sábado, dezembro 12, 2020

Vacina pela Vida

 


Imaginem a situação de precariedade, até médicos diplomados fora do Canadá, que não conseguiram a validação de suas capacidades profissionais aqui, estão sendo lembrados para administrarem vacinas – dar injeção, isso mesmo! Contando, certamente, com o espírito “missionário” da categoria, o Ministério de Saúde da província incluiu-os no recrutamento amplo [1], para o qual, digo logo, não serei voluntária, porque sou idosa, do grupo de risco, portanto. Não posso ficar me expondo por aí, tampouco trazer o perigo para dentro de casa, para o meu idoso amor.

Espírito missionário, sim, porque lidar diretamente com o ser humano e suas mazelas demanda uma índole de desapego de si próprio, por mínima que seja, mesmo que possa haver a possibilidade de ganhar muito dinheiro, o que não é o caso da grande maioria, por esse mundo afora.

Dos médicos que imigram para o Canadá, sabe-se lá por que razão – a minha foi o amor, que me fez deixar para trás uma boa condição financeira – a maioria não consegue validar o diploma. Acabam desistindo pois custa muito caro ficar tentando, há gordas taxas a pagar pelo acesso aos exames, documentos infindáveis a traduzir por tradutor juramentado, estágios demorados, etc... E ninguém vive de brisa, ainda por cima tão gelada como a daqui, que exige acessórios também dispendiosos – desde luvas a carros e casa bem equipados.

Nessa rodada, consegui, pelo menos, uma equivalência de estudos médicos superiores, que serviu para ser reconhecida como uma pessoa educada e instruída, por ser médica, apesar de não me dar o direito de “estar” médica.

Da parte financeira não reclamo, porque sempre tive meu marido, que é canadense, pronto para o que desse e viesse. Mas a minha índole não é irresponsável, não conto com o desapego alheio, tratei logo de providenciar minha cidadania e de achar emprego, mesmo fora da minha área de atuação. Mas isso é um outro assunto, que daria muitos “textões”.

Embora possa parecer que tenho amargura por tudo isso que aconteceu, não tenho. A coisa é amarga por si só, mas não atingiu meu otimismo. Tenho consciência, porém, de que deve ser desencorajador para outros que também não conseguiram e não tiveram alguém, como eu tive o meu marido, para ajudar na integração ao país e que até me serviu de referência “pure laine”, para facilitar minha admissão em bons empregos.

Há mais de duas décadas vivendo aqui e esse assunto volta à baila. Por que? É que minha “belle-famille” – a família do meu marido – ficou com essa frustração, creio que mais do que eu. Cada vez que surge alguma alteração nos critérios de validação de diploma de médico estrangeiro, ou um recrutamento como este, agora, a família se lembra de mim.

Já há algum tempo que tenho dado graças a Deus por não ter sido “validada” como médica no Canadá. Sim, penso que foi uma graça recebida. Muitas vezes, alguma coisa que consideramos ser ruim para nós, mais tarde, descobrimos que foi a Providência Divina.

Eu me motivei pela Oncologia por ver, na intimidade molecular da vida, onde atuam os quimioterápicos, a possibilidade de fazer sobreviver, curando ou amenizando sofrimentos. Como poderia integrar-me num sistema em que são legalizados o aborto e a ajuda médica para morrer? Com um agravante que, na verdade, está em primeiro lugar: a minha fé e os princípios que prezo. Haveria muitos casos oncológicos – e há – em que os pacientes pediriam esses procedimentos e eu não poderia concordar, nem sequer encaminhar para outro médico que autorizasse. Seria contra meus princípios, contra a minha fé.

Os abortos já são coisa consolidada aqui, pela lei e pelos costumes. O suicídio assistido foi legalizado, em determinadas situações. Está caminhando para ser banalizado, também, como foi o aborto. A que ponto chegamos... Há pouco mais de dois meses, por causa da segunda onda da pandemia, uma senhora de 90 anos teve sua demanda aceita, porque ela não suportaria mais viver fechada no quarto de uma residência para idosos, sem poder ter visitas. Na primeira demanda, o médico recusou, pois ela estava em bom estado físico. Mas a idosa ficou deprimida, acamada, sem se alimentar direito; sua saúde deteriorou-se em pouco tempo e o médico acabou autorizando o procedimento.

Soube de outros casos de suicídio assistido em pessoas com câncer avançado, consideradas incuráveis, embora ainda ativas – não queriam sofrer mais. Não consigo me enxergar como médica em situações como essas. Teria que abandonar a profissão. Melhor foi não ter entrado para esse cenário. 

Considero oportuno o meu depoimento, em texto, sobre o que penso. Aliás, a lei que regula a ajuda médica para morrer está para ser reajustada, até 18 de dezembro, com um projeto que amplia ainda mais as possibilidades de acesso ao serviço. Não cabe a mim julgar ninguém; peço a Deus que ilumine nossos legisladores e cada um de nós.

Termino aqui, com um lembrete da Misericórdia Divina. O Vaticano já se manifestou várias vezes contra o aborto, claro, e há muitos padres que falam sobre isso [2]. Muito importante, também, é lembrar que Deus perdoa os corações arrependidos. O Papa Francisco permitiu que todos os padres possam absolver quem se arrepende do "grave pecado" do aborto, ampliando, indefinidamente, uma permissão especial que ele havia concedido durante o Ano Sagrado da Misericórdia. Como a Igreja Católica considera o aborto um pecado grave, ela anteriormente dava a prerrogativa de absolvê-lo a um bispo, que podia conceder esse perdão diretamente ou delegá-lo a um padre especialista nessas situações. Agora, todos os padres estão autorizados [3].

Quanto à ajuda médica para morrer, só Deus sabe o que se passa no pensamento das pessoas que escolhem este fim e até o fim.

Deus todo-poderoso, tenha compaixão de nós, perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna.”[4]

~~~~~~~

Links relacionados:

[1] Pandémie Covid-19 - Arrêté ministériel

[2] Papa Francisco condena o aborto

[3] Papa Francisco dá permissão a todos os padres de absolver quem se arrepende de ter cometido o aborto

[4] Misericordia et misera

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário