quinta-feira, março 01, 2018

Velhos tempos

© Maria do Carmo Vieira-Montfils

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Já faz tanto tempo que vivo no Québec e que venho sendo assimilada pela sua cultura, que já posso usar o seu lema, “Je me souviens”, embora a intensidade das minhas lembranças daqui não seja tão grande nem tão complexa como a dos “Québécois de souche”, obviamente... não nasci aqui, nem meus ancestrais. Mas a gente acaba se colando à casca da árvore e ficando parecida com ela.
No final de fevereiro e início de março, a nostalgia da “temporada dos açúcares” vem murmurar palavras doces nos meus ouvidos e meu coração não é surdo. Passeando pelo interior do país, em estradas rurais – nos arredores de onde moramos, na roça – eu me lembro das cabanas de açúcar rústicas, raras nos dias de hoje.
Gosto quando o “Temps des Sucres” chega, pois é sinal de que o longo inverno está acabando... É prenúncio da primavera! A obviedade do fato de sermos parte integrante da Terra é mais evidente nessas altas latitudes. A gente entra no ritmo da natureza. O burburinho começa nas florestas de ácer (maple/érable), as cabanas de açúcar literalmente a todo vapor. As raízes das árvores se espreguiçam depois de um longo sono e a seiva começa a subir: sangue novo que circula.
Todo ano se repete o ritual de fazer o “sirop d’érable” (maple syrup). É uma tradição herdada dos ameríndios e muito apreciada por aqui. Embora haja uma produção enorme usando modernos sistemas industrializados, existem ainda algumas poucas cabanas de açúcar que utilizam o antigo método: faz-se um orifício no tronco da árvore e coloca-se o balde para coletar a seiva. Em seguida, esta “água” é fervida em grandes recipientes, dentro da cabana. Por evaporação, a seiva é concentrada para se transformar no “syrup” 100% natural.
Há todo um vocabulário típico de cabana, relacionado às etapas da produção e aos produtos – além do sirop, podem ser feitas várias guloseimas doces.
Naqueles velhos tempos, nos fins de semana, famílias e amigos costumavam se reunir na floresta para se regalarem com pratos típicos, para tocar acordeon e cantar canções folclóricas, ou simplesmente para se divertirem, enquanto ajudavam nos trabalhos. Tanta gente que já se foi...
Andar na floresta no inverno não é tão fácil como parece, principalmente para uma citadina como eu que, além do mais, vem de um país tropical. As roupas e as botas de inverno representam uma considerável sobrecarga, quando se trata de sair coletando essa água toda para levar para a cabana. Quando ainda resta muita neve no solo, a gente não sabe se o pé vai afundar ou não, se vai pisar em algum galho quebrado ou numa rocha e se desequilibrar. Não tendo esse costume, pode-se imaginar a lentidão com a qual eu me locomovia na floresta e os risos que provocava, a começar pelos do meu marido. Resultado: preferia ficar na cabana para lavar a louça. Lá fora, só mesmo para bater fotos e respirar o ar puro.
A cabana de açúcar faz pensar em um lugar de druida, como se estivéssemos num mundo mágico, a nos deliciarmos com uma poção que está sendo preparada. Uma nuvem doce nos envolve, o cheiro é doce, um gosto açucarado nos invade o paladar. O vapor açucarado se condensa no teto e cai em gotas sobre nossos corpos... a família e os amigos juntos para acolher a primavera com doçura. Naqueles tempos, quando eu costumava ir a uma daquelas antigas cabanas de açúcar – a do meu sogro –, o “foguista” (bouilleur) oficial era meu marido. Éramos os primeiros a chegar, cedinho, e os últimos a ir embora, ao pôr do sol – não havia eletricidade.
Nessas cabanas rústicas, é o foguista que põe lenha na fornalha e também calibra a “poção” ao ponto certo... E a cabana de açúcar se torna acolhedora, enquanto a água se transforma em "sirop". É ele que opera este milagre, o foguista. Aí, os milagres não acabam mais... o sirop se transforma em caramelo, em creme, em bombom... toda a doçura do mundo na cabana. Aí... aí tudo vira primavera!
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Minhas fotos:
http://pt.trekearth.com/themes.php?thid=12123

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