sábado, junho 27, 2015

Confissões de uma súdita

Publicado também pela KBR Editora Digital em 27 de junho de 2015:

http://www.kbrdigital.com.br/blog/confissoes-de-uma-sudita/

Um país desenvolvido é aquele que permite que todos os cidadãos desfrutem de uma vida livre e saudável em um ambiente seguro." Kofi Annan

De volta de um curto período no meu amado Brasil. Foram dez dias cheios de emoções. É sempre uma alegria rever os familiares e amigos, embora as circunstâncias, por vezes, não sejam as ideais. E isso acontece cada vez mais frequentemente, quanto mais envelhecemos, pois vamos vendo pessoas do “nosso” mundo indo embora. Dessa vez, uma tia muito querida que se foi... e a face da terra ficou menos risonha para mim, pois com ela foi-se um quê de melodia, um jeito de cantar, um declamar de poesia, foi-se um encanto assim pelo ar, que só Luluca sabia.

No Canadá, estamos em tempo de festividades patrióticas, ou melhor, étnicas.  Celebram-se em junho o Dia Nacional do Aborígene (os aborígenes aqui são os índios e os esquimós), a Festa de São João (que é a festa nacional da província do Québec), o Dia do Multiculturalismo Canadense e, para finalizar a temporada, o Dia do Canadá no 1º de julho. Para quem não sabe, o país compreende mais de uma nação: há as nações dos índios, a nação dos Inuits (esquimós) e também a nação dos canadenses franceses, além da nação do país inteiro – aquele velho problema de identidade e pertencimento das etnias. Aqui, praticamente não houve miscigenação entre os povos; são solitudes que se avizinham geograficamente.

E no meio disso tudo, cá estou eu, uma brasileira bem típica, ou seja, resultado de uma salada de etnias bem à moda tupiniquim, que se casou com um canadense francês, possuidor da mente mais aberta que já conheci, embora orgulhoso de seu estado “pure laine”, bem ancorado no “je me souviens” do povo quebequense. 

Falando sobre esses assuntos numa reunião de família, durante minha estada no Brasil, creio que assustei os mais jovens, que ainda não sabiam, quando comentei que, para obter minha cidadania canadense, tive que declarar solenemente minha fidelidade à Sua Majestade a Rainha Elizabeth Segunda, Rainha do Canadá, bem como a seus herdeiros e sucessores.¹



Além da fidelidade à rainha, temos também que nos comprometer a cumprir as leis do Canadá e as obrigações de cidadão canadense, claro. Não vejo nada errado nessas exigências, acho isso normal e até mesmo necessário. Este não é um país de chacotas. O Canadá é um país sério, que exige o cumprimento dos deveres do cidadão, mas dá a ele segurança e serviços dignos.

Quanto à lealdade à rainha, não posso negar que achei diferente, não estava acostumada à monarquia. Mas não me opus a essa ideia quando me lembrei de que foram os ingleses que forçaram o Brasil a abolir a escravidão. Não importa o que pudesse estar por trás disso, a ideia foi bastante por si só e minhas reverências são poucas para louvar o feito. 

Além do mais, depois que me mudei para cá, não senti mais a insegurança que temos no cotidiano brasileiro. Lá, vivemos sob a tutela do medo... e não é de hoje. É preferível ser súdita da rainha do que do medo. Chega num ponto que a gente não aguenta mais.

Confesso, no entanto, que aquele amor puro, tenro, pueril que se pode ter a uma nação, tenho-o pelo Brasil, que me viu nascer, crescer, que me nutriu, que me deu estudo e onde tenho minha família e meus amigos. Por isso, nunca abandonaria minha nacionalidade brasileira. O Brasil é o lugar onde tenho a minha história, onde posso compartilhar sentimentos e experiências semelhantes com outros seres humanos. É onde compreendo melhor os outros e a recíproca também acontece. 

Por mais que escute o meu marido relembrando, com os irmãos, casos da história deles, como quando eram pequenos e aproveitavam o rio congelado e o atravessavam a pé, para encurtar caminho para a escola; e ele, o mais velho, ia desbravando a neve para os menorezinhos passarem... em meio à pouca visibilidade do mau tempo, supondo-se no caminho certo... Por mais que ouça essas narrativas, essas sensações revividas por eles, nas reuniões familiares, jamais serei capaz de ter o mesmo “feeling” que eles têm. 

Do mesmo jeito, eles jamais poderão ter empatia com o que passamos no Brasil... Meu marido não compreende por que eu sou uma pessoa tão cheia de medos e desconfianças. Sou assim mesmo, apesar de ter tido a coragem de largar tudo no meu país e ter vindo para este lugar gélido – com esta resposta, refuto qualquer acusação de fragilidade. 

Claro que cada pessoa reage ao ambiente com as características que tem – eu fiquei assim, desconfiada. O Brasil não foi e não é um país que nos dê segurança, apesar de toda a felicidade que poderia nos propiciar, pela sua riqueza natural e em troca do que lhe damos com o nosso trabalho, durante toda a nossa vida. E a felicidade de que falo não é nada muito complicado, não; seria podermos todos viver com segurança e em paz, mais ou menos o que diz a frase de Kofi Annan, em epígrafe.

Mas os governos do Brasil nunca se preocuparam muito com isso. Parte da minha infância, toda a minha adolescência e juventude, foram vividas num Brasil praticamente em constante estado de sítio, durante a Ditadura Militar. O medo impregnava todos e era silencioso, pois as paredes tinham ouvidos.

Foram longos anos... sem democracia. Quando acabou a ditadura e após um período de transição, o primeiro presidente eleito pelo povo foi um maluco de olhos arregalados, que, sem piscá-los, confiscou o dinheiro de todo mundo, . A reposição posterior foi lenta e com uma desvalorização inominável. Parece mentira, mas não é. A gente não pode esquecer essas coisas!

Não demorou muito tempo e caímos noutra ditadura – será que o hábito faz o monge mesmo? -, embora uma boa parcela da população acredite que esteja numa democracia. É a ditadura do pseudo Partido dos Trabalhadores. Eles estão conseguindo destruir até mesmo a união que havia no povo brasileiro. “Touché” no coração!

Crises econômicas sucessivas num país abarrotado de dinheiro, escândalos de corrupção cada vez mais escandalosos, tráfico de drogas ditando normas, violência urbana aumentando e aterrorizando o cotidiano do cidadão... esse é um resumo simplificado do purgatório cada vez mais distante do paraíso que poderia ter sido o meu país.

Depois de ler essa pequena resenha, alguém aí ainda está assustado com a minha declaração de lealdade à Rainha Elizabeth II?


¹ http://www.cic.gc.ca/english/resources/tools/cit/ceremony/oath.asp