"Pietà" de Manuel Bronze Pastoral da Cultura Diocese do Porto - Portugal |
Passeando pela Internet em
busca de textos inspiradores para a Quaresma, deparei-me com um documento lindíssimo
da Diocese do Porto, em Portugal. Embora não tenha sido elaborado para o tempo
da Quaresma, creio que vem a calhar, com os temas Morte e Esperança Cristã. Não
se fala aqui em contextos limitados geograficamente, embora estes também sejam
necessários. As reflexões deste documento são algo mais elevadas, são
atemporais, se é que podemos fazer incursões nesses circuitos.
O link para o documento
completo aqui está, vale a pena ler tudo:
Transcrevo, abaixo, um excerto que
nos remete a uma reflexão profunda (não é de minha autoria, é um excerto do
documento citado acima):
“Esperança cristã (excerto)
Estranhamente, a luz ténue da
esperança cristã apresenta duas facetas paradoxais, em relação à morte. Por um
lado, surge como salvação da morte e, nesse sentido, como condenação da morte,
enquanto o que de pior pode acontecer aos humanos – e que é experimentado,
sobretudo, na morte do outro que amamos; por outro lado, o caminho da esperança
cristã só é possível através da morte, isto é, depois de dita a penúltima palavra
sobre nós, pois é essa palavra que coloca um ponto final na nossa vida terrena
e, desse modo, torna essa vida completa – mesmo que, na nossa perspetiva,
pareça estar sempre incompleta. Ou seja, cada um de nós só será ele mesmo, sem
mais possibilidade de alterar a sua identidade, quando morrer, por mais breve
que seja o seu tempo de vida. Assim, a morte é inevitável, não apenas de facto
– todos sabemos que morreremos – mas, em certo sentido, de direito – somos
seres biologicamente finitos e, para o «encerramento» do nosso processo de
construção da identidade pessoal, temos que morrer.
Isso não significa, contudo, que
tudo termine com a morte biológica. Com ela termina, é certo, algo muito
importante, essencial; termina a vida em liberdade, que nos permite escolher
ser o que seremos; e interrompe-se a relação com os outros, fundamento da
construção da nossa identidade. Mas não termina, por completo e para sempre, a
possibilidade dessa relação, como condição de vida. Abre-se, isso sim, uma
outra dimensão da vida, em que o que somos e a nossa relação aos outros atinge
um outro patamar de existência. É aí que se torna explícito – dentro dos
limites da nossa compreensão – aquilo que nos é dado esperar, enquanto
cristãos, para todos os humanos.
Na relação concreta com a morte, os
conteúdos da esperança cristã poderão definir-se, antes de mais, negativamente.
De facto, não esperamos que, na morte, apenas morra o nosso corpo biológico. A
ideia de separação entre corpo e alma, na perfeita continuidade da alma, é
apenas uma negação da morte. Com a morte, apenas morreria uma parte de nós, a
menos importante. Mas nós mesmos, enquanto alma, continuaríamos alheios à
morte. Em realidade, a morte não seria real, apenas aparente e apenas
problemática para quem estivesse demasiado apegado ao corpo.
Mas, sem morte, não há ressurreição.
Portanto, a esperança cristã não pode negar ou contornar a morte, enquanto tal.
Antes a assume na sua problematicidade e dramaticidade. Só não a acolhe como
trágico destino, sem saída nem solução. A «saída» oferecida, que é o núcleo da
nossa esperança, é precisamente a ressurreição.
Mas é necessário precisar o que se
entenderá por ressurreição. Mais uma vez, convém começar negativamente. Não é
ressurreição o regresso à vida, a revivificação, pois isso é, simplesmente,
regressar a uma dimensão novamente sujeita à morte – às numerosas mortes
quotidianas. Também não é reencarnação, pois acabaria por significar o mesmo,
no interminável ciclo das vidas mortais – que, além do mais, anulariam por completo
a possibilidade de uma identidade pessoal. A ressurreição é a transfiguração de
nós mesmos numa outra dimensão de nós, que é uma outra dimensão da vida. Essa
outra dimensão não podemos nós próprios realizá-la – apenas podemos
preparar-nos para a acolher ou para a recusar. Porque essa outra dimensão é a
dimensão de Deus, em que seremos nós mesmos, por pura dádiva gratuita do seu
amor. Aquilo a que a tradição cristã chamou céu não será senão essa dimensão de
Deus, em que a força do seu amor será tudo em nós – e nada mais. Mas será tudo,
em cada um de nós, considerado pessoalmente, como ser único e irrepetível, que
construiu a sua identidade enquanto ser corpóreo, de carne e osso. Por isso, a
ressurreição não é pensável sem referência ao corpo, que foi o lugar e a
possibilidade da nossa identificação. E a dádiva imensa de Deus será acolhida,
de acordo com a identidade de cada um, no respeito pela liberdade com que
construiu essa identidade.
Por isso é que esperamos, também,
que a vida na dimensão de Deus seja, ao mesmo tempo, uma vida plena, na relação
aos outros, que supera a interrupção dessa relação, introduzida na morte e que,
legitimamente, tanto nos faz sofrer. Na dimensão da vida de Deus, seremos dados
à vida – uma vida diferente da que conhecemos biologicamente – para darmos a
vida, tal como a demos, no nosso percurso terreno. Porque a dimensão do amor de
Deus é a dimensão da doação plena, da dádiva completa de si. Se aceitarmos
viver eternamente para os outros, teremos vida eterna, nesse dinamismo de
doação sem fim e sem limite. (...)
Sem entrar em pormenores
descritivos, porque seria impossível e mesmo insensato descrever essa dimensão
da vida, a não ser metaforicamente, poderemos dizer que o conteúdo da esperança
cristã ainda torna mais dolorosa a experiência da morte dos outros, sobretudo
do próximo que mais nos toca. Porque se o sentido da vida é a vida para o
outro, o maior absurdo está na interrupção dessa relação ao outro que nos
morre. Chorar, amargamente, quem nos morre, é um ato profundamente cristão. Só
não o será o desespero completo, perante essa morte. Porque seremos salvos pela
esperança. A perdição seria o desespero, simplesmente.
Mas, qual o fundamento dessa
esperança? Não se tratará de pura ilusão alienante? Que razoabilidade pode
possuir o que nos anima? Não será mera construção humana, para responder a um
desejo que não consegue satisfazer de outro modo?
É claro que não podemos demonstrar
pelas ciências naturais aquilo em que esperamos. É normal que assim seja, pois
a dimensão da vida que esperamos não se pode demonstrar por esses meios. Como
não podem, aliás, muitas dimensões importantes da nossa existência, entre as
quais sobressai o próprio amor, que torna a morte mais dramática ainda. Mas
essas dimensões podem, isso sim, ser acreditadas, constituindo essa fé a base
da nossa confiança e, por isso, da nossa esperança. É claro que não se trata de
uma fé cega, simplesmente para contornar a dolorosa questão da morte. De facto,
há motivos para crer, e esses constituem a razão da nossa esperança.
Fundamentalmente, a base da nossa
esperança é o próprio Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos e
primogénito na nova dimensão da vida, precisamente porque viveu dando a vida,
até à doação extrema da morte. Ou seja, a ressurreição de Jesus, núcleo da fé
cristã, é o fundamento da esperança de que seremos dados à vida, para além da
morte, numa outra dimensão da existência – a dimensão plena de Deus. Por isso,
verdadeiramente só pode partilhar a esperança cristã quem partilhar a fé cristã.
Uma é impensável sem a outra – assim como ambas são impensáveis sem a caridade,
pois é na doação da vida ao outro que se realizam a nossa fé e a nossa
esperança.
Aliás, Jesus Cristo não é apenas o
fundamento primordial da nossa esperança, mas também o revelador da verdadeira
relação entre os humanos e a morte. De facto, enquanto verdadeiro Filho do
Homem, Jesus assumiu completamente a condição mortal dos humanos, sem com isso
declarar a morte como algo bom. De facto, ela não deixou de ser o último inimigo,
que só a dádiva da «vida eterna» pode vencer. Mas essa vitória é tudo menos
triunfal. A vida de Jesus e o seu desfecho manifestam, claramente – embora
paradoxalmente – que o caminho da verdadeira vida é o caminho que passa pela
morte, sem lhe fugir de modo ilusório. Mas, ao mesmo tempo, essa passagem pela
morte não é uma passagem qualquer. Ela mesma é, em Jesus, uma dádiva livre e
gratuita da vida. E só essa dádiva possui força – que é a força de Deus – para
vencer verdadeiramente a morte. Porque uma vida dada livremente pelo outro, na
morte, faz com que essa morte não possa roubar-nos a vida, pois esta adquire
eternidade, na medida em que é dada. Assim sendo, a ressurreição de Jesus, que
constitui fundamento da nossa esperança, é uma ressurreição que coincide com um
determinado modo de morte – a morte como doação da vida pelo outro e ao outro
(e, neste, ao próprio Deus).
Mas, para além deste fundamento
crente da esperança cristã, poderíamos considerar o que significa, humanamente,
ser-nos permitido esperar que a morte não tenha a última palavra sobre nós. Tal
como tão bem têm formulado muitos escritores e pensadores nossos contemporâneos
– e mesmo nossos conterrâneos – a impossibilidade dessa esperança apenas nos
conduz ao absurdo, ao sem-sentido completo de todos os nossos desejos e
aspirações, assim como das nossas realizações. Nesse sentido, poderíamos dizer
que é mais humanizante esperar para além da morte do que desesperar com a
morte. E é essa esperança que nos dará coragem para acreditarmos no ser humano,
apesar de tudo – apesar da morte.”
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