sábado, setembro 26, 2015

Mudando de assunto

Publicado também na KBR Editora Digital em 26 de setembro de 2015:
http://www.kbrdigital.com.br/blog/mudando-de-assunto/
e
https://www.cronicasdakbr.com/2015/09/26/mudando-de-assunto/




Essa semana, me lembrei de uma de minhas saudosas tias. Quando um assunto a incomodava e ela julgava já tê-lo dissecado à exaustão, costumava perguntar, em tom peremptório e escancarada sinceridade: Vamos mudar de assunto? Se alguém insistisse em continuar, ela dizia que não queria mais falar sobre aquilo e saía da sala, sem a menor cerimônia. 

Eu já sou mais propensa a um bom lero-lero, mas sempre tento me controlar, nem sempre com sucesso, reconheço. Nesse quesito, minha tia se adaptaria aqui no Quebec bem melhor do que eu, e talvez houvesse até uma disputa, entre ela e os “Québécois”, de quem finalizaria a conversa primeiro; a resposta provavelmente chegaria antes da sua pergunta: “On n’en parle plus”.
Por muito, mas muito menos do que estamos vendo acontecer no Brasil, já vi vários políticos e governantes, aqui do Canadá, encerrando o assunto, ao abandonarem o cargo. E não só o cargo, abandonam a carreira política em caráter definitivo, nunca mais se ouve falar deles. Mas... “vamos mudar de assunto?”
Nada pode demorar muito por aqui, tudo tem que ser rápido. Talvez seja influência do clima, pois são poucos os meses possíveis para os trabalhos que devem ser feitos do lado de fora dos abrigos antiinverno – sim, assim podemos chamar as construções, que são cheias de estratégias contra uma guerra desumana, a do frio. E é preciso rapidez antes que venham as toneladas de neve. Acho que é por isso que todos aqui são extremamente apressados.
Dizendo assim, parece que quando o inverno chega, todos se acalmam. Não, o costume está muito arraigado e outros motivos surgem para ter pressa. É preciso sair mais cedo, em caso de haver dificuldades no trânsito, por neve ou gelo. O que tiver que ser feito com a luz do dia, que seja rápido, pois a noitinha começa a cair no meio da tarde. E assim segue a vida no Canadá, gelando e degelando.
Nas autoestradas, então, se os limites de velocidade são entre 60 e 100 km/h, o canadense vai no mínimo a 100, nas pistas da direita, que é para os mais lentos. Enquanto isso, nas pistas da esquerda, passam os bólidos. Mas o que mais me incomoda é que vão todos colados uns nos outros. Dá a impressão de que se sentem desafiados quando o carro da frente se distancia; como se dissessem para si mesmos que também são capazes de correr. Acontecem tantos engavetamentos e os condutores não aprendem...
Pior ainda é quando, além da alta velocidade, decidem se comunicar com alguém por algum dispositivo móvel. O carro vai ziguezagueando perigosamente... mais acidentes! 
Mas, justiça seja feita, estes males das estradas não são exclusivos daqui, são do ser humano, em qualquer lugar do mundo. Aqui, pelo menos, as estradas são de ótima qualidade!
Por essas e outras, prefiro as estradas rurais, que são também muito boas, bem asfaltadas, às vezes britadas. Trânsito quase não há. Máxima de 70 ou 80 km/h que, muitas vezes, não chego a atingir, pois não há carro nenhum colado atrás de mim. Frequentemente, são caminhos mais longos do que se fosse pela autoestrada. Os apressados os evitam, obviamente. Muitos jovens nem conhecem essas estradas... “tant mieux”. Lá vou eu, feliz, conversando com meu GPS.
Mas não são só os humanos que têm pressa nesses climas nórdicos. Logo que o outono vai começando, com temperaturas mais baixas, as aranhas começam a entrar nas casas, não se sabe por onde, pois tudo é tão calafetado! E a produção de teias se faz num ritmo incrivelmente veloz. Foi assim que compreendi que não há exagero algum naqueles filmes americanos que mostram lugares cheios de teias de aranha, que os personagens vão desbravando como se estivessem numa floresta impenetrável. É verdade e não é preciso muito tempo para que um cenário desses tome forma. Ainda bem que não são venenosas.
Ah! E as joaninhas, aqueles insetos coleópteros da família Coccinellidae, que possuem uma carapaça redondinha de cores vistosas, salpicadas de pintinhas também redondas. Tão bonitinhas! Quando me mudei para cá, fiquei admirada de reencontrar esses bichinhos que me encantavam quando era criança, numa Belo Horizonte ainda não completamente urbanizada. Mas fui logo me desencantando, pois uns dois anos após minha chegada, começaram a aparecer joaninhas de uma outra espécie, que invadiam nossas casas, logo que começava a fazer frio.
As joaninhas canadenses são vermelhas e bem adaptadas ao clima, procuram abrigo do lado de fora mesmo. A nova espécie invasora é alaranjada. Dizem que foi importada da Ásia, pelos Estados Unidos, para combater pragas das plantações. Essa espécie mostrou-se altamente invasiva e foi ampliando seu território em direção ao norte, até chegar no Canadá. Cada ano, uma região mais ao norte é invadida. O inseto se transformou, ele próprio, numa verdadeira praga.
O problema é que essas joaninhas asiáticas entram em pânico quando o tempo começa a esfriar e conseguem se meter entre a borracha e a moldura de guarnição das nossas portas e janelas, por incrível que pareça. Com sua carapaça resistente, elas espremem a borracha que faz o isolamento e assim entram, muito hábeis e absurdamente velozes. Em pânico também entro eu, quando elas começam a aparecer aos milhares dentro de casa. Felizmente, parece que houve uma fase de superpopulação que durou em torno de dez anos e, agora, os ataques estão se reduzindo. “On n’en parle plus”.
Apesar de tudo isso, gosto muito de viver no Canadá, e minha estação preferida no ano é esta que ora nos brinda com temperaturas amenas e um céu magnífico. Não vejo a hora de ver, novamente, o espetáculo de cores das folhagens. É um fenômeno de beleza incomparável, mas efêmero, pois as folhas não tardam a cair abruptamente, antes que a natureza inicie sua longa hibernação... O inverno de novo? Vamos mudar de assunto?

sábado, setembro 19, 2015

Falsíssimo

 Era sábado e um lindo sol poente de outono, em pré-estreia na primeira metade de setembro, acentuava os tons que já começam a dourar a paisagem, na cidadezinha onde moro, no interior do Canadá.
Ouço o badalar dos sinos da Paróquia, chamando os fiéis para a missa vespertina, valendo para o domingo, e me dirijo sem pressa à escadaria frontal, galgando o adro da igreja, um prédio imponente, na rua principal da cidade. Um casal de idosos abre a pesada porta central de madeira, e o gentil senhor a segura aberta, me lança um olhar risonho, aguardando que eu passe.
- Merci !
- Ça me fait plaisir.
Um misto de perfume de flores e incenso, atenuado por um aroma de madeira, invade meus receptores olfativos, sem surpreendê-los; são antigos conhecidos. Imagens e pinturas sacras, em suas tradicionais posições, me transportam de volta a um mundo que me é bem familiar. Sempre que entro numa igreja católica, esqueço que sou estrangeira, resgato uma curiosa e prazerosa sensação de pertencimento que me escapou há muitos anos, quando me mudei para o Canadá.
Embora tenha mudado de país por nobre motivo e apesar de toda a segurança e estabilidade que a dupla cidadania pode oferecer, percebo que não sou muito diferente de qualquer outro expatriado; o elo com a nossa história no país de origem rompe-se, de uma certa forma, como se perdêssemos o fio da meada; por certo ficam os laços com a família e amigos e, “dai a César o que é de César”, graças à tecnologia de comunicação, que ajuda enormemente.
Não fosse isso, além de nosso passado não interessar a ninguém no novo país, se não tivéssemos comunicação frequente com os nossos compatriotas, passaríamos a ser considerados quase como mortos. Fico imaginando aqueles tempos em que as cartas eram despachadas em trens ou em navios e demoravam meses para chegarem ao destino. Pobres escravos negros no Brasil, que nem desse recurso dispunham. Dá para compreender o banzo que os acometia.
A cantoria de entrada para a Missa começa e põe fim às minhas divagações... Pouca gente na igreja, quase todos de cabelos brancos, exceto algumas senhoras com cabelos provavelmente tintos que, como no meu caso, não escondem a idade, já com direito a aposentadoria. Este é um quadro que reflete muito bem a tendência por aqui: cada vez menos jovens católicos. Creio que isto está acontecendo com todas as religiões, excetuando-se alguns imigrantes que ainda têm suas crenças.
Iniciados os trâmites de costume, pasmem, vejo lá na frente, sentado ao lado do altar, acólito do pároco, ninguém mais, ninguém menos do que um famosíssimo cronista brasileiro. Nem sabia que ele era tão piedoso e praticante assim. Compenetradíssimo e muito solícito, parece conhecer todos os gestos e passos da função que ora exerce impecavelmente. Achei que ele está um pouco mais magro e pensava que fosse mais careca do que é.
Por rápidos segundos, meus pensamentos multiplicaram perguntas, a primeira delas se estaria eu enxergando bem. Será ele mesmo? Como foi que o célebre escritor veio parar aqui e, ainda por cima, disfarçado de coroinha? Será que veio exilado? O governo mudou de lado? Haverá, por acaso, um novo governante? Não acredito! “Será o Benedito?”
Por que todas as igrejas têm que estar nesse lusco-fusco? Por que não acendem todas as luzes? Deve ser economia, devido à maldita crise, também eclesiástica. Tive ímpetos de mudar de lugar, ir me sentar mais perto do altar, para ver melhor, mas fiquei envergonhada; a igreja quase vazia, o salto do meu sapato, toc toc, todos iam olhar para mim. Pior que celular tocando, me contive. Tratei de me acalmar, já vi tanta gente daqui parecida com gente de lá, deve ser mais um.
Estranho, as combinações de genes não são tão variadas assim. Os seres humanos são mais semelhantes do que pensamos.
Volto a prestar atenção às leituras do folheto dominical, já que estou aqui, afinal, “quem ajoelhou tem de rezar”. E rezo para que a crise no Brasil acabe da melhor maneira possível, sem exílios, sem golpes de lado nenhum. Que os corruptos sejam alijados do poder e punidos conforme determina a lei. Sem roubalheira, tenho certeza de que o Brasil se desenvolverá, propiciando uma vida saudável e segura para todos: é esta a minha esperança.
Junto-me, também, às orações dos fiéis que rezam pelos migrantes que fogem para a Europa, abandonando seus países devastados pela atrocidade das guerras.
Chega a hora da coleta de dons e, para meu gáudio, lá vem o sujeito, no mínimo sósia do outro, passando a cestinha, vou poder vê-lo de perto e tirar minhas dúvidas. Não costumo reparar no rosto do coletor, mas desta vez tenho que fazê-lo; verifico que não é ele e sou tomada por uma vontade irresistível de rir, que chamam aqui de “fou rire”, e que, com muito custo, consigo controlar. Afinal, meu personagem não tem nada de vero, é falsíssimo.
Acabada a missa, saio da igreja com o firme propósito de marcar uma consulta com meu oculista e ainda com uma vontade louca de gargalhar. Se não encontrarmos motivo para rir nesse mundo louco, que seja de nós mesmos, acabamos ficando também ensandecidos.
Balanço final, a crise migratória comoveu realmente todos os recônditos da sociedade humana e nos fez refletir também sobre nossa passagem sobre este ou aquele território, sobre nossa própria circunstância existencial.
Nas orações dessa semana, muitos foram os pedidos para que os refugiados encontrem realmente refúgio, sejam bem acolhidos pelos países que os recebem. Assim seja.
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Publicado também pela KBR Editora Digital em 19 de setembro de 2015:
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quarta-feira, setembro 16, 2015

Crise

Também publicado pela KBR Editora Digital em 12 de setembro de 2015:
https://cronicasdakbr.kbrinternational.org/2015/09/12/crise-2/
http://www.kbrdigital.com.br/blog/crise-2/
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A palavra mais usada no momento atual e em todas as línguas é "crise". Mais uma se juntou, neste mundo já tão desvairado: a mais notória agora é a migratória, verdadeira comoção geral, retratada e amplamente divulgada. A imagem que percorreu o mundo, daquela criancinha morta, deixada na praia pelas ondas do mar, exorta à hombridade. O coração da humanidade foi tocado, fustigado. Todo mundo está à beira de uma crise existencial.
Para ser sincera, ando muito desiludida com os rumos que o ser humano vem tomando e fiquei admirada com o fato de que as pessoas ainda se comovam ao verem crianças mortas. O afogamento deste pequerrucho me causou enorme tristeza mas, por outro lado, fiquei aliviada com a reação do mundo, comovido com o que aconteceu.
Este episódio me fez lembrar de um caso, entre outros, de um menininho de dois anos que morreu afogado aqui no Canadá, há pouco tempo, em águas pluviais – imaginem! – na vala de drenagem que existe à beira das ruas e estradas. Um instante de distração dos pais – será? – e a criança desapareceu. Mais tarde foi encontrada afogada. Eu não vi a cena, não houve divulgação de fotos. Mas quando soube do caso, tive um aperto tão forte no peito, que pensei que estava com angina. Não vi muita gente comovida. Será que a maioria das pessoas precisa ver para se comover?
E já que o assunto é crise e criança, seria uma grave omissão de minha parte não mencionar as crianças do Brasil que não têm uma vida minimamente normal, condenadas ao cárcere domiciliar sem serem criminosas; as crianças do Brasil que morrem todos os dias, vítimas da violência de crimes de toda sorte; as crianças do Brasil que são irremediavelmente transformadas em monstros criminosos – esse é o pior escândalo, transformar crianças em criminosos é muito pior do que causar sua morte.
Voltando à crise migratória, a questão é onde encaixar toda essa população que se evade, deixando tudo para trás, em busca de paz. Pelo que li nos noticiários, estas últimas levas de migrantes que estão chegando à Europa são de sírios que estavam em acampamentos de países vizinhos ao deles. Apesar de não estarem em zonas de bombardeio e perigo iminente, são famílias que sonham com uma vida melhor do que simplesmente sobreviver.
Aqui no Canadá, em pleno período de campanha eleitoral, cada candidato quer se mostrar mais receptivo aos refugiados, exigindo rapidez nos processos de aceitação. O Premier Stephen Harper, que também está na corrida eleitoral, está tendo que “rebolar” para satisfazer a opinião pública, ao mesmo tempo que tenta manter os critérios de avaliação de imigrantes, para evitar o risco de entrarem terroristas infiltrados na leva de refugiados.
Além de enviar importantes somas de dinheiro aos países necessitados de ajuda, que já acolhem os fugitivos, o Canadá está tomando medidas concretas para acelerar o processo de entrada desses imigrantes, mas sem negligenciar a segurança dos cidadãos canadenses. Já existe um grande contingente de refugiados no Canadá, que é um país acolhedor. Mas uma invasão em massa pode desestruturar qualquer um, por mais que haja infraestrutura. E um país desestruturado não poderá oferecer as melhores condições de vida desejadas.
Acho boa a ideia de ajudar os países onde os fugitivos já se encontram em acampamentos, para que possam ter uma vida mais normal. Ou, quem sabe, a ideia do milionário egípcio, citada por Ângela Dutra de Menezes[1], de comprar uma ilha e fundar um país para os que fogem da violência do Oriente Médio.
O mundo está conturbado demais. Não sei o que será das gerações futuras. Mais um motivo para darmos melhores possibilidades às crianças de hoje. Quem sabe, assim, elas encontrarão soluções mais promissoras.