segunda-feira, agosto 10, 2020

Sobre pilares

 

Este ano, com a pandemia, estamos tão atolados em assuntos médicos e científicos que, no dia dos pais, escrevi sobre a doença que foi distanciando meu pai de nós, pouco a pouco, embora ele estivesse lá, o tempo todo [1], e tenha-nos dado um pequeno alento, antes de partir, precocemente, para sempre – para o sempre. Sua “ausência” foi muito pior do que se estivéssemos tendo que cumprir a “distanciação social” a que a Covid-19 nos está obrigando.

Mas não estou impedida de lembrar-me dos bons tempos. Quando ele me ninava no colo, cantando:

Boi, boi, boi

Boi da cara preta

[Não] pega essa menina que tem medo de careta.

E, toda vez que o sono batia, lá ia eu atrás dele, segundo relato de minha mãe, com minhas mãozinhas ao alto, pedindo: - Boboi...

E, por falar em bicho, eu pensava que Totoche, nossa gatinha aqui no Canadá, fosse a minha primeira. Não é que me lembrei que tinha uma espécie de almofada roliça, onde meu pai desenhara uma carinha de gato, numa das extremidades. O rolinho tinha orelhinhas, as pontinhas onde o recheio não preenchia. Eu dormia sempre com aquele bichano 😸😊

Não tem preço reviver, na lembrança, o aconchego da coberta sendo ajeitada para nos proteger do frio, a sensação de segurança de saber que havia alguém que velava por nós. Meus pais deitavam-se tarde e, antes, verificavam se tudo estava bem com cada um de nós.

Ir à pé para casa, a família toda, tarde da noite, naquele friozinho gostoso de BH antigamente, bem agasalhados. Nenhuma viv’alma nas ruas, além de nós, perigo zero. O caçula, sono solto, no colo de minha mãe e eu pedindo colo ao meu pai... – Você já está grande! – reclamava meu irmão mais velho que eu. Mas ele me carregava assim mesmo.

Descer correndo a Rua Dante, desabalados, o caçula e eu, para encontrar com meu pai, voltando do serviço; após descer do lotação São Lucas, ele caminhava dois quarteirões. – Esperem seu pai chegar mais perto... pronto, agora podem ir. – dizia minha mãe, no controle da situação.

Perguntar, perguntar... e nosso pai “google” responder, responder. Brincadeiras com palavras, com números, explicações e conversas que não podiam parar. Até para ir ao banheiro, meu pai tinha que mandar meu irmãozinho e eu contar até não sei quanto, para nos entreter, enquanto esperávamos que ele saísse.

Ser acordado por ele, para a aventura de ver cometa, à tênue claridade do alvorecer, ainda esfregando os olhos, com muito sono – não me lembro qual era o cometa. Peguei esse gosto, tenho até hoje.

Ser levado à escola, de mãos dadas, ou melhor, a mão forte do pai segurando a gente pelo pulso, para não ter perigo de a mãozinha escorregar e escapulir. E houvesse fôlego para conseguir acompanhar as passadas dele.

Ficar vendo-o desenhar, ora planos para uma nova casa, ora garatujas, como ele dizia. A que ele gostava mais de fazer era do lindo perfil de minha mãe; fez incontáveis, lamento não termos guardado nenhuma. E aí, pedíamos para ele desenhar fulano, beltrano, sicrano... Ele tinha o dom de reproduzir os traços mais marcantes das pessoas.

Ir às compras na mercearia, com ele. Fui muitas vezes, mas quem o acompanhava com mais frequência era o caçula que, em tarefa do jardim de infância, chegou até a desenhar-se de mãos dadas com o pai, carregando uma sacola. Minha mãe guardou esse desenho por algum tempo, não sei se ainda existe.

São tantas boas lembranças... Não dá para compilar tudo aqui, mesmo porque não conheço as lembranças dos outros irmãos, outras tantas, certamente.

Quando meu pai percebeu que estava perdendo a memória, incumbiu minha irmã, Leonídia [2], de várias responsabilidades. Ele tinha total confiança nela, na sua capacidade, na sua presença firme e constante. Ela foi assumindo, gradativamente, juntamente com minha mãe, o papel de pilar da família. Meus irmãos e eu também ajudamos, cada um a seu jeito, mas Leonídia foi uma substituta do nosso pai, isso é inegável.

Quis esta vida que ambos, meu pai e minha irmã, partissem precocemente. Mas, graças a Deus, com os ensinamentos que recebemos e por tudo aquilo que passamos ainda jovens, aprendemos muito e tivemos tempo para aprumar sobre nossos próprios pilares.

~~~~~~

Links relacionados:

[1] Lucidez terminal - uma luz no fim do túnel?

[2] A estrelinha

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário