Na foto, Sá Ana e Maria do Carmo |
A mãe e seus seis filhos
tinham acabado de chegar a Montreal, o pai viria só no outro dia, por causa do
trabalho. Era a primeira vez que as crianças visitavam a grande metrópole.
Tomaram um ônibus para ir à casa de uns parentes. Não estava cheio, todos foram
se assentando rapidamente, a mãe supervisionando tudo, antes de tomar o seu
lugar. A pequena Isabelle, pouco mais de 3 anos de idade, ficou de pé, encostada
na sua mãe, uma agarrada à outra.
Seria um longo trajeto a
percorrer. Em todo caso, Isabelle poderia se sentar no colo da mãe. De relance,
divisou um olhar dirigido a ela e percebeu que sobrava um lugar vago, ao lado
de uma senhora negra e idosa, que, gentilmente, lhe mostrava o assento,
sorrindo. Sua mãe deu-lhe, imediatamente, o consentimento para que ela fosse lá
se acomodar. Sentindo um misto de vergonha, medo e respeito, a menina se viu
obrigada a aceitar o convite, mas não pôde conter o choro, com o impacto da
proximidade de alguém como ela jamais tinha visto. Assim, uma amiga canadense, aproximadamente
da minha idade, me contou, com riqueza de detalhes, sobre a primeira vez em que
viu uma pessoa negra, de perto.
Devo confessar que, ao ouvir
essa história, fiquei profundamente
comovida, com muita pena daquela senhora, tive que conter minhas lágrimas. Mas também fiquei com pena da
menina.
Fiquei pensando... provavelmente, da mesma maneira se sentiria uma criança negra africana, morando em alguma aldeia onde jamais tivesse ido um homem branco, ao ver um branquelo, de perto.
Fiquei pensando... provavelmente, da mesma maneira se sentiria uma criança negra africana, morando em alguma aldeia onde jamais tivesse ido um homem branco, ao ver um branquelo, de perto.
Isso é tão diferente do que
aconteceu com os brasileiros! Pelo menos os da minha geração. Por favor, sintam
o que estou querendo dizer... Primeiramente, vou-me situar na história: sou uma
pessoa viva no ano de 2016 – idosa, vá lá, nos meus 61 anos de idade, mas nem
tão velha assim – e meus avós nasceram antes da abolição da escravatura no
Brasil; eles possuíam escravos. Convenhamos, a escravidão não é tão antiga. Quando era jovem, esse
período da história me parecia muito longe no passado. Hoje, não tenho mais
essa impressão.
Os tempos da minha infância eram
outros, contudo, há já mais de meio século. Naquela época, justamente porque as
consequências da escravidão estavam mais próximas ainda, era mais fácil ter
empregadas domésticas, que eram negras, na maioria das vezes. Não se pagava
muito, não havia nenhuma legislação sobre esse tipo de trabalho, e a função era
muito concorrida. Não faltava mão-de-obra, elas batiam à porta pedindo emprego
com muita frequência.
Claro, quanta gente foi
liberada da escravidão sem que existisse nenhum programa social de suporte para
essa enorme população deixada à deriva. Foram, naturalmente, aumentando em
número, tendo seus filhos em condições precárias de vida, sem ter a mínima
chance de ingressar nas escolas, pois tinham que começar a trabalhar cedo. A
única opção era o trabalho doméstico para as mulheres e, para a maioria dos
homens, o trabalho braçal, principalmente em construções e em minas, numerosas
na nossa região.
Em Belo Horizonte, uma
cidade “inventada”, as famílias, em geral, eram recentemente chegadas do
interior, deslocadas para funções na nova capital mineira, ou atraídas pelo seu
rápido crescimento urbano. Meus irmãos e eu éramos um dos raros casos, na nossa
geração, em que os pais tinham nascido na cidade; meus avós foram pioneiros.
Somos belo-horizontinos “da gema”.
Também as favelas estavam
começando a crescer, naqueles idos dos anos 1950, e eram formadas por famílias
igualmente vindas do interior, em busca do sonho de uma vida melhor na capital
do estado; eram, na maioria, negros, que se instalavam nos morros, em terrenos
não reclamados por ninguém e tacitamente cedidos pelas autoridades;
ali, eles construíam seus barracões, formando as favelas.
Na casa paterna, apesar de
não sermos ricos, tínhamos várias empregadas: cozinheira, faxineira,
lavadeira/passadeira, babás... Pensando nisso agora, parecia um local público,
com gente transitando para todo lado, constantemente. Quem eram essas pessoas
que trabalhavam na nossa casa? Com exceção de duas ou três jovens de famílias
conhecidas, vindas diretamente do interior do estado, em certo período, passaram
por nossa vida, em diferentes fases, várias senhoras e senhoritas que moravam na favela próxima, o “Morro
do Pau Comeu”.
Já, já o leitor verá aonde
vou chegar...
A escravidão foi uma
tragédia que aconteceu no Brasil, que, jamais, em tempo algum, pode ser
justificada pelos ganhos econômicos que o país teve com o trabalho dos milhões de negros arrancados da África.
Da escravidão sofremos sequelas até hoje, pagamos e pagaremos caro por isso, não se sabe
até quando. Mas de tudo, até da desgraça, podemos enxergar um lado bom. Só
percebi este outro lado da moeda depois que vim morar no Canadá. Apesar do
pesadelo que povoa o berço esplêndido dos brasileiros atualmente, com problemas
de toda ordem, tenho um pensamento bom para nós, enquanto povo... Alvíssaras!
Mesmo para quem não aceita
que, por mais brancos que sejamos, somos miscigenados com os negros, desde os
portugueses que temos em nossa ancestralidade – testes de DNA feitos no Brasil et ailleurs provam – nós temos motivos
de sobra para nos identificarmos com os negros, até muito mais do que pela
genética. Tivemos contato com nossas, digamos assim, segundas mães, negras,
desde que nascemos. Fossem babás, cozinheiras, lavadeiras ou passadeiras, elas
fizeram parte do primeiro lote de seres humanos que conhecemos e com quem
partilhamos nossos primeiros afetos.
Em países como o Canadá, até
hoje, a maioria da população tipicamente do país só chega a ver algum negro, de
passagem, em uma cidade grande, ou pela televisão. Muitos do interior do país, que
nunca saíram fora de sua região, nunca sequer passaram perto de um. É até
difícil, diria impossível, conseguirmos nos colocar no lugar deles, termos
empatia, para saber o que sentem.
Creio que na Europa deve
ter-se passado coisa semelhante, anos atrás. Certa vez, ouvi o relato de um
espanhol, de uma geração mais velha que a minha, que dizia ter visto pessoas negras
só em enciclopédias e revistas, antes de se mudar para o Brasil. Penso que só nos últimos tempos é que houve uma migração maciça de
africanos para os países que os colonizaram. Talvez isso explique a recente (mas anterior à "crise migratória")
onda planetária de combate ao racismo, exatamente porque ainda é recente esse sentimento de estranheza entre
pessoas que têm aparência diferente, nesses países... não nos que foram
colonizados, claro.
No Brasil, estamos
infinitamente mais avançados nessa maratona contra o racismo. Temos que
assumir, que estar cientes disso e parar de importar maus exemplos de outros
países, onde sequer imaginamos como se passa o relacionamento entre as várias
etnias e suas trajetórias. Diga-se de passagem, o Canadá não se enquadra nos maus exemplos, pelo contrário, o povo é naturalmente receptivo, aberto a tudo e a todos.
Quanto a nós, brasileiros, conhecemos a nossa história,
sabemos que prevalece um sentimento positivo em nossas ligações afetivas e
culturais com todos os povos que nos formaram, apesar do conflito que existe no
confronto com as desigualdades socioeconômicas. Não precisamos nos menosprezar
e querer copiar modelos inadequados de outras terras. Se é para copiar, vamos
copiar o que há de bom. Temos que nos esforçar para pôr ordem em nossos bons sentimentos
e valorizá-los, para superar nossas fraquezas.
Entre nossas fraquezas,
menciono a dependência de ter alguém para fazer os trabalhos domésticos. Isso
não é bom nem para os patrões, nem para os empregados. Valeu como transição
para que ambos se adaptassem à nova situação de liberdade, mas é preciso
evoluir, a transição não pode durar eternamente. Precisamos largar esse ranço
dos tempos da escravidão. Por esse lado, os países que não tiveram povos
escravizados nos dão um bom exemplo a copiar. Ninguém depende de terceirizar o
cuidado da sua própria casa.
Uma
das coisas de que mais gostei, aqui no Canadá, foi de não ter empregada doméstica,
uma situação que sempre me incomodou no Brasil. Mas aqui, claro, existe infra-estrutura
para viver sem estas “dependências”. Há maior divisão dos trabalhos em família,
todos se envolvem, é um trabalho de equipe, em casas bem equipadas de
eletrodomésticos. Para os casos em que ambos, mãe e pai, trabalham fora, existem
creches em profusão para cuidar das crianças pequenas, enquanto os pais se ausentam (as grandes permanecem na escola o dia inteiro); no
caso de idosos com perda de autonomia, também existem numerosas casas com
cuidadores profissionais.
Vamos
nos emancipar, viver nossas próprias vidas e deixar os outros viverem as deles.
“É pra frente que se anda.” Para isso, não se deve tardar em colocar mãos à
obra para melhorar as condições de vida dos pobres do Brasil, para que eles
possam alçar voo com suas próprias asas.
Em
homenagem às minhas queridas que tanto ajudaram minha mãe na labuta diária, vou
dar uma ideia aos brasileiros: que se abram muitas creches e muitos asilos
decentes e se dê formação às empregadas domésticas para trabalharem nesses
locais, num primeiro tempo, para que deixem de ser empregadas domésticas, sem
ficarem desempregadas. O nível de satisfação será, certamente, muito maior, em
todos os sentidos, para todos.
Com
um detalhe inovador: os asilos poderiam funcionar como as creches, os idosos
permanecendo lá só enquanto seus cuidadores naturais (filhos, por exemplo) se
ausentam de casa, para trabalhar.
E
o trabalho em casa? Façam como aqui no Canadá: dividam tarefas e horários entre
os membros da família, pais e filhos. Allez,
hop!
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