sábado, abril 18, 2015

Intraduzível


Aviar uma receita só não é coisa relegada a segundo plano, porque as pessoas estão cada vez mais tomando remédios para tudo quanto há... e mesmo para o que não há. Mas tornou-se uma atividade paralela, digamos assim, nas farmácias de hoje em dia, que se transformaram em verdadeiras lojas de departamento. Acha-se de tudo, até mesmo estúdio de fotografia credenciado, com direito a tirar retrato para documentos oficiais.
Com o envelhecimento da população canadense, esses estabelecimentos também se transformaram em ponto de bate-papo para os mais idosos e aposentados, principalmente no final do mês, quando recebem suas pensões. Vem-se tornando cada vez mais frequente vê-los na sala de espera do laboratório da farmácia, aproveitando para pôr as notícias em dia, enquanto aguardam sua receita ser aviada.
                Há muitos itens dos quais a compra é mais vantajosa numa farmácia do que no supermercado. Uma vez ou outra, dou uma passadinha pelo departamento de produtos de higiene pessoal, para procurar por desodorantes como os que eu usava no Brasil, tipo spray sem gás comprimido e que não sejam antiperspirantes; daqueles modelos em que a pressão se faz apertando o próprio frasco ou, quando muito, com aquele tubinho com uma bombinha na tampa, para provocar o esguicho. A procura é quase em vão, pois os desodorantes são quase todos vendidos ou em aerossol, ou em bastões, aqueles detestáveis roll on, ou em cremes e loções.
Faço essa busca há anos e raramente encontro, mas não desisto. Existem algumas poucas marcas que oferecem o produto dentro das minhas exigentes especificações. Quando os vejo nas prateleiras, que é coisa rara, compro mais de um, para ter uma reserva, pois nunca sei se vou achar de novo. Confesso que isso se transformou quase numa obsessão, embora eu leve para o lado do divertimento, como um jogo em que se procura um tesouro escondido.
                Falar de desodorante parece um assunto insignificante e até impróprio, diria minha mãe em voz baixa, imbuída pela recatada discrição que o tema requer para alguém do início do século passado... Mas, desculpem-me, torna-se relevante para quem está com a mala cheia de vazios de sua terra natal, seja por metáfora ou pela realidade da mala vazia de fato, guardada já sem nenhum daqueles produtos trazidos da última viagem ao Brasil.
Reconheço que não deveria sequer pensar nisso, considerando tanta coisa que minha família envia, para satisfazer meus caprichos. O carteiro de nossa cidade já até conhece as embalagens do correio brasileiro. Mesmo se o endereço não estiver certo, os pacotes chegam ao destino – mas vai que o carteiro muda, melhor estar com o endereço escrito direitinho.
Esse negócio de se instalar num outro país depois de adultos, nos faz vivenciar um sem-fim de superações, com inopinadas etapas de adaptação e aprendizado, inimagináveis antes de passar pela experiência. A tal homesickness tem mil e uma formas de se manifestar e, às vezes, nos surpreende, como se não fôssemos os protagonistas da nossa própria história. Nem vou mencionar aquela palavra intraduzível, para não reavivar outros vazios.
É claro que há compensações, e não são poucas;  sempre há vantagens e desvantagens em viver aqui ou lá...
Pensando nessas e outras quimeras, enquanto procurava o meu produto nas prateleiras, escutei uma conversa confusa de um grupo de pessoas, vindo da mesma ala onde eu me encontrava. Olhei discretamente para o lado onde estavam e vi três homens que se alternavam na vã tentativa de explicar, em espanhol, o que queriam comprar. Duas jovens responsáveis pelo atendimento à clientela se debatiam ora em inglês, ora em francês, gestualizando formas de objetos e suas funções, sem sucesso. Realmente em apuros, as atendentes já começavam a falar alto, como se o problema dos rapazes fosse surdez. Eles, sem alterar o tom de voz, pareciam serenos e repetiam as mesmas frases várias vezes, como se pudessem se fazer entender, por força da insistência.
Outros clientes começavam a aparecer de todos os lados, com ares de indagação, ninguém se arriscava a entrar no embate linguístico, que permanecia em empate técnico. Um dos curiosos chegou a lamentar que só sabia falar “Hola”, não seria de grande serventia. Sem demora, veio a farmacêutica, triunfalmente a passos largos, pelo corredor, entre clientes e prateleiras. Ela deve saber espanhol, pensei. E todos aguardavam o desfecho, otimistas como eu.
Não, ela não falava espanhol, e foi aí que se deu o desempate; os três clientes estavam prestes a desistir e ir embora, somente com as parcas mercadorias que já tinham juntado no carrinho de compras.
Mas eu compreendia o que eles diziam, que estava fazendo ali parada? Peguei aquela comichão de tentar ajudar e lá fui eu, um pouco temerosa, praticar meu fraco “portunhol”. Feitas breves apresentações, anunciei a possibilidade de tentar traduzir alguma coisa. Eles eram mexicanos, ainda bem, pois eu acho que têm uma pronúncia mais inteligível. Felizmente, consegui o intento de ajudá-los. Os clientes foram me dizendo o que queriam e eu fui anotando a lista traduzida num papelzinho, não sem passar por alguma mímica, e entreguei às empregadas da farmácia, que não me deixaram ir embora enquanto tudo não ficasse resolvido. Ganhei meu dia por ter feito aquela boa ação.
Gracias, gracias, gracias...
Na primavera, verão e início do outono, período em que os agricultores daqui aceleram sua produção, mexicanos e outros estrangeiros originários de países da América Central são contratados para trabalhar nas fazendas canadenses: são os trabalhadores estrangeiros agrícolas sazonais. Aliás, como de costume, tudo aqui é sazonal. Quando chega o frio, eles partem de volta aos seus países, levando as economias que fizeram. Na curta temporada de calor do Canadá, eles ganham mais dinheiro do que se trabalhassem o ano inteiro onde vivem.
Creio que esta é uma boa estratégia do governo canadense. Pelo menos é a ideia que se tem por aqui: ao mesmo tempo que se garante o crescimento da produção do país, esses outros povos recebem ajuda. Antigamente, eram as famílias dos proprietários que trabalhavam nas fazendas; os filhos eram numerosos e davam conta do recado. Atualmente, falta mão de obra para uma produção agrícola cada vez maior e os empregados sazonais vêm preencher essa lacuna.
Não sei se esse método traz benefícios verdadeiros aos países desses trabalhadores, mas parece que sim, pois cada vez maior número de candidatos se inscreve, com o aval dos governos. Será que é bom mesmo?
Como as aves migratórias, no outono, eles voltam para o sul. Fico imaginando a alegria que sentem quando chegam em seus lares. Com que ansiedade suas famílias devem esperá-los, quanto afeto guardado durante meses! Deve ser uma grande festa, todo ano.
E eu, de volta às minhas quimeras, me lembro de uma conhecida e pragmática curiosidade, de um sul mais longínquo:
- E afinal, achou o desodorante? – cochicha Dona Esther, escondendo parcialmente a boca com a mão.
- Achei, sim, mãezinha. Besitos!

~/~
Publicado também pela KBR Editora Digital em 18 de abril de 2015
http://www.kbrdigital.com.br/blog/intraduzivel/


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