Nesse final de inverno
canadense de 2015 d.C. – o inverno mais frio que tenho presenciado em quase 16
anos vivendo aqui – recebemos visitas diárias inusitadas: perus selvagens em bandos
passam de casa em casa à procura de alimento, coisa nunca vista antes. Eles
comem grãos que os passarinhos deixam cair dos comedouros, além da mistura de
sal e não sei que outros ingredientes usados para derreter a neve das ruas.
Estão famintos a tal ponto que deixaram de ser ariscos como de costume e têm
vindo quase bater à nossa porta.
Essa vizinhança natural com animais fez-me lembrar de
tempos idos, na minha terra natal – uma associação de ideias que só pode ser
explicada por um capricho de neurônios friorentos e nostálgicos, pois o cenário
tem tudo do mais extremo oposto que pode haver no planeta. Minha cabeça
conseguiu transformar perus selvagens nórdicos ciscando na neve em galinhas a
esgaravatar a terra tórrida... E me transportei àquele pedaço do meu país, que
eu acreditava ser bom e ditoso – pura inocência de uma criança.
Século
XX, no final dos anos 50, início dos 60, tempos da minha infância, Belo
Horizonte era uma cidade pacata com aproximadamente 600 000 habitantes. Já
tinha uns ares de cidade grande, pelos privilégios de ser a capital do estado,
mas era ainda pequena, tipicamente interiorana, onde todas as famílias se
conheciam, ao menos pelo nome. Essa incipiente maneira de ser de metrópole
desaparecia abruptamente logo que saíamos do centro comercial e da região
administrativa da cidade, e nos deparávamos com um ambiente rural que se
urbanizava de modo irregular, fora do projeto inicial.
Praticamente
todas as casas, mesmo as dos pobres, tinham quintais com árvores frutíferas e
hortas. Infalível era a presença de um galinheiro. Além da produção de ovos,
vez por outra algum frango ia para a panela. Sem esquecer dos benefícios do
equilíbrio ambiental, pois os galináceos controlavam bem a população de
escorpiões; os que lhes escapavam eram acondicionados em vidros e levados ao
órgão de saúde pública responsável pela produção de antídoto, a Fundação
Ezequiel Dias... Sim, Belo Horizonte era um foco desses temidos aracnídeos.
As
carroças partilhavam ruas e avenidas com os automóveis; cachorros vira-latas
por toda parte e, por vezes, pequenos grupos de caprinos, a praticarem suas
habilidades de alpinistas nas ruas íngremes de Belo Horizonte, compunham um
cenário intrigante e divertido para nossos primos cariocas que vinham de férias
todo ano e pareciam curtir a cidade, como diríamos, híbrida urbano-rural –
roça, em outras palavras.
Certa
vez, tivemos uma cena de filme – talvez circo seja mais adequado dizer – digna
de ser imortalizada. Uma cabra em estado avançado de prenhez conseguiu subir no
beiral de nossa casa, entre os dois andares. A casa de esquina tinha o beiral
mais baixo de um lado e muito alto do outro, devido às diferenças de inclinação
das ruas. Tendo alcançado o fim do beiral, do lado onde a distância ao chão era
abissal, a cabra não podia virar-se devido à estreiteza da saliência e tampouco
sabia andar de marcha à ré. Pôs-se, então, a berrar apavorada e o fato que a
esperava na rua – cabras, cabritos e bode – juntaram-se em coro. Ao que toda a
população das redondezas acorreu, enquanto minha mãe, desesperada na ausência
do meu pai que estava no trabalho, telefonava para o Corpo de Bombeiros pedindo
ajuda.
A
multidão se aglomerava na rua, ansiosa, uns tentando encontrar uma solução,
outros esperando o desenrolar dos acontecimentos, quando alguém anunciou a
todos, em tom de importante comunicado: - “Os bombeiros já estão vindo, o
problema está resolvido!” A multidão se agitou mais ainda, naquela grave
expectativa. E os bombeiros não tardaram a chegar, estudaram a situação, amarra
aqui, amarra ali, um deles se debruçou na janela mais próxima do local onde a
gestante se encontrava e, rapidamente a tomou nos braços. Ah... Ouviu-se o
suspiro aliviado e em uníssono da multidão, que aplaudiu veementemente o herói.
Sã e salva, colocada de volta na rua, a cabra correu o mais rápido que pôde,
saltar já não podia devido ao seu estado, e foi juntar-se aos seus
companheiros, que já tinham se afastado, assustados com a multidão.
Os
bombeiros são mesmo heróis, enfrentam todas as situações, não só em caso de
incêndio. E não é só no Brasil, eu também já tive que chamar os bombeiros aqui
no Canadá e fui prontamente atendida. Mas não foi por causa de uma cabra,
obviamente. Quero registrar aqui minha homenagem ao Corpo de Bombeiros do mundo
inteiro.
As
favelas de Belo Horizonte estavam ainda se esboçando e as poucas famílias que
se instalavam nos morros, eram de gente que vinha em busca de trabalho na nova
capital e acabavam se empregando nas casas dos bairros contíguos, nas minas ou
construções das proximidades.
Uma
pena não terem sido tomadas providências para que essas pessoas pudessem ter
melhores salários e condições de habitação. Mas as leis trabalhistas não eram seguidas
e, sejamos realistas, a mentalidade escravocrata ainda persistia no
subconsciente das pessoas, embora essa ideia não fosse admitida racionalmente.
E Belo Horizonte, que foi uma cidade planejada inicialmente, entrou
inexoravelmente no ritmo de outras grandes cidades brasileiras, desorganizadas com
toda a complexidade dos problemas sócio-econômicos que se sucederam, até os
dias atuais.
Naquela
época, as taxas de criminalidade eram baixíssimas. Ninguém tinha medo de outros seres humanos,
portas e janelas não eram trancadas, muito menos gradeadas. Os muros das casas eram
baixinhos, só mesmo à guisa de marco divisório e enfeite, e serviam também de
assento para turminhas de adolescentes, que se reuniam saudavelmente às
tardinhas, para bater papo e “paquerar”. Excetuando-se o alcoolismo, não havia
consumo nem tráfico de drogas, isso chegou mais tarde a Belo Horizonte.
Nos
fins de semana, a programação era ir à casa dos avós, mesmo porque não havia
muitas outras opções de diversão. Mas como era gostoso ir à casa da nossa avó. As
crianças brincavam até quando conseguiam resistir ao sono e muitos sucumbiam
nos colos maternos e paternos, ou nos divãs da casa, saindo carregados. Mas eu
era uma das que continuavam acesas, prestando atenção na conversa dos adultos.
Não é à toa que fiquei irremediavelmente notívaga, o costume vem desde a
infância. Eram comuns os debates políticos, por vezes acalorados – ainda se
votava, antes da Ditadura Militar. Outras vezes, eram notícias sobre
familiares, esse ou aquele viajou, o filho daquele outro vai trabalhar fora, os
parentes do Rio ou do Espírito Santo vão chegar em tal data para o casamento da
sobrinha ou da prima. Lá pelas 11 horas, meia-noite, fazia-se uma pausa nas
conversas infindáveis, era hora de ir embora.
Ah...
As estrelas, estas eram vasculhadas no céu antes do “adeusinho” final. A turma
toda parava no jardim em frente à casa, ou no passeio, e punha-se a identificar
as constelações, que brilhavam intensamente, sem serem ofuscadas pela
iluminação da cidade; só havia luzes incandescentes em postes de madeira bem
espaçados, mesmo na Avenida Getúlio Vargas, uma avenida de uma certa importância.
A constelação que mais me impressionava era Escorpião, talvez pelo fato de um
de meus irmãos ter quase morrido, picado por um e salvo pela injeção do
antídoto.
Quando
tínhamos a carona de um de meus tios, ele nos deixava até onde o carro podia ir
e, com os faróis acesos, esperava que entrássemos em casa. A nossa rua não era
pavimentada, embora nossa casa ficasse somente a uns 200 metros da Avenida do
Contorno. Isso bastava para que fosse considerada em situação afastada da
cidade. Como tudo é tão relativo!
Havia
poucas casas no nosso quarteirão e a iluminação pública era precária. Lembro-me
que sempre deixávamos alguma luz acesa, para iluminar o caminho de algum
transeunte e, no caso de alguém precisar de ajuda, saber onde bater à porta –
atualmente, deixamos luzes acesas para espantar ladrão. E muitas vezes bateram
à nossa porta, para pedir socorro ao meu pai, que era médico. Era um plantão
permanente. Havia até quem pensasse que nossa casa era posto de saúde... Talvez
pela simplicidade.
Para
além da simplicidade, havia naquela casa uma característica que causava espanto
em muitos que a visitavam mais de uma vez: era o fato de estar sempre inacabada;
mudavam-se portas, janelas e paredes de lugar, como se fossem móveis. Tudo era
mutável... Era surreal. Mas como éramos felizes! Um dia ainda terei que
escrever sobre isso...
Belo
Horizonte tinha outras vantagens naqueles velhos tempos, uma delas era o clima
mais ameno. Não fazia tanto calor como hoje em dia. Em qualquer época do ano,
após o pôr do sol o ar refrescava, tínhamos sempre um agasalho à mão. E ir à pé
para casa, tarde da noite, naquele friozinho gostoso, bem agasalhados, era um
deleite. Nenhuma viv’alma nas ruas, além de nós, perigo zero. Quando chegávamos
na Praça Esperanto – confluência de Contorno, Getúlio Vargas, Rua do Ouro, Rua
Aimorés – éramos quase empurrados pelo vento que vinha dos lados da Serra da
Piedade. Atravessávamos a praça fazendo uma diagonal, da esquina da Aimorés com
Grão Pará – pertinho de onde morava a família do então Juiz Moacyr Pimenta
Brant, pai do compositor Fernando Brant – passando pelo único poste de luz no
centro da praça, galgávamos a esquina da Contorno com Rua Pouso Alto, do outro
lado, onde moravam também outras famílias conhecidas – a esta hora todos já a
sono solto, tudo fechado. O muro dos Franco tinha acabamento em pedras e havia uma
obra de artista, duas pedras com o desenho perfeito dos mapas de Minas Gerais e
do Brasil – achar os mapas, cada vez que passávamos por ali, era divertido, um ritual que não podia faltar.
Um
quarteirão abaixo e entrávamos na nossa rua, protegidos do vento. Faltava pouco
para chegar em casa. Deo gratias,
dizia meu pai.
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Publicado também pela KBR Editora Digital:
http://www.kbrdigital.com.br/blog/cabras/
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