, como se fossem móveis. Tudo era mutável... Era surreal. Mas como éramos felizes! Um dia ainda terei que escrever sobre isso...
Belo Horizonte tinha outras vantagens naqueles velhos tempos, uma delas era o clima mais ameno. Não fazia tanto calor como hoje em dia. Em qualquer época do ano, após o pôr do sol o ar refrescava, tínhamos sempre um agasalho à mão. E ir à pé para casa, tarde da noite, naquele friozinho gostoso, bem agasalhados, era um deleite. Nenhuma viv’alma nas ruas, além de nós, perigo zero. Quando chegávamos na Praça Esperanto – confluência de Contorno, Getúlio Vargas, Rua do Ouro, Rua Aimorés – éramos quase empurrados pelo vento que vinha dos lados da Serra da Piedade. Atravessávamos a praça fazendo uma diagonal, da esquina da Aimorés com Grão Pará – pertinho de onde morava a família do então Juiz Moacyr Pimenta Brant, pai do compositor Fernando Brant – passando pelo único poste de luz no centro da praça, galgávamos a esquina da Contorno com Rua Pouso Alto, do outro lado, onde moravam também outras famílias conhecidas – a esta hora todos já a sono solto, tudo fechado. O muro dos Franco tinha acabamento em pedras e havia uma obra de artista, duas pedras com o desenho perfeito dos mapas de Minas Gerais e do Brasil – achar os mapas, cada vez que passávamos por ali, era divertido, um ritual que não podia faltar.
Um quarteirão abaixo e entrávamos na nossa rua, protegidos do vento. Faltava pouco para chegar em casa. Deo gratias, dizia meu pai.

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