© Maria do Carmo Vieira-Montfils |
(Os nomes próprios usados
neste texto são fictícios, para proteger a privacidade das pessoas)
Aurora, nossa querida e
saudosa Aurora, trabalhou durante longos anos lá em casa, desde antes do meu
nascimento. Ela nos considerava, meus irmãos e eu, como seus netos brancos – de
suas próprias palavras. Perfeitamente compreensível, ao contrário do que dizem
muitos jovens hoje, que não tiveram essa experiência, tal como foi no passado,
com gente do passado. Como é que se pode carregar um bebê que abraça o pescoço,
troca afagos, dorme no colo, cresce nesse contato que só família tem, e depois dizer
que não é família, porque são de classes sociais diferentes? Mesma coisa pelo
ponto de vista da criança – minha posição neste caso. Alguém que nos carrega,
que troca afagos, nos embala no colo, nos acompanha em nosso crescimento, como
pode deixar de ser alguém da família?
Aurora e uma de suas filhas,
Aureliana, moravam perto de nossa casa, depois se mudaram para um bairro mais
afastado, mas permaneceram em Belo Horizonte, enquanto Matilde, sua outra
filha, foi para São Paulo, por causa do trabalho do marido. Mesmo depois de
aposentada e apesar de morar muito longe, Aurora nos visitava sempre que podia.
Também íamos à sua casa, eram momentos cheios de ternura. Era uma amizade
verdadeira, com afeto, ajuda mútua e saudades. Quando os netinhos de Aurora
estavam de férias, iam para BH, e nos visitavam, invariavelmente, levados por
ela e Matilde. Eles enchiam o ambiente de alegria, cheios de vida.
Mais tarde, jovem médica,
pelos meados da década de 1980, fui estagiar num hospital de São Paulo, capital,
para aprimorar meus conhecimentos e experiência numa área específica, de
interesse para a equipe na qual trabalhava. Durante esse período, fiquei
morando no alojamento para estagiários e médicos residentes, contíguo ao
hospital. Assim ficou bem mais fácil, pois nunca tinha ido à megalópole antes,
nem para passear.
Depois de algum tempo
confinada na área hospitalar, resolvi arriscar-me a sair da “redoma” e
enfrentar as ruas e avenidas da grande cidade, num domingo de folga. Decidi
visitar a família de Matilde, que há muito tempo não via. Eles moravam em uma
cidade satélite da Grande São Paulo.
Após analisar mapas da
região e do metrô, bem como livretos turísticos, concluí que seria melhor
telefonar para a casa de Matilde (ainda não existia comercialização de
celulares, naquela época), para obter informações mais precisas, além de
anunciar minha visita. Muito surpresa e emocionada, ela queria ir me buscar no
hospital, mas com minha insistência, acabou me dando todos os detalhes de como
chegar ao bairro onde moravam – eu teria que pegar o metrô e depois um ou
dois ônibus, não me lembro mais –, ela e seu marido iriam me esperar no ponto
onde eu deveria descer.
Tenho medo de muita coisa,
mas fui destemida dessa vez. Segui as instruções rigorosamente e, apesar do
estresse, cheguei lá. Quando os vi no passeio, no ponto indicado, desci do
ônibus esbaforida, e foi abraço que não acabava mais. Os olhinhos dela
brilhavam atrás dos seus óculos, com laguinhos de lágrimas tímidas, fugidias, reveladas
pelas fungadas do nariz – as minhas também.
No trajeto até a sua casa,
Matilde me disse que era mais seguro que eu ficasse entre ela e seu marido, de
braço dado com os dois, para que os moradores do bairro vissem que eu era amiga
deles. Tomei um susto, não imaginava qual o motivo daquilo, nem ousei
perguntar, mas me senti protegida pelo casal. Olhei em volta e notei que eu era
a única pessoa de pele clara. Havia muitos rapazes na rua, olhando de soslaio para
nós. Eu me senti como uma personagem de algum filme americano, com cenário num
daqueles bairros de negros usando gorros. Eu estava vestida simplesmente, com
calça jeans – provavelmente não tão na moda como as deles – uma camiseta banal,
tênis... A razão do estranhamento não ficou muito clara, mas percebi que ali
estava se fechando um gueto.
Felizmente, não aconteceu
nada. Dois quarteirões adiante, chegamos à casa dos meus amigos, sem incidentes.
Passei o dia com eles, foi muito agradável, me senti em casa. Matilde insistiu
para que eu dormisse lá, mas eu tinha que trabalhar cedo na segunda-feira, não
podia ficar. Já era hora de voltar para o hospital. Quando fui me despedir de
Matilde, ela me disse que iria comigo, não me deixaria ir sozinha, já de
noitinha. Em vão, tentei dissuadi-la dessa ideia. Ela me dizia: - Sua mãe não gostaria que você fosse sozinha,
a esta hora, numa cidade desconhecida. E lá fomos nós, juntas, até o hospital... Esse dia passou
rápido, mas como marcou! Minha memória afetiva tem esse encontro em grande
conta.
Às vezes, quando vejo as
notícias do Brasil atual, penso que as relações humanas estão se deteriorando.
Mas talvez não... De qualquer forma, acho relevante registrar casos como esse
que vivenciei, tempos tão diferentes de hoje, mas que fazem parte da nossa
história. Amizades como esta aconteceram aos milhões pelo país afora. Não
podemos desprezá-las. Não podemos julgar mentalidades que estavam mergulhadas
numa fase de transição da sociedade. Certo é que tampouco podemos eternizar
essa transição, contribuindo para manter as desigualdades sociais. É preciso
mudar a estrutura e parece que há um embrião se desenvolvendo nesse sentido.
Vamos avançar para melhorar
as condições de vida de todos, honrando amizades sagradas que nos enobrecem e
fortalecendo nossos elos, para evoluirmos sempre unidos. Desejo, fervorosamente,
que a crise por que passa o país não seja em vão, que leve à correção dos
desvios de toda ordem e das injustiças sociais, com todas as suas nefastas
consequências.
Que venha um lindo arrebol de uma
nova aurora para o Brasil!
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