– Quem toca violão aqui? – alguém me perguntou. Meu marido não toca,
nem eu. Mas temos um em casa, com uma história bem especial. Já pensei em
vendê-lo, doá-lo, mas ele não quer ir embora. É uma espécie de avatar que
representa parte da história de minha vida.
Fica no seu canto, em silêncio, dentro
de sua caixa original, tal como quando o comprei. Às vezes, quando estou
sozinha em casa, ele sai todo desafinado, me pedindo para ajustá-lo – Sim, sei como fazer isso, aprendi quando era
bem pequena. Aproveito esses momentos para cantar algumas canções
antigas, que me trazem boas lembranças. Mas logo, logo, cedo às dores de minhas
mãos tão leigas em música, e o avatar volta para seu guardado, protegido da
poeira.
Em criança, aprendi, com meu
pai, uns acordes simplicíssimos, para acompanhar uma música folclórica que só
ouvi cantar durante a minha infância, até a minha adolescência, depois nunca
mais. O máximo que consegui evoluir nessa arte, foi aplicando aqueles acordes
em umas cantigas de roda e de ninar. E depois, observando minha irmã e tentando
imitá-la, consegui desenferrujar um pouco mais os dedos, que começaram até
mesmo a formar calos nas pontas – depois de muito doer. Mas o esforço foi em
vão, não tinha agilidade, faltava talento. Restou-me cantar no âmbito
doméstico, fazendo coro com outros, assim minhas falhas não realçavam muito.
Há males que vêm para o bem.
Eu explico. É que recebo elogios do marido, que diz gostar de me ouvir, quando
acontece de me flagrar em delito. Considero isso uma prova de amor, sou uma
felizarda. Mas evito insistir no mal... ele pode mudar de ideia.
Voltando à história do
avatar... Um mês após a morte de minha irmã, retornei a minha casa, no Canadá.
Minha mãe, meus irmãos e eu – não me lembro mais de quem partiu a ideia, talvez
de mim mesma – todos concordamos que o violão dela viesse comigo. Mas ele não
quis se exilar, a possibilidade de viajar para tão longe de sua companheira de
tantos momentos alegres e sagrados foi rejeitada. Na hora de embarcar no avião,
fui impedida de entrar com o instrumento junto comigo. Teria que ir como
bagagem registrada. Não quis que ele passasse por essa experiência, tive medo de
que se machucasse. Preferi deixá-lo com a família.
Foi um momento triste, como
se mais um pedaço de minha irmã estivesse se desligando de mim. Se faltava
chorar ainda, se algum choro tinha sido contido antes, ele desabou durante a
viagem. Foi catártico.
Retomei minha vidinha. Um
dia, em minhas andanças, deparei-me com uma loja de música e, num ímpeto,
entrei. Havia todo tipo de instrumentos musicais à venda. Embora me
questionando sobre a utilidade que teria, comprei um violão – o avatar.
Isso tudo talvez não explique logicamente por que razão tenho o instrumento em casa mas, como diz o ditado: Cada louco com sua mania.
A estrelinha
Maria Leonídia |
A estrelinha
Cartinha que escrevi para minhas sobrinhas mais novas, pouco tempo depois da morte de minha irmã.
Prêmio Rio Branco: premiados nos primeiros 100 anos - Leonídia na página 4 (1977)
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