A Redenção de Cam (Modesto Brocos 1895) Obra em domínio público |
Será que está havendo um
recrudescimento do racismo contra os negros no mundo? Tantos relatos de ofensas
por toda parte, agora os assassinatos nos Estados Unidos. E no Brasil?
Estatísticas mostram que mais negros, ou mestiços, são assassinados todos os
dias. Já fizeram uma estatística para saber a cor da pele dos que mais cometem
assassinatos no Brasil? Acho que o problema é mais complexo.
Estou com a impressão de que
não há esse pretendido racismo contra os negros no Brasil. Talvez, justamente
pelo fato de ser brasileira e saber que somos na grande maioria miscigenados, eu não queira admitir que somos racistas, sei lá.
Li alguns resultados de
pesquisas feitas sobre o assunto e, na maioria delas, chega-se à conclusão de
que o preconceito do brasileiro se manifesta mais diante de uma situação de
desigualdade socioeconômica do que pela cor da pele. Curiosamente, os autores
sempre acrescentam comentários na conclusão dos trabalhos, se recriminando por,
talvez, terem cometido algum erro de metodologia, alguma falha no tipo de
pergunta formulada às pessoas. Como se os autores não pudessem acreditar que
não possa haver racismo, como se quisessem que os resultados provassem que ele
existe.
Creio que falta nessas
análises, possivelmente, uma visão mais ampla. Só o fato de ter havido tanta
miscigenação já é um indício de que o termo certo não é racismo. Ainda no tempo
da escravidão, penso que podemos falar em abuso de poder, em arrogância e
autoritarismo, em estupros e outras crueldades, num cenário que se assemelha
mais ao comportamento humano típico do dominador que subjuga um povo dominado,
em situação de inferioridade de poder. Mas isso é racismo? Na história da humanidade,
houve brancos escravos de brancos. Mesmo na África, havia negros escravos de
outros negros.
Após a abolição da
escravatura no Brasil, uma multidão de negros foi posta em liberdade, sem emprego e sem
teto, sem nenhum programa governamental de ajuda. Muitos continuaram serviçais,
nas casas dos seus senhores, por falta de opção, outros tantos foram deixados ao
“Deus dará”. É por isso que, até hoje, há maior número de negros nas classes
mais pobres.
A população aumentou, ser
desvalido deixou de ser “privilégio” dos negros, e o interesse em criar
soluções para o problema da enorme e crescente desigualdade social jamais
existiu. Vemos isso ainda atualmente, os governos não movem uma palha para
melhorar a situação, os governantes e políticos limitam-se a inventar meios de
dar esmolas aos pobres e a fazer promessas vãs, quando o voto do povo lhes
interessa. Continua sendo, atualmente, uma relação de dominador e dominado. Não
houve muita evolução nesse ponto.
A índole dominadora no
Brasil é surpreendentemente forte, carregada de paternalismo e populismo que,
no fim das contas, perpetua o “establishment”. Vimos isso claramente nos
governos dos últimos treze anos, com um partido que se propunha socialista e voltado
ao interesse do trabalhador, mas que acabou usando métodos selvagens, ferozmente
indignos, para se manter no poder, roubando o que a nação angariou com o
trabalho de toda a população ativa, sem retornar nenhum serviço, e empobrecendo
esta população, para mantê-la sob seu jugo.
Acho que racismo é outra
coisa e vou explicar por que razão penso assim. Vivi durante 44 anos no Brasil
e, no momento em que escrevo este texto, tenho 17 anos vividos numa pequena
cidade do interior do Canadá, inserida em uma família tipicamente canadense,
mais especificamente, de origem francesa – “pure laine” – como se autodenominam
os quebequenses. Além do contato com a família do meu marido, tenho amizades e
conhecimentos no coração do país. Trabalhei durante anos em empregos onde tive
contato com o público em geral. Quero crer que, com isso, aprendi um bom bocado
sobre os pensamentos e costumes dessa população, e sobre o que eu chamaria de
verdadeiro racismo, depurado pela civilidade.
Aqui, não há favelas. Só com
isso já elimina-se a possibilidade de qualquer um viver em condições precárias,
sem saneamento básico. Isso não existe aqui. Rarissimamente, vemos um negro na
nossa região. Os negros são muito menos numerosos do que a população branca e a
população indígena do país. São bem mais recentes na história também e se
encontram concentrados em cidades grandes. Eles têm a mesma chance de estudar
que os outros. Pode ser que não tenham as mesmas chances no mercado de
trabalho, isso não posso dizer, teria que pesquisar sobre o tema. Mas não fazem
parte de nenhum grupo populacional cujo trabalho tenha sido ou seja explorado
mais do que outros.
Salta aos olhos o fato de que
praticamente não houve e não há miscigenação. Não há aproximação sequer em
nível de amizade. Parece não haver magnetismo algum... nem de um lado, nem do
outro. Com exceções, claro. Uma família de brancos pode ter a mesma posição
social de uma família de negros e eles não se integram, não fazem amálgama. Há,
no entanto, cordialidade e respeito mútuos, não há a animosidade que temos
visto recrudescer nos Estados Unidos. Eu diria que aqui existe um racismo
civilizado, se podemos dizer isso, na medida em que não prejudica o outro no
seu desenvolvimento. Se há um certo sentimento de concorrência, eu poderia
afirmar que não é direcionado especificamente aos negros, mas a todos os
imigrantes mais recentes, como se estivessem tirando empregos que poderiam ser
ocupados pela população local.
Abro parênteses: em grandes
cidades, como Montreal por exemplo, ocorre um fenômeno interessante nas
universidades: os estudantes de origem estrangeira, que são muito numerosos e
em elevado “turnover”, formam grupos de amigos mais facilmente, sejam de que
etnia forem. Parece que encontram uma cumplicidade no ponto em comum de serem
estrangeiros, para se ajudarem mutuamente na sobrevivência em terra estranha. Isso também parece ocorrer entre imigrantes, de
um modo geral. Então, ver grupos de jovens amigos de várias etnias em Montreal não é
representativo da índole do local. Fecho parênteses.
Isso tudo que se vê por esse
mundo afora é muito diferente do que tivemos na história do Brasil. No entanto,
tenho visto muitos relatos, nas redes sociais, de comportamentos racistas que
não existiam antigamente. Acho que esses comportamentos estão sendo importados.
É preciso muito cuidado para não se deixar contaminar. O problema no Brasil é
fundamentalmente de desigualdade socioeconômica, não se pode perder o foco e
deixar o convívio pacífico degringolar. Todos precisam lutar juntos, para
corrigir o erro onde ele realmente está. Já basta de tanto caos.
Entre tantas questões que
afligem o Brasil, não podemos também nos esquecer dos indígenas, considerados
praticamente extintos, mas que estão tão presentes no DNA de nossas mitocôndrias,
nos traços de nossos rostos, no bronzeado de nossas peles, atribuído, muitas
vezes, aos negros. Estão assimilados nas nossas misérias, nas nossas mazelas.
Hoje, ao vermos os índios em comunidades isoladas da nossa civilização, não os
identificamos como irmãos. Estes, sim, são os mais desvalidos da nossa
história. Como reparar este erro?
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