Entrei numa página web onde
havia o desenho de uma casinha e escrito abaixo: “Em construção”. Já vi isso
muitas vezes, claro, mas, num de meus ataques nostálgicos, lembrei do meu doce
lar no Brasil, onde o uso dessa expressão era frequente; isso foi há muito
tempo, quando nem sonhávamos com internet.
Era uma casa... chão, teto, paredes,
tinha tudo, e foi ali que vivi durante muito tempo, desde que nasci. Hoje,
concluo que foi essa a pátria que conheci e que me amou. Era uma morada encantada
pelo mistério da eternidade – sempre inacabada – e tocada serenamente por aquilo
que nós, pobres mortais, podemos perceber como felicidade. Não havia previsão
de quando terminaria, a construção era sempre pautada no futuro. Éramos ainda
jovens.
Durante
décadas morei naquela casa grande por dentro. Na rua, passavam enxurradas
torrenciais, quando chovia. Já teve até inundação. Às vezes, dava goteira. Mas
sempre tinha um jeito de consertar, até mesmo as gotas salgadas dos olhos da
gente... Isso ninguém pode evitar.
Não
posso negar que, além de sempre inacabada, aquela casa estava constantemente em
mutação, era mutante. Mudavam-se portas, janelas e paredes de lugar, como se
fossem móveis. Tudo era mutável… Era surreal. Mas como éramos felizes! Talvez
isso tenha nos ajudado a sermos capazes de nos reinventar, quando as condições
exigem.
Não
me lembro de todas as alterações, ao longo dos anos, mas algumas me marcaram. A
sala grande foi dividida em duas, fechou-se o arco e uma bela parede foi
erguida, com acabamento em pedras de Ouro Preto, do lado que era visível para
quem entrava, vindo do exterior – causava uma bela impressão. Mas a comunicação
com o resto da casa passou a se fazer por caminhos tortuosos e isso nos incomodou.
Decidiu-se pôr parede abaixo e voltar com o antigo arco que dividia os dois
ambientes, podendo ser fechado por aquela porta de quatro folhas que se
dobravam, duas de cada lado... que raramente se encontravam. A passagem era
livre.
Houve
outros arcos dividindo ambientes que também se fecharam e depois se abriram, alguns se
transformaram em estantes embutidas. Cheguei a pensar na possibilidade de
termos uma porta, daquelas disfarçadas com prateleiras de livros que, a um toque
abracadabrante, se abrisse em uma outra sala. Não que tivesse alguma coisa para
esconder, mas para termos parede e passagem ao mesmo tempo, com um certo charme.
Mataríamos dois coelhos de uma cajadada só. Não me lembro se dei esta sugestão
aos meus pais, se o fiz, a ideia deve ter ido para alguma sala de espera.
Janelas
foram muitas que perderam a função, pela adição de puxados, por vezes
avarandados. Com a progressão dos perigos da cidade, as varandas também foram-se fechando, com grades em profusão. Nossa casa foi tomando o aspecto de uma
prisão. Mas só para quem estava do lado de fora. Lá dentro, nossos pensamentos
tinham asas e voavam longe. Todos que entravam lá de bons modos, eram bem recebidos e arrebatados nessas revoadas poéticas, filosóficas, espirituais e espirituosas, muitas vezes lúdicas. E foram muitos os que testemunharam isso e se tornaram "habitués".
Mas voltando às reformas da casa, a
alteração mais extravagante de que me lembro, foi uma parede levantada para
criar um corredor, que se tornou inviável, pela escuridão que ali se instalou;
teria que haver luz artificial o dia inteiro. O destino desta parede também foi
a demolição, mas na espera de mão de obra ou de recursos, não sei, foi aberto
um buraco provisório... Sim, um buraco pelo qual tínhamos que fazer uma
verdadeira acrobacia para passar – éramos jovens. Esse buraco já nos garantiu
muitas gargalhadas, não foi uma passagem inútil.
Provisório
era uma palavra muito conhecida nossa. Confesso que, ao entrar na adolescência,
comecei a ter vergonha da eterna situação de construção da nossa casa, com o
fator provisório sempre entrando em cena. Que bobagem! Hoje eu sei. Tanta coisa
mais importante se passava naquele lar, ensinamentos de toda ordem, tantas artes
e bondades, tanto amor circulava ali, caridade... Podemos dizer, meus irmãos e
eu, que tivemos “berço de ouro”, apesar daquela simplicidade toda. Ouro de
outra matéria, de outra dimensão.
Era
nosso “palais de la liberté” (Palais de la liberté). Por fora, o nosso palácio parecia pequeno, mas
tinha um coração enorme!
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Muito bom.
ResponderExcluirA cada trecho uma pausa para meditações.
Ali conhecemos os pilares da sobrevivência.
Exatamente!!! Temos só que agradecer. E meditar, você tem razão.
ExcluirMe elejo uma das testemunhas e me insiro na "timeline" do tempo das recordações! Se não me falha a memória esse ambiente com o buraco se tornou um pombal... Parabéns pelo texto (que consegue nos "tele-transportar"). Bamba
ResponderExcluirVocê é, não só testemunha, como ativo integrante, faz parte da história!!! O buraco foi uma tentativa frustrada de fazer um corredor, no andar de baixo, entre a sala onde ficava a TV e a sala de jantar... Acho que este foi bem antes, penso que você não chegou a ver... Era surreal... hehehe
ResponderExcluirAmei tia Du! Como sempre, belíssimo texto.
ResponderExcluirAcho que não cheguei a ver essas mudanças que você descreveu, mas vi outras rsrs
Ali foi um verdadeiro berço de ouro para filhos, amigos e netas!
Esqueci de assinar: Lulu
ResponderExcluirHahaaha.... As mudanças continuaram até os dias de hoje!
ResponderExcluirDurante anos e anos,Dr.Yvon reservava as tardes de sábado para atender os necessitados da favela do "Pau Comeu" pois deles nada era cobrado ou exigido por aquele Médico carinhoso e humano.Sorte deles,eram atendidos por um catedrático de duas Faculdades.
ResponderExcluirEu,menino ainda,curioso, via os pacientes chegarem apavorados com queixas diversas.
Depois de conversar com eles,Dr.Yvon os colocava sentados e os auscultava internamente com o estetoscópio.
Em seguida após deitá-los, tamborilava com as mãos o abdômen deles.
Geralmente após terminar tudo o mais,dizia:"Não é nada",receitando logo em seguida,ou encaminhando a pessoa para saúde pública da época.
Confesso que o alívio da expressão "Não é nada",atingia não só ao paciente. mas a mim também kkkkkkkk....
Ali sim, tivemos contato com a prática do "Juramento de Hipócrates."
Túnel do tempo! Período riquíssimo! Muita gente formou-se ali.
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