terça-feira, outubro 18, 2016

O médico

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O médico: quem é? Quem é essa pessoa que quer-se arvorar em alguém que cura?
Desde o início dos tempos, todas as comunidades humanas – até mesmo as mais primitivas – sempre tinham alguém que tratava os doentes, por vezes considerado uma espécie de mago ou feiticeiro, com poderes sobrenaturais.
Os conceitos mudaram, mas ainda existe hoje um remanescente dessa crença, porque consideramos que o médico deve ter uma “vocação” e um talento especial para a prática de sua profissão. Pelo menos, ele deve ser um estudante aplicado, uma vez que na maioria dos países o acesso à Faculdade de Medicina é para aqueles com melhores notas, ou para os que têm sucesso nos difíceis exames para entrar na universidade. E é compreensível que seja assim, porque o médico é quem vai cuidar do bem mais importante para nos manter vivos: a saúde.
Tomamos por certo que a busca pela cura é uma ideia lógica. Mas se fizermos uma pausa para pensar um pouco, se tentarmos libertar nossa mente de seu estado de condicionamento habitual, vamos nos encontrar diante de uma atitude que representa uma tentativa de contrariar a natureza perecível do nosso universo – o que conhecemos dele. Na verdade, o médico é uma pessoa que trabalha sempre contra a corrente: seu objetivo é reverter os processos naturais que nos fazem perecer.
Neste sentido, o médico continua a ser alguém que tem uma vocação para o sobrenatural, não muito distante do feiticeiro das tribos primitivas. Digo sobrenatural, obviamente, em seu sentido estrito, isto é, além das leis da natureza (deste universo como o conhecemos). Claro que, para tratar as pessoas doentes, o médico tem apenas as ferramentas criadas neste mesmo universo e sujeitas às mesmas leis. Mas isso não muda o fato de que é uma ação para combater nossa natureza sujeita à deterioração. Parece paradoxal, e eu digo “parece” porque sabemos tão pouco sobre nós mesmos que seria arrogante ter certezas.
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Vejo um conflito entre a nossa pertença a este mundo defectível e nossa propensão a querer escapar dessa situação. A busca da cura, os esforços para aumentar a expectativa de vida, seriam eles um sinal, talvez, de que a finitude não nos serve, de que nossa integridade não pertence a esse padrão oferecido por este universo perecível, tal como o conhecemos?
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(Trecho de: VIEIRA-MONTFILS, M.C. Nos bastidores do Câncer. Petrópolis, Brasil: KBR, 2015 [1])

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