segunda-feira, março 27, 2017

Nem tudo está perdido




O Brasil foi considerado, no início do século XXI, uma grande promessa como país emergente, junto com outros em situação similar, que formaram o grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). As previsões não se realizaram e, no que diz respeito ao “gigante sul-americano”, o fiasco foi generalizado, em consequência da corrupção sistêmica, institucionalizada pelos governos dos últimos 13 anos. Não sou supersticiosa, mas o número 13 tem-nos dado bastante dor de cabeça.
Tampouco pessimista, estou vislumbrando uma saída honrosa para o meu país de origem, do qual ainda pretendo recuperar o orgulho, antes de morrer. Faço parte da população brasileira que vem lutando contra a corrupção, contra quem a institucionalizou e quem a está mantendo. Não estou de corpo presente, mas de longe, votei, tenho escrito textos e debatido assuntos que julgo pertinentes, com amigos e familiares, pelas redes sociais.
Ontem, 26 de março de 2017, foi dia programado para grandes manifestações no Brasil, com várias reivindicações em pauta, tendo por base, afinal, mais uma vez, o combate à corrupção, que ainda é enorme. Pelo que vi, as demonstrações públicas não foram tão expressivas como se imaginava. Talvez por ter visto, recentemente, o povo em massa nas ruas para o Carnaval, a comparação foi inevitável, eu esperava que houvesse mais gente e mais elã do que houve.
Em compensação, na Rússia, minhas esperanças se reavivaram. Grandes manifestações contra a corrupção, na mesma data, em várias cidades, surpreenderam o governo daquele país e me fizeram pensar que, talvez, nem tudo esteja perdido. Tomara que a coisa se espalhe pelo mundo inteiro. Tomara que ajude a dar força à Lava-jato no Brasil.
Triste é ver quanto autoritarismo ainda existe, vários manifestantes pacíficos foram presos. A União Europeia instou a Rússia a liberar os manifestantes detidos, denunciando que a polícia reprimiu "o exercício de liberdades fundamentais de expressão, associação e reunião pacífica - que são direitos fundamentais consagrados na Constituição Russa". Washington ecoou o sentimento, com Mark Toner, porta-voz do Departamento de Estado, descrevendo as prisões como uma "afronta aos valores democráticos fundamentais" [1].
A História vai-se escrevendo... Estou prevendo que o "mote" do século XXI será mesmo o combate à corrupção no planeta. A coisa não é fácil, vai levar tempo. E os que permanecerem praticando ou defendendo quem pratica serão os "fascistas" (como gostam tanto de dizer) do século. Parece que a humanidade está caminhando para isso.
Mesmo no fundo do poço, sofrendo as consequências do processo de “venezuelização” a que foi submetido na última década, sob o comando do PT, o partido mais corrupto de que se tem notícia, ainda resta uma chance de o Brasil se sair bem desta grave situação. Se conseguir - e parece estar conseguindo - continuar punindo os criminosos que dominam o poder e instaurar leis que inibam a corrupção e que, principalmente, sejam profiláticas para que o vício não recidive, o país terá dado um passo digno dos dizeres da bandeira nacional. Mesmo que isso não possa recuperar os sinais vitais do país a curto prazo, poderá trazer benefícios enormes a médio e longo prazo, não só para os brasileiros, mas para outros países que quiserem seguir suas ideias.
Estou pedindo demais? Creio que não. Há muitos juristas brilhantes. Tenho certeza de que há cérebros no Brasil capazes de elaborar leis dessa ordem e planejar um futuro melhor.

[1] http://www.dw.com/en/eu-urges-russia-to-free-detained-protesters/a-38138451

sábado, março 25, 2017

O médico – excertos



Trechos de: Nos bastidores do Câncer. VIEIRA-MONTFILS, M.C. Petrópolis, Brasil: KBR, 2015

(Nota : o masculino genérico é usado sem discriminação e unicamente com o intuito de tornar o texto mais ágil)
"O médico - quem é ele? Quem é essa pessoa que quer se arvorar em alguém que cura? O dicionário nos diz que é uma pessoa que exerce ou pode exercer legalmente a Medicina. Desde o início dos tempos, todas as comunidades humanas – até mesmo as mais primitivas sempre tinham alguém que tratava os doentes, por vezes, considerado como uma espécie de mago ou feiticeiro com poderes sobrenaturais. Os conceitos mudaram,  mas ainda existe hoje um remanescente dessa crença, porque consideramos que o médico deve ter uma "vocação" e um talento especial para a prática de sua profissão. Pelo menos, ele deve ser um estudante aplicado, uma vez que na maioria dos países o acesso à Faculdade de Medicina é para aqueles com melhores notas ou os que têm sucesso nos exames para entrar na Universidade. E é compreensível que seja assim, porque o médico é quem vai cuidar do bem mais importante para nos manter vivos a saúde."
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"Tomamos por certo que a busca pela cura é uma idéia lógica. Mas se fizermos uma pausa para pensar um pouco, se tentarmos libertar nossa mente de seu estado de condicionamento habitual, vamos nos encontrar diante de uma atitude que representa uma tentativa de contrariar a natureza perecível do nosso universo o que conhecemos do universo. Na verdade, o médico é uma pessoa que trabalha sempre contra a corrente seu objetivo é reverter os processos naturais que nos fazem perecer. Neste sentido, o médico continua a ser alguém que tem uma vocação para o sobrenatural, não muito longe do feiticeiro das tribos primitivas. Digo sobrenatural , obviamente, em seu sentido estrito, isto é, além das leis da natureza (deste universo como o conhecemos). Claro que, para tratar as pessoas doentes, o médico tem apenas as ferramentas criadas neste mesmo universo e sujeitas às mesmas leis. Mas isso não muda o fato de que é uma ação para combater nossa natureza perecível. Parece paradoxal e eu digo "parece" porque sabemos tão pouco sobre nós mesmos, seria arrogante ter certezas."
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"Por que escolhemos a profissão médica? Que motiva um jovem estudante para decidir por esta área? Posso responder a esta pergunta, em parte, no meu caso. Quando escolhi ser médica, eu queria conhecer mais profundamente o ser humano e tentar ajudar as pessoas. Meu pai era médico e não posso dizer que na minha escolha não fui influenciada por ele, um médico altamente qualificado e dedicado, que praticava sua profissão caridosamente, era considerado uma pessoa abençoada. Em um país onde havia (e ainda ) uma grande parcela da população vivendo em situação de pobreza e numa época em que o sistema de saúde não era tão burocratizado como hoje, ele dedicou sua vida a ajudar os outros. Foi também professor universitário. Com certeza, pessoas assim influenciam fortemente aqueles que estão ao seu redor."
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"Não é fácil ser médico! E é só quando saímos completamente do "cenário", que nos damos conta disso. Os médicos estão tão ocupados em estudar, avaliar e tratar seus pacientes, que não podem se dar ao luxo de se comoverem. Com efeito, muitas vezes, são acusados  ​​de indiferença, porque são muito concisos durante a consulta e o acompanhamento do paciente e aparentam uma certa insensibilidade. Isso é normal e involuntário, como defesa, para manter a sua integridade emocional. E isso é bom, eu acho. Tendo que tratar muitos pacientes, ele deve manter a sua razão, seu intelecto, na melhor condição possível para tomar decisões importantes para o paciente."
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"Com todos os desafios e todas as qualidades necessárias para ser um bom médico, podemos compreender que o orgulho e a vaidade venham-se juntar à lista. E isso é normal, até mesmo útil para o bom desempenho de um papel tão exigente. Compreende-se também que, por vezes, a vaidade pode transbordar. É preciso estar sempre vigilante para não se deixar dominar pelo sentimento de onipotência, porque estamos muito longe desta condição. Na realidade, a onipotência não existe neste mundo perecível. Seria ridículo demais agir como se a tivéssemos.
Às vezes, é o paciente que demonstra uma reverência exagerada para com o seu médico, em um verdadeiro jogo de dominação/submissão. No passado, isto ocorria mais frequentemente. Hoje, a relação médico/paciente mudou graças à facilidade de acesso à informação, para o próprio paciente. Este é cada vez mais presente nas tomadas de decisão. Mas não devemos exagerar, o paciente não tem o treinamento necessário para decidir tudo sobre o seu tratamento. Mesmo quando o doente é um médico, ele nem sempre se encontra em estado emocional suficientemente estável para ser capaz de decidir sobre a própria doença."
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"Por vezes, sinto-me culpada por ter deixado o meu povo, meus pobres, mas essa sensação desaparece quando penso que consagrei a eles grande parte da minha vida, o melhor da minha juventude."

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"- É preciso sempre ter uma atitude de investigação aguçada em todos os sentidos, sempre nos perguntarmos se tomamos o caminho certo."
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"- Planejem seu trabalho e seu descanso. E se se sentirem cansados, desanimados, arranjem tempo para recarregar as baterias. Mas não deixem seus colegas sozinhos na batalha, e, principalmente, não deixem seus pacientes sem consolo. Não desistam, por favor."
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 (VIEIRA-MONTFILS, M.C. Nos bastidores do Câncer. Petrópolis, Brasil: KBR, 2015: http://www.amazon.com.br/dp/B00W46DHBM)

terça-feira, março 21, 2017

Vista de terraço


Vista do terraço by Chico Lima
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Já escrevi muito sobre minha mãe, muito pouco sobre o meu pai. Tantas vezes tentei e desisti. Vários tios e primos mais velhos já nos disseram, a nós, os filhos, que não conhecemos o nosso pai em todo o vigor da juventude. Não há dúvida de que isso seja verdade, pois ele se casou com 42 anos. A vantagem que podemos vislumbrar para nós é a de que tenhamos lucrado em maturidade. Pena que foi por pouco tempo, pois ele começou a adoecer quando ainda éramos bem jovens. Mas ele cumpriu sua missão de pai com precisão e extremada dedicação, em plena forma quando mais precisávamos dele para termos uma boa formação.
Não quero me ater longamente a suas qualidades e realizações, pois o ser humano que conheci não era dado a vaidades, não gostava de se exibir. Seria injusta, no entanto, se não mencionasse sua atuação humanitária e científica, ajudando não só sua numerosa família, mas também tantos pobres de um Brasil antigo, indigente, subdesenvolvido, selvagem. E tudo isso sem alarde nem troféu, mas teve a gratidão daqueles a quem socorreu e a admiração de quem com ele conviveu.
Hoje fui impulsionada a escrever, quando visitei virtualmente o terraço da casa de uma amiga, de onde se tem uma ampla vista de montanhas e árvores, com um céu imenso ao inteiro dispor de olhos receptivos a maravilhas, sem nenhum prédio para embaraçar o espetáculo. Meu pai gostava de casas com terraços. Assim ele construiu a nossa.
Ah... São tantas lembranças que afloraram! A harmonia do casal eternamente enamorado, que nos propiciou um ambiente solidamente seguro. O nosso “Google”, nossa enciclopédia, ele sabia tudo. As pesquisas para os trabalhos de escola tinham voz e até desenhavam se preciso fosse. E as leituras e discussões filosófico-literárias de minha irmã mais velha – que desde nova já transbordava de inteligência – que meu pai escutava com paciência de Jó, literalmente já careca de saber aquilo tudo, mas certamente orgulhoso da filha. Quanta coisa aprendi ouvindo as conversas deles!
No que toca à música, tocava um pouco, sim, de violão, piano e violino. Quando se tratava de ouvi-lo tocar violino, não queríamos que terminasse, pois uma vez guardado, o instrumento desaparecia de circulação por muito tempo – porque aquilo não era brinquedo. Violão sobrou até para mim, apesar de não ter talento nenhum para música e de ser bem pequena – o meu violãozinho também era pequeno. Meu pai me ensinou uns acordes menos que básicos, mas que pareciam rebuscados e que, me lembro bem, faziam a assistência dar risada.
Ah! O piano... ele tocava nas raras ocasiões em que as portas da sala de visitas da casa da minha avó eram abertas ao público. Em nossa casa, ele começou a fabricar um, mas nunca acabou.
Os filhos mais velhos conviveram mais tempo com ele ainda bem vigoroso, naturalmente. Ele já começava a ficar cansado, com o passar do tempo. Mesmo assim, meu irmão mais novo se recorda de muita coisa que ele ensinou e relembra sempre de como ele frisava e repetia que todos os seres humanos são iguais. Isso ficou marcado na sua memória. Foram muitos momentos alegres com os filhos menorzinhos também; embevecidos e sem querer largá-lo um só instante, o pai tinha que mandá-los contar de 1 até quanto a circunstância exigisse, para entretê-los, enquanto esperavam que saísse do banheiro.
Uma das maiores dádivas que tivemos no convívio com ele foi ter-nos ensinado e treinado a extrapolar, dentro do inabalável universo da sua fé - um homem de comunhão diária, enquanto teve saúde para ir à igreja por conta própria. Um pequeno exemplo, eu me lembro que, voltando do catecismo na nossa Paróquia, cheia de perguntas sobre aquelas imagens desenhadas de Deus, Adão e Eva no Paraíso, em poucas palavras, ele me sensibilizou ao imponderável, dizendo que não podemos saber como são, que aquelas representações com imagens eram para facilitar o nosso fraco entendimento humano. Ele sabia que as crianças podiam captar ideias de maneira mais livre de amarras que os adultos. Ele não nos poupou e isso foi ótimo.
Meu pai gostava de admirar uma noite estrelada, sobre a laje do primeiro andar da casa, depois do terraço, quando o segundo andar foi construído. Ele nos mostrava as constelações, nos dava noções sobre a imensidão do universo. Assim ele incutiu em mim esta fascinação que tenho, ao olhar para o céu, de sentir a minha pequenez diante do imensurável, de compreender que há o incompreensível.
Penso que uma visão ampla de Céu e Terra é a imagem que melhor representa meu pai, seja no sentido óbvio, seja metaforicamente. É no terraço da minha memória que eu o visualizo, com os olhos voltados para o infinito, os meus nos dele. 
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Yvon Rodrigues Vieira
 Yvon Rodrigues Vieira nasceu e morreu em Belo Horizonte, MG (*23-02-1905 +15-02-1979). Formou-se em Medicina em 1926. Trabalhou no Departamento de Anatomia Patológica da UFMG (entre 1927 e 1936); médico no Instituto de cegos São Rafael; médico do Serviço Público do Estado de Minas Gerais; Co-fundador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Co-fundador da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, professor nas disciplinas de Histologia e Embriologia; professor de Medicina Legal na Faculdade de Direito; Membro do Conselho Diretor da Sociedade Mineira de Cultura, mantenedora das Faculdades Católicas de Minas Gerais; patologista no Laboratório Central do Departamento de Lepra do Estado de Minas Gerais, até o ano de 1963, quando se aposentou.




Algumas referências encontradas na web, para efeito de ilustração:
http://www.medicina.ufmg.br/cememor/wp-content/uploads/sites/51/2016/11/TURMA_1926.pdf          
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http://www.medicina.ufmg.br/apm/sobre/   (ver Histórico)                                                                          ~~~~~~~~~//~~~~~~~~~~~~~                   
http://rmmg.org/artigo/detalhes/566                                                                                                           ~~~~~~~~~//~~~~~~~~~~~~~
http://www.wikiwand.com/pt/Faculdade_de_Ci%C3%AAncias_M%C3%A9dicas_de_Minas_Gerais#/O_primeiro_corpo_docente  (ver em O primeiro corpo docente)
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http://portal.pucminas.br/centrodememoria/documentos/relacao-documentos-transcritos.pdf
 (Página 103, Doc 54)
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http://portal.pucminas.br/centrodememoria/acervos/87.jpg
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http://ila.ilsl.br/pdfs/v16n3a08.pdf
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http://hansen.bvs.ilsl.br/textoc/revistas/brasleprol/1946/pdf/v14n2/v14n2not.pdf  (pág. 1 e 4)                              
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http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=313394&pagfis=115927&url=http://memoria.bn.br/docreader# 
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http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1298924135_ARQUIVO_lepraouhanseniase-anpuhSaoPaulo-LeicyFranciscadaSilva.pdf (onde se lê "reticalocitose", leia-se reticulocitose).
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 https://www.pucminas.br/centrodememoria/documents/inventario-dom-antonio.pdf
( inventário de correspondências recebidas por Dom Antonio dos Santos Cabral, incluindo Carta de Yvon Rodrigues Vieira, em 10/12/1948: aceitação do convite para a Regência da cadeira de Medicina Legal da UCMG)