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Escrevi este texto há muito tempo, quando
participei de um grupo convidado pela antiga KBR Editora, liderado
pela escritora Noga Sklar. Os personagens são fictícios. Hoje, o reescrevi com algumas
adaptações e modificações. Lembrei-me da minha irmã, que redigia
magnificamente, e me deu o seguinte conselho: escrever é a arte de
cortar palavras... que não são necessárias, claro. Não me lembro de quem é o autor dessa frase. Segui o conselho, cortei palavras, até
parágrafos inteiros 😊
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"A
identidade dela sou eu."
A
cidade de Québec nos mergulha numa sensação do universal, como se
fosse a história de toda a humanidade e de cada um de nós. É como
ir a Ouro Preto, percorrer o passado que nos forjou; é revisitar
histórias que traçaram nosso destino e viraram vitrine de nós
mesmos. Nem sempre nos orgulhamos de tudo o que aconteceu ali, mas
não podemos mudar o passado. Há, pelo menos, tantos sonhos de
justiça que viveram naquelas construções sólidas, na arquitetura
da nossa ancestralidade.
Há
um fascínio especial em caminhar pelas Planícies de Abraham,
sobretudo quando sabemos que foram palco de batalhas que decidiram o
futuro do Canadá. Impossível andar por ali sem pensar nisso, apesar
de hoje ser um parque que nos transmite tanta paz.
Absorta
nesses pensamentos, estava eu passeando no parque, numa manhã de
domingo, desses de céu azul, azul, sem nuvens. Cheguei cedo para
desfrutar do silêncio. Enquanto a cidade parecia ainda adormecida, o
parque não dormia. Como sempre à escuta, oferecia seus mimos aos
visitantes. Pequenos passarinhos, com sua habitual retórica, também
lá estavam, balbuciando saudações matinais.
A
natureza estava especialmente eloquente naquele dia. As folhas
outonais, já caídas em grande número, estalavam esmagadas pelos
meus passos, e aquelas que ainda estavam presas aos galhos das
árvores resistiam ao vento e murmuravam velhas histórias de
memórias distantes, ao sol tépido da manhã. Sentei-me em um banco
no alto do parque, de onde podia admirar a beleza da paisagem, tendo
diante de mim a vastidão do Rio São Lourenço, bom pano de fundo
para o livro que queria ler.
Mal
comecei a primeira página e percebi que chegava uma pessoa; com
certa hesitação, sentou-se num banco quase em frente ao meu, de
costas para o rio. Era
um senhor idoso,
pensei, e logo me corrigi: se
o considero idoso, ele deve ser bem velho, pois idosa já estou eu,
mesmo que na cabeça ainda me sinta jovem.
Quando finalmente se sentou, levantei os olhos discretamente para
vê-lo melhor e, um pequeno sobressalto, ele também me olhava, com
um ligeiro sorriso. Sorri, também, e gaguejei um bom-dia. Ao que ele
me respondeu que eu tinha a melhor vista do parque sentada naquele
banco, que era seu favorito. Mais que depressa levantei-me e cedi-lhe
o lugar, dizendo que minha intenção era ler, onde quer que eu
ficasse seria bom.
— Há
espaço para todos, se não se importar — disse ele, vindo
sentar-se ao meu lado. — A senhora é madrugadora, chegou antes de
mim.
— Desculpe-me,
estou de passagem, não moro na cidade — retruquei, tentando ser
amável e, ao mesmo tempo, tranquilizando-o quanto ao fato de que o
lugar no banco não seria ocupado todos os dias.
Ele
continuou sua conversa, que parecia mais um relatório de vida,
fazendo-me concluir que não conseguiria avançar muito na leitura.
Mas não me importei; ele parecia simpático e inofensivo e,
visivelmente, estava precisando conversar.
— Depois
que me aposentei, venho quase todos os dias respirar o ar puro do
parque. Às vezes, eu vinha com minha esposa, antes da doença.
Ficou
pensativo por um momento e prosseguiu:
— Hoje,
penso naqueles tempos felizes da nossa juventude. Minha mulher e eu
vivemos em tempos mais difíceis, não havia todos os recursos que há
hoje para criar uma família, mas as preocupações eram todas
superáveis. Depois, momentos dolorosos vieram, pois perdi minha
companheira na batalha pela vida. Justamente eu, médico, que salvei
a vida de muitos, não pude fazê-lo para a pessoa que amava tanto.
Mas tenho a sensação de missão cumprida, porque estive sempre ao
seu lado para confortá-la e dar-lhe o meu amor…
Após
a morte de sua doce companheira, ele vendera a casa onde moravam e,
como tantas outras pessoas da sua idade, optara por morar em um
apartamento, num edifício desses construídos para abrigar idosos
que ainda são capazes de cuidarem de si próprios. Ali ele esperava
continuar, sem incomodar ninguém, até que viesse o momento de se
juntar à sua querida.
E
acrescentou:
— Desculpe-me
incomodá-la com minhas histórias, por favor, continue sua leitura;
tenho um compromisso, estou esperando alguém, não demorarei muito
por aqui hoje. Dizendo isso, recostou-se, como quem não tem pressa.
Consegui
ler algumas poucas linhas, enquanto o meu vizinho de banco cochilava.
Aos poucos, outras pessoas chegavam ao parque, podia-se ouvir os
gritinhos e as risadas alegres das crianças. Minha concentração na
leitura esvaiu-se completamente no voo de dois lindos gaios azuis,
que soltavam seus gritos com pleno vigor. Uma pequena rajada de vento
cobriu nosso banco de folhinhas miúdas, como uma chuva de estrelas
douradas. Pensei que, com tudo isso, o nosso dorminhoco acordaria,
mas não, ele devia estar acostumado.
O
sol preguiçoso de domingo se levantava e aquecia o parque. Olhei
para as árvores em volta e percebi que as cores já tinham mudado
muito. Havia vermelhos em vários tons, havia amarelo e laranja,
verdes ainda vários… As folhas estavam brilhantes, pareciam ter
luz própria. O outono estava em sua plenitude, o ciclo da vida
seguia sua jornada com muita graça e, acima de tudo, sem sofrimento.
Identifiquei-me com a natureza, tive a impressão de integrar-me a
esse cenário esplêndido e completo em sua dimensão cíclica. Por
alguns instantes, não senti necessidade de me fazer perguntas,
compreendi e aceitei minha condição humana intuitivamente.
Um
grande suspiro reteve a respiração do senhor ao meu lado por tanto
tempo que ele acordou de seu cochilo, assustado. E percebeu uma
lágrima descendo de seu olho esquerdo, sem o seu consentimento…
Uma lágrima pesada, que seus dedos enxugaram instintivamente.
Neste
momento, ouvimos os gritinhos alegres de seus netos o chamando, e ele
me explicou que era seu filho mais novo que vinha buscá-lo,
acompanhado de sua nora e netos; todos pareciam radiantes com o
encontro. Apontando para Jérôme, o neto mais novo, ele disse: este
tem os olhos suaves de minha mulher. E voltando-se para Marie-Ève,
contou-me que ela também tinha herdado algo de sua avó: o mais belo
sorriso do mundo.
Era
hora de partir para a sua reunião dominical com a família. Tomou
Jérôme nos braços e Marie-Ève deu-lhe a mão — seu filho e sua
nora caminhando na frente, o avô atrás, com os netos e muitas
histórias, lá se foram eles lentamente, deixando no parque
vestígios radiosos de vida.
Compreendi
a serenidade daquele homem. Ele teve a chance de viver num mundo
civilizado que ajudou a edificar. Apesar de todas as dificuldades que
teve que enfrentar, tinha feito a sua parte, tanto profissionalmente
como em família. Seus filhos tinham sido bem educados, escolhido bem
suas companheiras e estavam transmitindo essa boa herança para seus
netos. Ele havia ajudado a povoar a Terra com pessoas boas, de bons
princípios — isso valia os sacrifícios vividos, e poderia morrer
em paz. Não havia sido inútil ter feito o melhor que pôde. Essa
ideia me pareceu clara o bastante.
Fiquei
ali nas Planícies de Abraham, esperando para me encontrar com meu marido.
Ainda não era minha hora de partir.
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P.S.: Escrevi este texto há muito tempo,
quando participei de um grupo convidado pela antiga KBR Editora,
liderado pela escritora Noga Sklar. É ficção. Hoje, o reescrevi
com algumas adaptações e modificações. Lembrei-me da minha irmã,
que redigia magnificamente, e me deu o seguinte conselho: escrever é
a arte de cortar palavras... que não são necessárias, claro. Não
lembro quem é o autor dessa frase. Segui o conselho, cortei
palavras, até parágrafos inteiros :-)
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