segunda-feira, novembro 26, 2018

Internato Rural: as Panteras

Internato Rural, Medicina-UFMG - 1979

A foto que ilustra este texto é de 1979, quando viajamos para o Internato Rural, pela Faculdade de Medicina da UFMG [1], minha colega, depois cunhada, e eu. A Medicina da UFMG foi pioneira no Brasil, nesse tipo de empreendimento, tendo iniciado o programa em 1978. 
         Naquela época, não havia "personal computer", muito menos dispositivos móveis, menos ainda internet para todos, que só foi se popularizar na década de 1990. O conhecimento ia na cabeça (ainda sem nenhum cabelo branco 😄) e no peso da mala. Levamos um bocado de livros para estudarmos no sertão. O Internato Rural era obrigatório, com duração de três meses, para conhecermos e atuarmos nas condições de localidades distantes dos grandes centros. Ao mesmo tempo, era um jeito de levar atendimento médico e atividades de saúde comunitária a esses lugares, onde a carência em atenção médica – e em tudo – era absurda.
Fomos para uma cidadezinha do norte de Minas. Eram dois estudantes que iam para cada localidade prevista no programa. Ficamos hospedadas numa casa particular, perto da pracinha central, onde se destacava a igreja, lindinha, mas “para inglês ver”. Não tinha padre. Periodicamente, ia um para realizar os batizados e casamentos, na fila de espera.
A dona da casa onde ficamos morando era viúva, tinha três filhos, duas meninas e um menino, crianças encantadoras que nos cobriam de abraços e beijos, quando voltávamos do trabalho no Posto de Saúde, de noitinha, e nos sentávamos para ver TV – Rede Globo, naturalmente; não me lembro bem, acho que era a única emissora com sinal na região.
Dormimos de luz acesa durante os três meses que passamos por lá, pois era região endêmica de Doença de Chagas, com alta incidência de “barbeiros” (o inseto vetor da doença só ataca no escuro).  A casa era velha, por mais que tenhamos tentado calafetar todas as frestas da janela, da porta e das paredes do quarto, com fitas adesivas, não nos sentíamos seguras. O teto era de forro antigo, também vulnerável.
O município era composto do vilarejo principal e algumas pequenas aglomerações no seu entorno, estas desprovidas até mesmo de eletricidade. O Posto de Saúde contava com o serviço de uma auxiliar de enfermagem. Na pequena farmácia do posto, dispúnhamos de alguns medicamentos sintomáticos, antiparasitários, penicilina (oral e injetável), material para sutura, tudo muito simples. Pelo menos, a Prefeitura possuía uma ambulância para levar casos mais graves para uma cidadezinha maior, a um pouco mais de 28 km de distância, onde havia um hospital – situação privilegiada em comparação a outros lugares.
A falta de infraestrutura nos rincões do Brasil é uma coisa lamentável. Não é de se admirar que médicos oriundos de cidades grandes não queiram se estabelecer definitivamente nessas localidades. Mas é uma boa experiência temporária e pode acelerar a melhoria das condições locais, com a presença de gente que sabe o que é necessário para melhorar o atendimento à saúde.
A experiência do contato humano foi ótima no nosso caso e soubemos que os outros estudantes também gostaram. Fomos tratadas com carinho e muito respeito. Sem faltar a parte cômica da história: na época, estava passando, na TV, aquele seriado americano (Charlie’s Angels) com três detetives chamadas, no Brasil, de “As Panteras”, com as atrizes Jaclyn Smith, Farrah Fawcett e Kate Jackson. Pois, para nossa surpresa, ficamos sabendo que éramos apelidadas pela população de “panteras”, mas não se dirigiam a nós dessa maneira, obviamente. Demos boas gargalhadas, levamos no bom sentido e ficamos até um pouco metidas... hahaha. O caso serve para não deixar dúvidas sobre o “alcance” da televisão... 
        Brincadeiras à parte, foi um aprendizado e tanto, uma experiência marcante. Mas, se me perguntassem se gostaria de me instalar naquele lugar como médica, teria dito um peremptório NÃO. Por que? Simplesmente, porque não se podia fazer grande coisa pela população, em termos médicos. O que nós fazíamos, a auxiliar de enfermagem já fazia. Qualquer procedimento minimamente mais elaborado era feito em uma cidade próxima, onde havia mais recursos. Na verdade, nossa passagem por lá foi mais proveitosa para nós do que para eles.
Que seja agora o tempo de melhorar as condições de lugares distantes dos grandes centros, então, para que os médicos queiram permanecer nessas regiões. Dinheiro não faltou para as falcatruas, nesses últimos anos. É urgente servir ao povo mais do que aos políticos e ao Estado. Por MAIS MÉDICOS, sim, mas também por MELHORES CONDIÇÕES!
        Para finalizar, preciso dar “a César o que é de César”, no Brasil há uma vantagem que aprecio muito. Há ônibus que passam em todos os cantos, mesmo os mais longínquos, pelo menos uma vez por dia. Se alguém precisa ir a uma consulta médica em outra cidade, tem como ir, mesmo se não tiver carro. Na cidade onde moro, no Canadá, não há nenhum transporte coletivo. Se eu quiser pegar um trem ou um ônibus para ir a algum lugar mais longe, tenho que ir com meu carro até uma cidade próxima e deixá-lo lá. Aqui também precisamos fazer reivindicações por melhorias.
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[1] https://site.medicina.ufmg.br/internatorural/sobre-o-internato/

Um comentário:

  1. Kkk vc lembrou coisas que eu já tinha esquecido! Mas, e o Baygon? Como diz a Mamãe, Deus anda nas roças. Escapamos dos barbeiros é de nós mesmas 🙏😆😆😆

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