domingo, agosto 24, 2014

Sobre o discurso de Luiz Ruffato

(texto escrito na minha página Facebook em 14 de outubro de 2013)

Discurso de Luiz Ruffato: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,leia-a-integra-do-discurso-de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463,0.htm

Inegavelmente brilhante o discurso de Luiz Ruffato, em Frankfurt. Alguns pontos chamaram minha atenção mais vigorosamente e reacenderam dúvidas em meu espírito...

1. "estranha sensação de não-pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém..."
Muito bem dito, fez-me lembrar da expressão "filhos da ninguendade", de Darci Ribeiro. Além do fato de, historicamente, homens europeus, brancos, terem "usado" as mulheres indígenas e as escravas negras, como parte do processo de dominação e, assim, terem gerado uma população de "filhos da ninguendade", eu acrescentaria o fenômeno da miscigenação generalizada que ocorreu e que ocorre no Brasil, até hoje, entre praticamente todos os povos do planeta, que, a meu ver, perpetua a "sensação de não-pertencimento" - não necessariamente relacionada a processos de dominação. Considerado geneticamente favorável, por propiciar maior variação de combinações de gens e, assim, diluição de possíveis vícios de repetição (potencialização), este fenômeno parece ser inovador demais para o estado ainda quase tribal em que o ser humano se encontra, ainda muito apegado a etnias. Esta conclusão é muito pessoal minha; não é fruto de nenhum estudo estatístico, resulta simplesmente da observação, ao longo dos anos, longos no Brasil e já bem numerosos no Québec, "nações" multirraciais, ambas, a primeira com miscigenação em massa, a segunda praticamente sem nenhuma. Estranhamente, observo também no Québec, esta "sensação de não-pertencimento", tanto por parte dos quebequenses quanto por parte dos imigrantes - os quebequenses não escondem seu orgulho de serem "pure laine", ou seja, não miscigenados e se sentem invadidos pela presença do domínio inglês, pela presença de línguas, costumes e religiões de outros povos - quisera o quebequense "puro" ter um país só para ele. E os imigrantes, diante desta postura do quebequense, também têm a sensação de não-pertencimento, obviamente.
Isto vem corroborar, na minha opinião, a idéia de estado tribal do ser humano, ainda nos dias de hoje, dando valor ao território possuído por sua "raça" ou "tribo" - se não existe uma "tribo" específica com seu território, vem, em consequência, a sensação de não-pertencimento. Este estado "tribal" é do ser humano, não se limita a determinados países.
Uma dúvida: o pensamento democrático racial parece ter evoluído, mas o instinto não acompanhou a evolução e ainda prepondera?

2. "cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais – ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples."
Comparemos com:
"On estime qu’environ 16 % de la population québécoise souffre d’analphabétisme complet et que 33 % est analphabète mais fonctionnelle. Parmi ces personnes, 55 % sont francophones et 43 % anglophones." (http://www.ledevoir.com/societe/education/357999/des-milliards-perdus)
Não acredito que o Brasil tenha menor proporção de analfabetos que o Québec (menor proporção de completamente analfabetos ou funcionais). Penso que o estudo estatístico brasileiro não deve ter conseguido alcançar toda a população. Posso dizer, quase com certeza, que os números no Brasil são muito mais catastróficos. Digo isso porque tive contato com a população em geral, em minha profissão. Minha impressão é de que esta estatística brasileira é incorreta. Há muito mais analfabetos no Brasil do que os números citados.
E este problema é terrível. Muito bem analisado pelo discurso, vem de longa data, é histórico.
Já o "analfabetismo funcional" é algo mais complicado. Não depende somente do acesso à escola, pois há analfabetos funcionais que frequentaram os melhores colégios. Aqui também nos deparamos com um problema do ser humano, com o qual temos que conviver e para o qual devemos tentar buscar soluções "democráticas", que não dependam de leitura (sei que estou sendo um tanto drástica, mas temos que achar soluções a curto prazo). Aqui no Québec, um exemplo de solução para esse problema, no setor de informação pela internet, é o uso de vídeos. Há sites de jornalismo por aqui que usam somente vídeos; só os títulos aparecem por escrito (eu prefiro ler, então procuro os sites escritos... que se tornam cada vez mais raros :-( - deveria haver as 2 opções). Já que a tecnologia está evoluindo tão rapidamente, seria uma boa idéia usá-la para suprir deficiências.
Disse o Luiz Ruffato: "Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura." Eu também acredito, mas sei que há grande dose de ingenuidade no desejo de que a literatura seja transformadora... para o bem de todos. Porque é preciso que os que escrevem e que os que compreendem o que é escrito tenham a boa vontade de transformar... para o bem de todos.
Outra dúvida: será que o ser humano está preparado e suficientemente evoluído para se deleitar com o verdadeiro bem de todos?

Eu adoro escrever... mas vou parando por aqui, pois nem sei se isso poderia interessar a alguém...
Talvez, mais tarde, mais uma dose de ingenuidade venha me motivar...

Continuando, um pouco mais...

INTRIGANTE: por que as duas "nações" (Brasil e província do Quebec - embora província, foi considerada nação oficialmente), tendo pontos em comum, são tão diferentes? Se os problemas básicos são a deficiência na educação e a sensação de não-pertencimento, por que não há o mesmo nível de criminalidade e demais horrores citados no discurso? Fica a pergunta... não sei responder.
Será a população total muito mais numerosa no Brasil, um dos fatores?

Muito difícil resumir tudo em um discurso.

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