sábado, outubro 22, 2016

Não julgueis

Solidariedade



Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados;” (Lucas 6:37)

“Já repararam como ela anda com o nariz empinado?”, me contou uma das secretárias da clínica onde eu trabalhava, a frase que tinha disparado, contra mim, uma de minhas colegas. Isso já tem mais de 30 anos. Tem coisa que a gente não esquece. Se o verdadeiro perdão implica em esquecer a mágoa, como eu mesma escrevi no meu poema “Virtude”, que, por sinal, não tem nada a ver com esse caso, então tem muita coisa que não perdoei, pois ainda falta uma etapa.
Um assunto puxa outro, uma lembrança desencava outra. Foi assim que desenterrei esse entulho da minha memória. Quem sabe, o fato de escrever vai retirá-lo dos escombros e, assim, finalmente, vou esquecer.
Em uma conversa de rede social, alguém iniciou um tema sobre defeitos físicos que fizeram ou fazem crianças passarem por variados graus de intimidação, no convívio com outras. O famoso bullying existe não é de hoje. Entre os que se manifestaram, cada qual com sua história, para desabafar, ou para se solidarizar e amenizar o desgosto do outro, lá estava eu com uma de minhas imperfeições.
 Tenho uma ptose palpebral parcial no olho esquerdo. Isto quer dizer, grosso modo, que meu olho é mais fechado que o outro, o que ocasiona uma assimetria evidente. A pálpebra é preguiçosa, de modo que, além de o olho ficar menos aberto, ela não acompanha o movimento do globo ocular. Olhando para cima, a pálpebra esconde mais ainda o olho. Olhando para baixo, quase não se percebe.
Dito isso, dá para imaginar os gracejos que as crianças, cruelmente, faziam sobre o meu defeito, não é? Duas coisas me ajudaram a superar tudo isso, penso eu: uma porque eu era extremamente tímida (talvez em consequência do defeito, who knows?), outra porque, em casa, meus pais diziam que aquilo era um “it” e que eu era bonita – não menosprezem o poder que pode advir da palavra dos pais. Ninguém pode empoderar mais uma criança do que seus pais.
No que diz respeito à timidez, se ela pode ter sido consequência do complexo que me causava a ptose palpebral, foi também um fator que me ajudou a superar os ataques dos amiguinhos “da onça” na escola. Porque eu tinha vergonha de chorar na frente de estranhos, de parecer ofendida... então, eu sorria, amigavelmente, sempre, como se também estivesse achando engraçado. O meu sorriso era a minha arma. Imagino que, como minha atitude não tinha nenhuma conotação de revide ou afrontamento, a intimidação cessava imediatamente, por falta de feedback.
Também por causa deste olho “diferente” é que eu empinava o nariz (empino ainda, provavelmente, se não lembro de me policiar), ou seja, sem querer (querendo), eu levanto o rosto, para que a pálpebra não me atrapalhe de enxergar. E, ainda por cima, levanto a sobrancelha do lado afetado, na tentativa de puxar a pálpebra para cima, usando o músculo frontal como auxiliar. Foi meu oculista, no Brasil, que me chamou a atenção para isso, pois eu sequer percebia que usava este recurso.
Mas dá para compreender que alguém achasse que eu tinha ares de arrogância. Imaginem o quadro: cabeça para cima e sobrancelha levantada de um lado (sem exagero na imaginação, por favor... rs). É de dar antipatia, é ou não é? Essa é uma boa história para a gente sempre se lembrar de que as aparências podem enganar. E outra: temos que ensinar nossas crianças, e por que não os adultos, a respeitar as diferenças, sejam elas quais forem. E...  perdoar também! Senão, ficamos com a memória cheia de entulhos.
Virtude
Recolher as migalhas
De joelhos no chão
Perdoar silenciosamente
Não, se isso não vale nada
Recolher as migalhas
Silenciosamente
Perdoar de joelhos no chão
Esquecer completamente
Senão isso não vale nada
(VIEIRA-MONTFILS, M.C. Janela Virtual. Acton Vale, Canadá: COOLSEA, 2005)

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