terça-feira, março 03, 2015

Floresta Sem Lobo Mau

Crônica também publicada pela Editora KBR
http://www.kbrdigital.com.br/blog/floresta-sem-lobo-mau/



Durante meus primeiros anos no Canadá, convenci-me de que todas essas mudanças sazonais eram encantadoras, e, a cada estação que chegava, me punha a admirá-la; por vezes, até surpreendia os nativos, que me achavam valente e resistente, diante de tantas intempéries. Realmente, são paisagens lindas e diferentes, sobretudo para quem, como eu, vem de um país tropical: um mesmo lugar muda completamente de aspecto a cada estação do ano.

Ultimamente, porém, comecei a perceber que já estou bem avançada no processo de assimilação, incorporada à nação canadense, ao Quebec, mais precisamente.  Ou seja, como todo quebequense, já estou cansada desses longos invernos, com frio intenso e sem muita trégua. Só no mês de fevereiro foram raras as noites em que tivemos temperaturas acima de 20°C negativos. Além disso, começa a dar um desânimo por ter que abrir caminho na neve todos os dias, deixar passar um é suficiente para que a neve se torne dura como rocha. E aí, só mesmo quando a primavera chegar, coisa incerta por estas bandas de cá.

Há empresas que oferecem o serviço de remoção da neve a domicílio. Mas, qual o quê! O homem da casa prefere ele mesmo se ocupar do assunto, economizando um dinheirinho ao mesmo tempo que se diverte dirigindo um veículo tão prático como a pequena souffleuse. A maioria dos homens gosta de brincar de “carrinho”, não é?

Bem, isso é verdade no início do inverno. Mas após 5, 6 meses tendo que ir lá fora a cada vez que passa o caminhão que limpa a rua, o snowplow — ou charrue à neige em bom “québécois” —, e deixa um muro de neve na entrada da sua casa, aí o divertimento passa a ficar menos interessante. Mas vale a economia, o inverno vai acabar logo, logo, é um bom exercício físico — são as justificativas para dar força a continuar na batalha. Ufa!

Por essas e por outras é que já aprendi todo o repertório de palavrões do quebequense que, diga-se de passagem, é único no mundo inteiro. Resultado da revolta do povo contra o Catolicismo, os termos são todos provenientes do que é sagrado para a Igreja Católica, blasfêmias consideradas, por eles mesmos, os piores palavrões que existem. Mas este é um “casinho filhote”, como diria minha mãe. Vamos deixar o assunto para uma outra vez.

Não vejo a hora de degustar os primeiros sinais de primavera, e ela está chegando aqui no Hemisfério Norte: a gente vai insistindo na ideia, e um dia ela chega. Brevemente entraremos na Temporada do Açúcar no Canadá, entrará em cena novamente o maple syrup (sirop d’érable). Os Estados Unidos são também produtores importantes, mas a província do Quebec é de longe a maior produtora, responsável pela maior parte da produção mundial.

Adoro quando chega o “Temps des Sucres”, pois é sinal de que o longo inverno está acabando… prenúncio da primavera! É doce, mas não é ilusão.

A obviedade do fato de sermos parte integrante da terra é mais evidente nessas altas latitudes. A gente entra no ritmo. O burburinho começa nas florestas de ácer (maple/ érable), as cabanas de açúcar literalmente a todo vapor. As raízes das árvores se espreguiçam e a seiva começa a subir: é sangue novo que circula.

Todo ano se repete o ritual de fazer o sirop d’érable, uma tradição herdada dos ameríndios e muito apreciada por aqui. Embora haja uma produção enorme usando modernos sistemas, existem ainda muitas cabanas de açúcar que utilizam o tradicional método rústico: faz-se um orifício no tronco da árvore e coloca-se o balde para coletar a seiva. Em seguida, esta “água” é fervida em grandes recipientes, dentro da cabana. Por evaporação, a seiva é concentrada para se transformar no syrup 100% natural.

Nos fins de semana, famílias e amigos costumam se reunir nas cabanas para se regalarem com pratos típicos, tocar acordeon e cantar canções folclóricas, ou simplesmente para se divertir enquanto ajudam nos trabalhos. Cada um toma para si uma tarefa.

Andar na floresta não é tão fácil como parece, e isso até que ajuda a perder os quilinhos a mais adquiridos durante o inverno. E por mais que a tecnologia tenha tornado as roupas e as botas de inverno mais leves, elas ainda representam uma considerável sobrecarga, quando se trata de sair coletando essa água toda para levar para a cabana. Quando ainda resta muita neve no solo, a gente não sabe se o pé vai afundar ou não, se vai pisar em algum galho quebrado, ou numa rocha, e se desequilibrar. Não tendo esse costume, pode-se imaginar a lentidão na qual me locomovo e os risos que provoco, a começar pelos do meu marido. Resultado: prefiro ficar na cabana para lavar a louça. Lá fora, só mesmo para bater fotos e respirar o ar puro, sem medo do lobo mau.

A cabana de açúcar faz pensar em um lugar de druida, como se estivéssemos num mundo mágico a nos deliciarmos com uma poção que está sendo preparada. O foguista, aquele que põe lenha na fornalha, é também quem calibra a “poção” ao ponto certo. A água se converte em açúcar. Uma nuvem doce nos envolve, o cheiro é doce, um gosto açucarado nos invade o paladar. O vapor açucarado se condensa no teto e cai em gotas sobre nossos corpos, e é o foguista que opera o milagre dessa transformação.

Os milagres não acabam mais: é água virando creme, caramelo, bombom, bala… Toda a doçura do mundo na cabana.

Aí… tudo vira primavera!

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