terça-feira, setembro 27, 2016

Alvíssaras!

Na foto, Sá Ana e Maria do Carmo
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A mãe e seus seis filhos tinham acabado de chegar a Montreal, o pai viria só no outro dia, por causa do trabalho. Era a primeira vez que as crianças visitavam a grande metrópole. Tomaram um ônibus para ir à casa de uns parentes. Não estava cheio, todos foram se assentando rapidamente, a mãe supervisionando tudo, antes de tomar o seu lugar. A pequena Isabelle, pouco mais de 3 anos de idade, ficou de pé, encostada na sua mãe, uma agarrada à outra.
Seria um longo trajeto a percorrer. Em todo caso, Isabelle poderia se sentar no colo da mãe. De relance, divisou um olhar dirigido a ela e percebeu que sobrava um lugar vago, ao lado de uma senhora negra e idosa, que, gentilmente, lhe mostrava o assento, sorrindo. Sua mãe deu-lhe, imediatamente, o consentimento para que ela fosse lá se acomodar. Sentindo um misto de vergonha, medo e respeito, a menina se viu obrigada a aceitar o convite, mas não pôde conter o choro, com o impacto da proximidade de alguém como ela jamais tinha visto. Assim, uma amiga canadense, aproximadamente da minha idade, me contou, com riqueza de detalhes, sobre a primeira vez em que viu uma pessoa negra, de perto.
Devo confessar que, ao ouvir essa história, fiquei profundamente comovida, com muita pena daquela senhora, tive que conter minhas lágrimas. Mas também fiquei com pena da menina. 
Fiquei pensando... provavelmente, da mesma maneira se sentiria uma criança negra africana, morando em alguma aldeia onde jamais tivesse ido um homem branco, ao ver um branquelo, de perto.
Isso é tão diferente do que aconteceu com os brasileiros! Pelo menos os da minha geração. Por favor, sintam o que estou querendo dizer... Primeiramente, vou-me situar na história: sou uma pessoa viva no ano de 2016 – idosa, vá lá, nos meus 61 anos de idade, mas nem tão velha assim – e meus avós nasceram antes da abolição da escravatura no Brasil; eles possuíam escravos. Convenhamos, a escravidão não é tão antiga. Quando era jovem, esse período da história me parecia muito longe no passado. Hoje, não tenho mais essa impressão.
Os tempos da minha infância eram outros, contudo, há já mais de meio século. Naquela época, justamente porque as consequências da escravidão estavam mais próximas ainda, era mais fácil ter empregadas domésticas, que eram negras, na maioria das vezes. Não se pagava muito, não havia nenhuma legislação sobre esse tipo de trabalho, e a função era muito concorrida. Não faltava mão-de-obra, elas batiam à porta pedindo emprego com muita frequência.
Claro, quanta gente foi liberada da escravidão sem que existisse nenhum programa social de suporte para essa enorme população deixada à deriva. Foram, naturalmente, aumentando em número, tendo seus filhos em condições precárias de vida, sem ter a mínima chance de ingressar nas escolas, pois tinham que começar a trabalhar cedo. A única opção era o trabalho doméstico para as mulheres e, para a maioria dos homens, o trabalho braçal, principalmente em construções e em minas, numerosas na nossa região.
Em Belo Horizonte, uma cidade “inventada”, as famílias, em geral, eram recentemente chegadas do interior, deslocadas para funções na nova capital mineira, ou atraídas pelo seu rápido crescimento urbano. Meus irmãos e eu éramos um dos raros casos, na nossa geração, em que os pais tinham nascido na cidade; meus avós foram pioneiros. Somos belo-horizontinos “da gema”.
Também as favelas estavam começando a crescer, naqueles idos dos anos 1950, e eram formadas por famílias igualmente vindas do interior, em busca do sonho de uma vida melhor na capital do estado; eram, na maioria, negros, que se instalavam nos morros, em terrenos não reclamados por ninguém e tacitamente cedidos pelas autoridades; ali, eles construíam seus barracões, formando as favelas.
Na casa paterna, apesar de não sermos ricos, tínhamos várias empregadas: cozinheira, faxineira, lavadeira/passadeira, babás... Pensando nisso agora, parecia um local público, com gente transitando para todo lado, constantemente. Quem eram essas pessoas que trabalhavam na nossa casa? Com exceção de duas ou três jovens de famílias conhecidas, vindas diretamente do interior do estado, em certo período, passaram por nossa vida, em diferentes fases, várias senhoras e senhoritas que moravam na favela próxima, o “Morro do Pau Comeu”.
Já, já o leitor verá aonde vou chegar...
A escravidão foi uma tragédia que aconteceu no Brasil, que, jamais, em tempo algum, pode ser justificada pelos ganhos econômicos que o país teve com o trabalho dos milhões de negros arrancados da África. Da escravidão sofremos sequelas até hoje, pagamos e pagaremos caro por isso, não se sabe até quando. Mas de tudo, até da desgraça, podemos enxergar um lado bom. Só percebi este outro lado da moeda depois que vim morar no Canadá. Apesar do pesadelo que povoa o berço esplêndido dos brasileiros atualmente, com problemas de toda ordem, tenho um pensamento bom para nós, enquanto povo... Alvíssaras!
Mesmo para quem não aceita que, por mais brancos que sejamos, somos miscigenados com os negros, desde os portugueses que temos em nossa ancestralidade – testes de DNA feitos no Brasil et ailleurs provam – nós temos motivos de sobra para nos identificarmos com os negros, até muito mais do que pela genética. Tivemos contato com nossas, digamos assim, segundas mães, negras, desde que nascemos. Fossem babás, cozinheiras, lavadeiras ou passadeiras, elas fizeram parte do primeiro lote de seres humanos que conhecemos e com quem partilhamos nossos primeiros afetos.
Em países como o Canadá, até hoje, a maioria da população tipicamente do país só chega a ver algum negro, de passagem, em uma cidade grande, ou pela televisão. Muitos do interior do país, que nunca saíram fora de sua região, nunca sequer passaram perto de um. É até difícil, diria impossível, conseguirmos nos colocar no lugar deles, termos empatia, para saber o que sentem.  
Creio que na Europa deve ter-se passado coisa semelhante, anos atrás. Certa vez, ouvi o relato de um espanhol, de uma geração mais velha que a minha, que dizia ter visto pessoas negras só em enciclopédias e revistas, antes de se mudar para o Brasil. Penso que só nos últimos tempos é que houve uma migração maciça de africanos para os países que os colonizaram. Talvez isso explique a recente (mas anterior à "crise migratória") onda planetária de combate ao racismo, exatamente porque ainda é recente esse sentimento de estranheza entre pessoas que têm aparência diferente, nesses países... não nos que foram colonizados, claro.
No Brasil, estamos infinitamente mais avançados nessa maratona contra o racismo. Temos que assumir, que estar cientes disso e parar de importar maus exemplos de outros países, onde sequer imaginamos como se passa o relacionamento entre as várias etnias e suas trajetórias. Diga-se de passagem, o Canadá não se enquadra nos maus exemplos, pelo contrário, o povo é naturalmente receptivo, aberto a tudo e a todos.
Quanto a nós, brasileiros, conhecemos a nossa história, sabemos que prevalece um sentimento positivo em nossas ligações afetivas e culturais com todos os povos que nos formaram, apesar do conflito que existe no confronto com as desigualdades socioeconômicas. Não precisamos nos menosprezar e querer copiar modelos inadequados de outras terras. Se é para copiar, vamos copiar o que há de bom. Temos que nos esforçar para pôr ordem em nossos bons sentimentos e valorizá-los, para superar nossas fraquezas.
Entre nossas fraquezas, menciono a dependência de ter alguém para fazer os trabalhos domésticos. Isso não é bom nem para os patrões, nem para os empregados. Valeu como transição para que ambos se adaptassem à nova situação de liberdade, mas é preciso evoluir, a transição não pode durar eternamente. Precisamos largar esse ranço dos tempos da escravidão. Por esse lado, os países que não tiveram povos escravizados nos dão um bom exemplo a copiar. Ninguém depende de terceirizar o cuidado da sua própria casa.
Uma das coisas de que mais gostei, aqui no Canadá, foi de não ter empregada doméstica, uma situação que sempre me incomodou no Brasil. Mas aqui, claro, existe infra-estrutura para viver sem estas “dependências”. Há maior divisão dos trabalhos em família, todos se envolvem, é um trabalho de equipe, em casas bem equipadas de eletrodomésticos. Para os casos em que ambos, mãe e pai, trabalham fora, existem creches em profusão para cuidar das crianças pequenas, enquanto os pais se ausentam (as grandes permanecem na escola o dia inteiro); no caso de idosos com perda de autonomia, também existem numerosas casas com cuidadores profissionais.
Vamos nos emancipar, viver nossas próprias vidas e deixar os outros viverem as deles. “É pra frente que se anda.” Para isso, não se deve tardar em colocar mãos à obra para melhorar as condições de vida dos pobres do Brasil, para que eles possam alçar voo com suas próprias asas.
Em homenagem às minhas queridas que tanto ajudaram minha mãe na labuta diária, vou dar uma ideia aos brasileiros: que se abram muitas creches e muitos asilos decentes e se dê formação às empregadas domésticas para trabalharem nesses locais, num primeiro tempo, para que deixem de ser empregadas domésticas, sem ficarem desempregadas. O nível de satisfação será, certamente, muito maior, em todos os sentidos, para todos.
Com um detalhe inovador: os asilos poderiam funcionar como as creches, os idosos permanecendo lá só enquanto seus cuidadores naturais (filhos, por exemplo) se ausentam de casa, para trabalhar.
E o trabalho em casa? Façam como aqui no Canadá: dividam tarefas e horários entre os membros da família, pais e filhos. Allez, hop!

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