segunda-feira, junho 11, 2018

Canadá da cabeça aos pés



Para mim que venho de outras plagas, o padrão sazonal do Canadá é algo que impressiona muito e sempre dá o que falar, apesar de viver aqui já há tantos anos. Mas esse chover no molhado, ou melhor, nevar no gelado, não é exclusividade minha, o assunto é também recorrente entre os nativos, pois tudo depende das condições climáticas. Há outras coisas menos óbvias que isso, sobre as quais não se comenta quase nada, mas que são hábitos corriqueiros, muito interessantes, às vezes intrigantes.
Um costume muito prático e higiênico que existe aqui é o de retirar os sapatos, ao entrar em casa. Dessa maneira, as sujeiras que vêm da rua não tomam intimidade com a gente. E no inverno, então, o hábito é imprescindível para que a neve nas botas não provoque uma inundação, quando se derreter à calorosa acolhida. A maioria das moradas tem um cestinho com pantufas de tricô para oferecer aos visitantes. Eu mesma tenho algumas tricotadas por mim.
É sempre bom lembrar que minha experiência de Canadá vem das pequenas cidades do interior do país, na província do Québec, onde ainda não houve invasão massiva do multiculturalismo. Ainda sou peça rara nesses rincões, enquanto cidadã canadense originária de outro país. Meus contatos por aqui, na minha região, são todos quebequenses da gema, a começar pelo meu marido. Pode ser que nas cidades grandes, já repletas de imigrantes, os costumes estejam mudando, por influências externas. Eu não saberia dizer nada sobre isso.
Você já prestou atenção no gesto de cumprimentar dando beijinhos nas bochechas? Já reparou a que lado do rosto da outra pessoa você se dirige primeiro para beijar? Ninguém combina como fazer e a gente vai direitinho do lado certo, não é? Não, não é sempre assim quando estamos num outro país. Aí no Brasil, nós beijamos primeiramente a bochecha direita do outro, observe. Aqui no Québec, é o lado esquerdo do rosto o primeiro visado. Isso já me causou muitas hesitações, daquele mesmo tipo quando cruzamos com alguém no caminho e fazemos aquela dancinha involuntária, tentando não trombar um com o outro. O meu problema, agora, mudou de lado. É quando visito o Brasil que faço e levo as pessoas a fazerem a dança das cabeças. Quando começo a me habituar de novo com o gesto brasileiro, já está na hora de voltar para o Canadá e me confundir toda novamente.
Mas as diferenças não se resumem a beijinhos e pantufas, há incontáveis outras. Já que o Canadá costuma ser tão citado pelos brasileiros como bom exemplo e já que se tem falado muito da reforma trabalhista no Brasil, vamos ver como se descansa por aqui... Allez ! Au boulot ! Minha primeira experiência de trabalho no país veio com mais uma novidade: o cálculo das férias dos trabalhadores, bem diferente do que temos no Brasil. Acabei me acostumando, claro. No link ao final deste texto [1], encontram-se os detalhes para a província do Québec, se alguém se interessar (opção em inglês no alto, à direita). Há pequenas variações conforme a província, não muito significativas, a não ser para licença-maternidade, que não era o meu caso. Em resumo, o trabalhador tem direito a duas semanas de férias, após um ano de trabalho, com remuneração correspondente a 4% do salário anual (soma do que ganha durante um ano). Após 5 anos de trabalho e daí em diante, passa a ter direito a três semanas de férias, com remuneração de 6% do salário anual. Pronto, acabou. Se mudar de empresa, começa a contagem toda de novo.
E os feriados? São muito menos numerosos aqui e não tem aquela história de enforcar um dia e esticar até o fim de semana para fazer feriadão, não! Quando cai no meio da semana, há a opção (do empregador) de manter o feriado no seu dia mesmo ou transferi-lo para a sexta-feira ou para a segunda-feira seguinte – uma emendazinha, afinal ninguém é de ferro.
Muito interessante, vale mencionar, é que o pagamento das férias é chamado pela lei de “indemnité/indemnity” [2]. O termo usado é um remanescente de quando o trabalhador era pago por trabalhar em vez de tirar férias [4]. Ficou também um certo sentido de que parar de trabalhar é basicamente considerado como uma penalidade, com direito a indenização – na prática, obviamente, os trabalhadores se regozijam com as férias. Mas isso dá uma ideia de como é a noção do trabalho por aqui. E, realmente, a maioria das pessoas tem alguma tendência a ser workaholic.
Um exemplo dessa compulsividade está no fato de os estudantes trabalharem durante as férias do verão, mesmo os mais jovens. Lembram-se da filha do ex-presidente dos Estados Unidos, Obama, trabalhando numa lanchonete, notícia que fez manchete nos jornais brasileiros? Aqui no Canadá é assim também. Nos primeiros tempos, quando me mudei para cá, fomos almoçar em um restaurante e – surpresa! – uma sobrinha do meu marido estava trabalhando como garçonete. E ela era uma adolescente ainda, recentemente saída das fraldas... por assim dizer. Quando estão mais adiantados nos estudos, os estudantes preenchem vagas especiais previstas para eles nas empresas, permitindo maior flexibilidade para a marcação das férias dos empregados.
Como se pode ver, nem tudo é festa do lado de cá. E por falar em festa, para não sair à francesa [6], que é coisa de inglês, nem sair à inglesa [5], que é coisa de francês, vou ficando por aqui bem à brasileira, enviando beijinhos soprados nas mãos, dos dois lados, para vocês. Até a próxima vez.

Update 12/06/2018: acaba de ser aprovada a lei que permite 1 semana a mais de férias, após 3 anos de trabalho, ou seja, o trabalhador não precisará esperar 5 anos para tirar 3 semanas de férias.
Outras mudanças nas normas de trabalho também foram aprovadas.
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[1] La loi pour les vacances:

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