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O médico: quem é? Quem é
essa pessoa que quer-se arvorar em alguém que cura?
Desde o início dos tempos,
todas as comunidades humanas – até mesmo as mais primitivas – sempre tinham
alguém que tratava os doentes, por vezes considerado uma espécie de mago ou
feiticeiro, com poderes sobrenaturais.
Os conceitos mudaram, mas
ainda existe hoje um remanescente dessa crença, porque consideramos que o
médico deve ter uma “vocação” e um talento especial para a prática de sua
profissão. Pelo menos, ele deve ser um estudante aplicado, uma vez que na
maioria dos países o acesso à Faculdade de Medicina é para aqueles com melhores
notas, ou para os que têm sucesso nos difíceis exames para entrar na universidade. E
é compreensível que seja assim, porque o médico é quem vai cuidar do bem mais
importante para nos manter vivos: a saúde.
Tomamos por certo que a
busca pela cura é uma ideia lógica. Mas se fizermos uma pausa para pensar um
pouco, se tentarmos libertar nossa mente de seu estado de condicionamento
habitual, vamos nos encontrar diante de uma atitude que representa uma
tentativa de contrariar a natureza perecível do nosso universo – o que
conhecemos dele. Na verdade, o médico é uma pessoa que trabalha sempre contra a
corrente: seu objetivo é reverter os processos naturais que nos fazem perecer.
Neste sentido, o médico
continua a ser alguém que tem uma vocação para o sobrenatural, não muito
distante do feiticeiro das tribos primitivas. Digo sobrenatural, obviamente, em
seu sentido estrito, isto é, além das leis da natureza (deste universo como o
conhecemos). Claro que, para tratar as pessoas doentes, o médico tem apenas as
ferramentas criadas neste mesmo universo e sujeitas às mesmas leis. Mas isso
não muda o fato de que é uma ação para combater nossa natureza sujeita à
deterioração. Parece paradoxal, e eu digo “parece” porque sabemos tão pouco
sobre nós mesmos que seria arrogante ter certezas.
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Vejo um conflito entre a
nossa pertença a este mundo defectível e nossa propensão a querer escapar dessa
situação. A busca da cura, os esforços para aumentar a expectativa de vida,
seriam eles um sinal, talvez, de que a finitude não nos serve, de que nossa
integridade não pertence a esse padrão oferecido por este universo perecível,
tal como o conhecemos?
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(Trecho de: VIEIRA-MONTFILS,
M.C. Nos
bastidores do Câncer. Petrópolis, Brasil: KBR, 2015 [1])
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