quarta-feira, março 28, 2018

Apropriação cultural: “Poutine” e samba


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Há temas recorrentes no mundo, hoje em dia, mistura de posturas ideológicas com preocupações éticas ligadas a grupos populacionais minoritários ou discriminados. Debates muitas vezes acalorados se multiplicam em praticamente todos os países e atiçam antigas brasas latentes, que estão a incendiar os corações de muitos.
Um desses temas é a polêmica “apropriação cultural”. Segundo os entendidos, apropriação cultural existe quando um grupo majoritário ou dominante usa como seu um elemento cultural de um grupo minoritário marginalizado ou menosprezado, em detrimento deste último. Conheço dois exemplos clássicos deste processo: um do Canadá, outro do Brasil.
A « poutine » parece representar muito bem esse fenômeno. Trata-se de um prato de origem popular que surgiu no final dos anos 1950, na província de Québec. Durante longo tempo, de acordo com o quebequense Nicolas Fabien Ouellet, o prato foi ridicularizado pelo resto do Canadá e era um dos recursos usados para humilhar, menosprezar e reduzir sua capacidade de agir enquanto sociedade. Recentemente, o consumo de “poutine” aumentou fora da província e o prato começou a ser identificado como comida típica nacional do Canadá. Os nativos do Québec até gostam que a “poutine” seja apreciada fora de suas fronteiras, mas não veem com bons olhos que seja “apropriada”, enxergando nessa atitude um novo processo de assimilação, de apagamento de sua cultura (link em francês): https://quebec.huffingtonpost.ca/nicolas-fabien-ouellet/appropriation-culturelle-poutine_b_16969436.html?utm_hp_ref=qc-appropriation-culturelle
Outro exemplo de apropriação cultural são as diversas contribuições africanas incorporadas à cultura do Brasil. Ao testemunhar, presencialmente, a percepção daquilo que o povo “québécois” entende como perda do que caracteriza sua sociedade, enquanto nação dentro de outra nação – com idioma diferente, outra culinária, costumes e religião também diferentes – pude compreender melhor, guardadas as devidas proporções, aquilo que questionam os negros brasileiros, em seu movimento de reconhecimento e retomada da identidade negra e sua inserção na sociedade.
O comovente depoimento da escritora Ana Maria Gonçalves explica muito bem essa questão da apropriação cultural, no caso dos negros do Brasil – https://theintercept.com/2017/02/15/na-polemica-sobre-turbantes-e-a-branquitude-que-nao-quer-assumir-seu-racismo/. Nesse texto, ela enumera vários elementos da cultura africana que foram apropriados pela sociedade brasileira e compara com outros originários de povos estrangeiros não dominados, digamos assim, para os quais damos o devido crédito – pizza é comida italiana, acarajé é comida brasileira.
Um exemplo importante desse fenômeno, também citado, é o próprio samba, que chamamos de música/ritmo brasileiríssimo. O movimento da negritude, no entanto, considera que houve apropriação cultural. Penso que tem razão, vamos “dar a César o que é de César”. Basta fazer uma rápida pesquisa na internet, em vídeos sobre danças e ritmos na África, e achamos vários exemplos quase idênticos ao nosso samba, com pouquíssima diferença.
Tal como a “poutine québécoise”, o samba (e outros ritmos e danças africanos) era menosprezado, antes de ser promovido a símbolo de identidade nacional. Para os mais antigos – gente nascida nos anos 1800, que conheci... ! – não passava de batuque. O ritmo e a dança eram mal vistos pela sociedade conservadora tanto do Rio de Janeiro como do resto do Brasil. Atesta isso a reação de espanto que se seguiu à apresentação do maxixe de Chiquinha Gonzaga no Palácio do Catete, no início do século XX (tema bem lembrado no texto de Tatiana Rezende: https://cronicasdakbr.kbrinternational.org/2018/03/26/sem-memoria-sem-historia/). Em discurso indignado, Ruy Barbosa equipara vários estilos de ritmo e dança, entre eles o samba, com adjetivos nada elogiosos.
A história do samba nos revela que a sua consolidação como música nacional aconteceu no Rio de Janeiro, então capital do país, em consequência de campanha sistemática feita pelo governo do Presidente Getúlio Vargas. A adesão de eruditos, de brilhantes músicos e cantores contribuiu enormemente para projetar o samba no âmbito nacional e internacional.
Como brasileira já de longa data, posso também contribuir com dados históricos, apesar de ter nascido após a era Getúlio Vargas. Lembro-me muito bem do tempo de minha infância e adolescência, em que o Rio exercia grande influência em todo o Brasil – e ainda exerce, convenhamos, em todas as escalas. Naquela época, era muito comum ouvir, em programas de televisão, cariocas zombando de outros brasileiros que não sabiam dançar samba, transformando isso quase numa vergonha nacional. A campanha funcionou.
Enfim, compreendo a mágoa dos afro-brasileiros que não sentem o reconhecimento à altura das enormes contribuições que deram ao país. No caso da música, contudo, há que se lembrar que, não só compositores negros, também muitíssimos de origem portuguesa e de outros povos que participaram na construção do Brasil, compuseram lindas melodias e letras belíssimas, verdadeiros poemas musicais que embelezaram e valorizaram o samba.
Já no caso da “poutine”, não tem como melhorá-la. Todas as tentativas já realizadas nesse sentido só fizeram descaracterizá-la. A original é a melhor! Deliciosa!

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Links relacionados:

Outra referência interessante que menciona o samba: http://azmina.com.br/2016/04/apropriacao-cultural-e-um-problema-do-sistema-nao-de-individuos/

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