“Deixa o pião rodar”
Por mais tranquila que tenha
sido a morte de minha mãe – se é que podemos falar em tranquilidade quando se
trata de morte – por mais que saibamos que ela foi uma admirável longeva e que
não poderíamos querer que ela vivesse mais do que os seus 99 anos e uns
quebrados, tendo perdido qualidade de vida nos últimos anos; por mais que
tenhamos nos conformado com a sua partida, há um luto real a sofrer, dure o
tempo que durar. Há uma retrospectiva que a traz de volta, de tempos em tempos,
mesmo que seja apenas na cabeça da gente... até que o tempo passe e deixe só uma
cicatriz.
Já passei por vários tipos
de luto; o da minha mãe parece ser o mais natural que estou atravessando,
provavelmente pelo fato de ela ter vivido próximo do máximo que um ser humano
pode viver e, portanto, ter sido o desfecho iminente previsível. Além disso, já
tínhamos resolvido, ela e eu, todas as pendências afetivas entre nós. Obviamente,
sempre haverá lágrimas por cair, quando penso nos beijos e abraços que poderiam
ter sido mais frequentes e afetuosos, quando vem a vontade de dizer a ela,
incontáveis vezes, que a amo...
As mães sempre são especiais
para os filhos, dizer que a minha era especial é, no mínimo, coisa banal. Pois
digo assim mesmo, a minha era especialíssima! Muito apropriado que eu assim a
proclame, ela que era tão generosa em superlativos para com os outros. Entre
tantas qualidades, hoje estou-me lembrando de que ela era portadora de uma
capacidade de intuição extraordinária. Chegava a dar a impressão de que tinha aquilo que
chamamos de “sexto sentido” ou, às vezes, até telepatia. Parecia um dom
independente da sua vontade, ela não se esforçava, a coisa brotava como que do
nada.
Sua “intuição” se
manifestava no cotidiano e, às vezes, em sonhos. Sempre tentávamos interpretar
como alguma coisa natural, por exemplo, algum tipo de transmissão de pensamento.
A ciência ainda não conseguiu provar a existência desse fenômeno, tampouco
descartar que isso seja possível; quem sabe algum tipo de onda seja emitida
quando pensamos e possa ser transmitida a quem esteja na mesma sintonia e tenha
habilidade de captar? Sabemos muito pouco para ter certezas, nossa ciência não
passa de mera crença. Uma linda e promissora crença.
Por exemplo: um dia a
ciência creu que o átomo fosse uma partícula elementar e afirmou isso; era uma crença, pois hoje
sabemos que há outras partículas menores que o compõem, os
prótons, nêutrons e elétrons, e outras menores ainda, os piões (píons), múons e
neutrinos, formados por outras subpartículas. Tudo não passa de crença, a
partir do que nossa ínfima inteligência consegue deduzir e perceber. À medida
que evoluímos, novas ideias e novos elementos se descortinam. A metodologia é
magnífica: postula-se a existência de uma partícula antes de comprová-la. É uma
espécie de intuição que vai-se traduzindo em complexas equações.
Voltando à minha mãe... Desses
episódios “especiais”, um caso me deixou intrigada. Não foi como nos outros em
que ela aparentemente intuía. Na época, consideramos como um engano, talvez um
lapso de comunicação.
Tinha eu obtido êxito em
algum ponto do percurso normal da minha vida, uma etapa qualquer vencida, não
me lembro mais qual, comum na vida de qualquer pessoa; mas para minha mãe, cada
etapa que seus filhos venciam era motivo de muita alegria e agradecimento a
Deus, como graça concedida. Ela havia, então, mandado celebrar missa em ação de
graças.
Interessante é que, missa
mesmo, não sei se mandava celebrar para tudo. Desta fiquei ciente, pois no dia
da celebração, ela quis que fôssemos com ela, minha irmã e eu. Fazendo, agora,
uma retrospectiva, concluo que isso já foi algo intrigante, pois não me lembro
de que ela tenha insistido outras vezes para que fôssemos com ela a missas que
mandava celebrar. E olhe que tinha “conta” na secretaria da Igreja Boa Viagem,
em Belo Horizonte. Ela telefonava, marcava as missas e ia pessoalmente pagar a
conta mensal.
Pois bem, fomos. Como de
costume, o padre leu as intenções da missa em voz alta. Para nossa surpresa, o
meu nome foi anunciado como de uma pessoa falecida, para cuja alma rogávamos a
Deus perdão e salvação eterna. Ficamos perplexas, por alguns instantes. Em
seguida, nos entreolhamos como se nos perguntássemos se tínhamos entendido a
mesma coisa... Sem dizer nada, continuamos ali, até o final da missa; eu estava
em estado de choque.
Segurei o choro tanto quanto
pude, mas não consegui me conter ao chegar em casa. Minha mãe chorava também e
me pedia desculpas. Coitada, ela não tinha culpa. Havia sido um mal-entendido;
eram tantas missas em intenção de tantas almas na lista de minha mãe, que a
secretária pensou que fosse mais uma e ali acrescentou meu nome. E, afinal, o
que valia era a verdadeira intenção. Passou... aquele mal-estar se dissipou
rapidamente, quase virou anedota. Eu estava viva.
Mas aquilo me marcou, não me
esqueci. Mais tarde, anos depois, pensei se não teria sido um caso de intuição
da minha mãe, daqueles que nem ela se dava conta do que se tratava. Estaria eu
me distanciando da fé e ela, sem querer, me submeteu a um tratamento de choque?
Não sei.
Considerando a nossa fraca
ciência com jeito de crença, se o tempo é uma variável que nos ilude, e se existe
alguma conexão com um estado de vida atemporal, pode ser que a intenção daquela
missa tenha validade – eu creio que sim – para quando eu morrer nesta "ilusão" em
que vivemos.
Do jeito que o mundo ao meu
redor vai indo, ninguém mais acreditando em nada além do que somos capazes de
perceber por aqui, tenho minhas dúvidas de que sobreviverá alguém de meus
conhecimentos que se lembre de mandar celebrar missa em intenção de minha alma.
Sendo assim, minha mãe já garantiu alguns pontinhos para mim. Ela fez o papel
de um filho ou filha que não tive, que o faria. Mãe é mãe!
É sempre bom ler seus textos tão bem escritos!
ResponderExcluirBjs
Adoro escrever, é quase uma terapia :-)
ExcluirBjs
É sempre bom ler seus textos tão bem escritos!
ResponderExcluirBjs