Era sábado e um lindo sol
poente de outono, em pré-estreia na primeira metade de setembro, acentuava os
tons que já começam a dourar a paisagem, na cidadezinha onde moro, no interior
do Canadá.
Ouço o badalar dos sinos da
Paróquia, chamando os fiéis para a missa vespertina, valendo para o domingo, e
me dirijo sem pressa à escadaria frontal, galgando o adro da igreja, um prédio
imponente, na rua principal da cidade. Um casal de idosos abre a pesada porta
central de madeira, e o gentil senhor a segura aberta, me lança um olhar
risonho, aguardando que eu passe.
-
Merci !
-
Ça me fait plaisir.
Um misto de perfume de
flores e incenso, atenuado por um aroma de madeira, invade meus receptores
olfativos, sem surpreendê-los; são antigos conhecidos. Imagens e pinturas sacras,
em suas tradicionais posições, me transportam de volta a um mundo que me é bem
familiar. Sempre que entro numa igreja católica, esqueço que sou estrangeira, resgato
uma curiosa e prazerosa sensação de pertencimento que me escapou há muitos anos,
quando me mudei para o Canadá.
Embora tenha mudado de país
por nobre motivo e apesar de toda a segurança e estabilidade que a dupla
cidadania pode oferecer, percebo que não sou muito diferente de qualquer outro
expatriado; o elo com a nossa história no país de origem rompe-se, de uma certa
forma, como se perdêssemos o fio da meada; por certo ficam os laços com a
família e amigos e, “dai a César o que é de César”, graças à tecnologia de
comunicação, que ajuda enormemente.
Não fosse isso, além de
nosso passado não interessar a ninguém no novo país, se não tivéssemos
comunicação frequente com os nossos compatriotas, passaríamos a ser
considerados quase como mortos. Fico imaginando aqueles tempos em que as cartas
eram despachadas em trens ou em navios e demoravam meses para chegarem ao
destino. Pobres escravos negros no Brasil, que nem desse recurso dispunham. Dá
para compreender o banzo que os acometia.
A cantoria de entrada para a
Missa começa e põe fim às minhas divagações... Pouca gente na igreja, quase
todos de cabelos brancos, exceto algumas senhoras com cabelos provavelmente
tintos que, como no meu caso, não escondem a idade, já com direito a
aposentadoria. Este é um quadro que reflete muito bem a tendência por aqui:
cada vez menos jovens católicos. Creio que isto está acontecendo com todas as
religiões, excetuando-se alguns imigrantes que ainda têm suas crenças.
Iniciados os trâmites de
costume, pasmem, vejo lá na frente, sentado ao lado do altar, acólito do
pároco, ninguém mais, ninguém menos do que um famosíssimo cronista brasileiro. Nem
sabia que ele era tão piedoso e praticante assim. Compenetradíssimo e muito
solícito, parece conhecer todos os gestos e passos da função que ora exerce
impecavelmente. Achei que ele está um pouco mais magro e pensava que fosse mais
careca do que é.
Por rápidos segundos, meus
pensamentos multiplicaram perguntas, a primeira delas se estaria eu enxergando
bem. Será ele mesmo? Como foi que o célebre escritor veio parar aqui e,
ainda por cima, disfarçado de coroinha? Será que veio exilado? O governo mudou
de lado? Haverá, por acaso, um novo governante? Não acredito! “Será o
Benedito?”
Por que todas as igrejas têm
que estar nesse lusco-fusco? Por que não acendem todas as luzes? Deve ser
economia, devido à maldita crise, também eclesiástica. Tive ímpetos de mudar de
lugar, ir me sentar mais perto do altar, para ver melhor, mas fiquei envergonhada;
a igreja quase vazia, o salto do meu sapato, toc toc, todos iam olhar para mim.
Pior que celular tocando, me contive. Tratei de me acalmar, já vi tanta gente
daqui parecida com gente de lá, deve ser mais um.
Estranho, as combinações de
genes não são tão variadas assim. Os seres humanos são mais semelhantes do que
pensamos.
Volto a prestar atenção às
leituras do folheto dominical, já que estou aqui, afinal, “quem ajoelhou tem de
rezar”. E rezo para que a crise no Brasil acabe da melhor maneira possível, sem
exílios, sem golpes de lado nenhum. Que os corruptos sejam alijados do poder e
punidos conforme determina a lei. Sem roubalheira, tenho certeza de que o
Brasil se desenvolverá, propiciando uma vida saudável e segura para todos: é
esta a minha esperança.
Junto-me, também, às orações
dos fiéis que rezam pelos migrantes que fogem para a Europa, abandonando seus
países devastados pela atrocidade das guerras.
Chega a hora da coleta de
dons e, para meu gáudio, lá vem o sujeito, no mínimo sósia do outro, passando a
cestinha, vou poder vê-lo de perto e tirar minhas dúvidas. Não costumo reparar
no rosto do coletor, mas desta vez tenho que fazê-lo; verifico que não é ele e sou
tomada por uma vontade irresistível de rir, que chamam aqui de “fou rire”, e
que, com muito custo, consigo controlar. Afinal, meu personagem não tem nada de
vero, é falsíssimo.
Acabada a missa, saio da
igreja com o firme propósito de marcar uma consulta com meu oculista e ainda
com uma vontade louca de gargalhar. Se não encontrarmos motivo para rir nesse
mundo louco, que seja de nós mesmos, acabamos ficando também ensandecidos.
Balanço final, a crise
migratória comoveu realmente todos os recônditos da sociedade humana e nos fez
refletir também sobre nossa passagem sobre este ou aquele território, sobre
nossa própria circunstância existencial.
Nas orações dessa semana,
muitos foram os pedidos para que os refugiados encontrem realmente refúgio, sejam
bem acolhidos pelos países que os recebem. Assim seja.
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Publicado também pela KBR Editora Digital em 19 de setembro de 2015:
http://www.kbrdigital.com.br/blog/falsissimo/
e
Com um prazer de leitora ávida, leio seus textos que são irretocáveis. Parabéns.
ResponderExcluirMaria
Muito obrigada, vindo de você, uma conhecedora da língua portuguesa, o elogio significa muito para mim. Grande abraço.
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