Revista Semana Illustrada, março/1928 |
“Quem não gosta do samba, bom sujeito não é/Ou é ruim da cabeça ou
doente do pé.”
(Samba da minha terra – Dorival Caymmi)
Gosto de samba, sempre
gostei, mas samba no pé mesmo, no meu tempo de criança, não estava ainda muito
difundido na minha cidade natal, Belo Horizonte.
- Não nascemos com o samba, ao contrário de Dorival Caymmi, como ele
conta em sua linda canção “Samba da minha terra” – na minha opinião, um dos melhores compositores do Brasil.
Na minha infância, eu considerava
o samba como coisa da Bahia e do Rio de Janeiro, assim como frevo é de
Pernambuco, baião, forró, xaxado e tantos outros do Nordeste, bossa nova do
Rio, e por aí vai. Essa minha impressão era consolidada nos programas de
televisão, à época predominantemente cariocas, pela insistência com que se
debochava de mineiros e paulistas que não sabiam sambar. Era verdade com
relação a nós, mineiros – com raras exceções.
- Não sou estudiosa do assunto, mas arrisco a dizer que, em tempos
antigos, a música mineira era de influência portuguesa, mais sacra, de igreja;
havia também modinhas, serestas e canções sertanejas. A manifestação
artístico-religiosa afro-brasileira de que se tinha notícia na nossa região era
o Congado. Mais tarde, na década de 1970, se não me engano, começamos a ouvir
batuques no Morro do Pau Comeu, perto lá de casa, de escolas de samba ensaiando
para o Carnaval (História do Carnaval de BH).
“Batuque” porque o ritmo não
era exatamente o mesmo das escolas de samba do Rio; havia uma pequena diferença
também no modo de sambar. Longe de ser especialista em samba, notava, no
entanto, que não era a mesma coisa. Imagino que deve haver variantes. Não sei,
hoje, como está.
- Mas não é que não houvesse compositores de samba de destaque nacional
originários de Minas. Só para dar um exemplo dos mais antigos que me lembro, já
vou logo arrasando 😀 com Ary Barroso, que caiu
no samba, no Rio de Janeiro. Ele mesmo, sim, autor da Aquarela do Brasil!
Foi a Ditadura de Getúlio
Vargas que fez campanha para que o samba carioca passasse a ser o ritmo, a
música nacional (Brasil brasileiro nasce com Vargas). Nasci depois da era Vargas, mas ainda antes de a
campanha ter surtido efeito nas Alterosas; a onda acabou chegando... e eu
acabei aprendendo a sambar, já bem grandinha.
- Lembrei de samba porque estamos na temporada de Carnaval no Brasil – temporada, sim, pois já
não são mais só três dias, como nos meus tempos de infância. Em BH, havia
desfiles de blocos caricatos, mas eu nunca assisti a nenhum. Penso que era mais
uma disputa de bairros e predominavam torcidas na assistência. A gente via
lances da festa pelo noticiário da TV e as fotos que saíam no jornal depois,
dando notícia de quem ganhara o concurso.
Eu achava divertido sair
fantasiada na rua, ir a clubes para pular, literalmente, ao som de marchinhas
de carnaval. Fiz isso poucas vezes, devo confessar; não era muito carnavalesca.
Havia, também, concursos de fantasias infantis, em BH.
- As marchinhas que dominavam o ambiente musical do carnaval de outras épocas chegaram até meu tempo. Eu sabia a letra de quase todas de cor.
Os famosos corsos dos tempos
de juventude dos meus pais não existiam mais. Eles diziam que eram muito
animados. Deviam ser mesmo, renderam notícias nas revistas da época (Saiu na Revista Semana Illustrada de março/1928) e até uma crônica do Carlos
Drummond de Andrade*.
- Desde lá pelos meus vinte
anos, até me mudar para o Canadá, já quarentona, o retrato que tenho na
memória, dos carnavais de Belo Horizonte, é de uma cidade deserta, silenciosa –
o êxodo para o litoral durante o feriado prolongado era a programação preferida,
a cidade se esvaziava. Fico surpresa quando vejo as notícias dos carnavais de rua repletos de
gente, atualmente!
Em outros tempos, atravessei
noites assistindo aos desfiles das Escolas de Samba do Rio, pela TV... e os famosos
desfiles de fantasia também! Não tenho mais paciência.
- Tenho visto, pelas notícias na Internet, que muita polêmica tem surgido
com relação às fantasias, que estão limitadas ao rigor do “politicamente
correto” e da questão da “apropriação cultural”. Até mesmo o samba vem sendo
motivo de reclamação, por parte do movimento da negritude, como tendo sido
apropriado pela sociedade dominante (Apropriação cultural é um problema do sistema, Apropriação cultural: poutine e samba).
Mas nada ofusca o brilho do
Carnaval no Brasil, principalmente no Rio. Pelo menos, é uma oportunidade de cumprir
a função tradicional europeia da festa, de manifestar críticas e sátiras, pacificamente,
com alegria. Isso é um ponto positivo, embora não ponha minha mão no fogo para
atestar lisura em todas as instâncias desses eventos. É muito dinheiro, são muitos
empregos e muitos turistas envolvidos na festança. Não sei exatamente como isso
tudo funciona.
- Para todos que curtem honestamente a festa, desejo um bom e saudável
Carnaval!
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
*Texto do Drummond sobre o carnaval
de BH, em 1927:
CARNAVAL E MOÇAS
(Carlos Drummond de Andrade)
Minas Gerais está mudando? As moças
vão para o corso fantasiadas de Malandrinhas. Não cantam “A malandragem eu não
posso deixar” nem “Eu quero é nota”, mas do alto dos carros de capota arriada, sorrindo,
atirando serpentinas nos outros carros, entoam desenvoltas “Levanta o pé, esconde
a mão, quero saber se tu gostas de mim ou não”. Os pais deixaram. Aí vem o
Bloco Papai Deixou: as Tamm de Lima, as Franzen de Lima, as Tamm Bias Fortes,
as Tamm Loreto, irmãs, primas, cunhadas, a família mineira descobrindo e
revelando uma alegria carioca, a alegria do carnaval. Moulin Rouge? Assim
também não. Mas pode ser Moulin Bleu com Maria Rosa Pena, Célia de Carvalho, Iolanda
Vieira, Iolanda Bandeira, outras que vão desfilando, vão cantando ou, se não
cantam, cantam os seus braços. Cuidado! capitalistas de Belo Horizonte, a Mão
Negra está chegando e ameaçando. Maria Geralda Sales, Irene e Pequetita Giffoni
fazem tremer o mineiro, que tem sempre um dinheirinho guardado nas dobras do
silêncio e um pecado, talvez, de todos ignorado. Felizmente nos salvam os Três ou
as Três Mosqueteiras, galhardas e galantes. Lúcia Machado é Porthos, Maria
Helena Caldeira é Athos, e Aramis, Maria Helena Pena. Cadê o D’Artagnan? Elas
respondem: “Foi ferido no último duelo, mas nós três damos conta do recado”. Neste
bloco maior vejo as Boêmias, Ilka e Luizinha Andrada, Lurdes Rocha, Hilda
Borges da Costa, Heloísa Sales, e Tinice e Clarita e Cidinha e quem mais. Nomeá-las
todas não posso: são dois carros e é preciso olhar, passando na Avenida, as
Sevilhanas, as Aviadoras, os Fantasmas da Ópera, as Caçadoras de Corações, as
Senhoritas Barba-Azul, copiadas de Bebé Daniels, as Funcionárias (da Secretaria
das Finanças), e na calçada os Netos de Gambrinus fantasiados de Barril de
Chope. Meu Deus, de cada rua no bloco irrompe, e é tudo animação. Bailarinas do
Xeque, sem o Xeque, nem eu queria vê-lo: elas sozinhas cercam de Oriente minha sertanice. De cada município agora sinto afluir foliões
em sarabanda. Minas perdeu o sério. Minas pula, revoluteia, grita, esquece a
história comedida, o severo “vou pensar”. Minas não pensa mais, Minas se agita ao som do
jazz, ao som do bumbo, zum-zum-zum. Vejo tudo isto ou estou sonhando à mesa do
Trianon, junto de Emílio, poeta amigo, e Almeida, sorvendo uma frappée, lenço
molhado de Rodo, pasárgada dos tímidos? Ao clube não irei, nem aspirante de
sócio me tornei. Na minha face gravado foi por lei hereditária: “Este não
dança”. Sei apenas ver, e o que vejo na Rua da Bahia é chuva chuva chuva sem
parar, é chuva e guarda-chuva, luva-dilúvio a envolver os dedos da cidade. Na
cara dos garçons, nas fustigadas árvores, no desolado cão fuginte, na deserta
calçada noturnal, esta leitura faço, da sentença: “Por aqui, a Quaresma no
sábado de carnaval é que começa”.
... do Livro Boitempo - Esquecer
para Lembrar
~~~~
Links relacionados :
Nenhum comentário:
Postar um comentário