Solidariedade |
“Não julgueis, e não sereis julgados; não
condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados;” (Lucas
6:37)
“Já repararam como ela anda
com o nariz empinado?”, me contou uma das secretárias da clínica onde eu
trabalhava, a frase que tinha disparado, contra mim, uma de minhas colegas.
Isso já tem mais de 30 anos. Tem coisa que a gente não esquece. Se o verdadeiro
perdão implica em esquecer a mágoa, como eu mesma escrevi no meu poema “Virtude”,
que, por sinal, não tem nada a ver com esse caso, então tem muita coisa que não
perdoei, pois ainda falta uma etapa.
Um assunto puxa outro, uma
lembrança desencava outra. Foi assim que desenterrei esse entulho da minha
memória. Quem sabe, o fato de escrever vai retirá-lo dos escombros e, assim,
finalmente, vou esquecer.
Em uma conversa de rede
social, alguém iniciou um tema sobre defeitos físicos que fizeram ou fazem
crianças passarem por variados graus de intimidação, no convívio com outras. O
famoso bullying existe não é de hoje. Entre os que se manifestaram, cada qual com
sua história, para desabafar, ou para se solidarizar e amenizar o desgosto do
outro, lá estava eu com uma de minhas
imperfeições.
Tenho uma ptose palpebral parcial no olho
esquerdo. Isto quer dizer, grosso modo,
que meu olho é mais fechado que o outro, o que ocasiona uma assimetria
evidente. A pálpebra é preguiçosa, de modo que, além de o olho ficar menos aberto,
ela não acompanha o movimento do globo ocular. Olhando para cima, a pálpebra
esconde mais ainda o olho. Olhando para baixo, quase não se percebe.
Dito isso, dá para imaginar os
gracejos que as crianças, cruelmente, faziam sobre o meu defeito, não é? Duas
coisas me ajudaram a superar tudo isso, penso eu: uma porque eu era
extremamente tímida (talvez em consequência do defeito, who knows?), outra porque, em casa, meus pais diziam que aquilo era
um “it” e que eu era bonita – não menosprezem o poder que pode advir da palavra
dos pais. Ninguém pode empoderar mais uma criança do que seus pais.
No que diz respeito à timidez,
se ela pode ter sido consequência do complexo que me causava a ptose palpebral,
foi também um fator que me ajudou a superar os ataques dos amiguinhos “da onça”
na escola. Porque eu tinha vergonha de chorar na frente de estranhos, de parecer
ofendida... então, eu sorria, amigavelmente, sempre, como se também estivesse
achando engraçado. O meu sorriso era a minha arma. Imagino que, como minha atitude não tinha nenhuma
conotação de revide ou afrontamento, a intimidação cessava imediatamente, por falta de feedback.
Também por causa deste olho “diferente”
é que eu empinava o nariz (empino ainda, provavelmente, se não lembro de me
policiar), ou seja, sem querer (querendo), eu levanto o rosto, para que a
pálpebra não me atrapalhe de enxergar. E, ainda por cima, levanto a sobrancelha
do lado afetado, na tentativa de puxar a pálpebra para cima, usando o músculo
frontal como auxiliar. Foi meu oculista, no Brasil, que me chamou a atenção
para isso, pois eu sequer percebia que usava este recurso.
Mas dá para compreender que
alguém achasse que eu tinha ares de arrogância. Imaginem o quadro: cabeça para
cima e sobrancelha levantada de um lado (sem exagero na imaginação, por favor... rs). É de dar antipatia, é ou não é? Essa é uma boa história para a gente sempre se lembrar de que as aparências podem enganar. E
outra: temos que ensinar nossas crianças, e por que não os adultos, a respeitar
as diferenças, sejam elas quais forem. E... perdoar também! Senão, ficamos com a memória
cheia de entulhos.
Virtude
Recolher as
migalhas
De joelhos no
chão
Perdoar
silenciosamente
Não, se isso não
vale nada
Recolher as
migalhas
Silenciosamente
Perdoar de
joelhos no chão
Esquecer
completamente
Senão isso não
vale nada
(VIEIRA-MONTFILS, M.C. Janela Virtual. Acton Vale, Canadá:
COOLSEA, 2005)
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