© Maria do Carmo Vieira-Montfils |
Foi em janeiro de 1998 [1] [2] [3].
Ainda não tinha-me mudado para o Canadá, mas me comunicava com meu então namorado,
pela internet, diariamente. No dia 5 de janeiro, ele me preveniu que,
provavelmente, faltaria energia elétrica e que não poderia se conectar. Os fios elétricos
estavam cobertos por uma espessa camada de gelo, bem como tudo o mais. E a
chuva congelada continuava.
Ainda bem que ele me avisou,
do contrário teria pensado que ele não queria mais conversar comigo. Os
noticiários no Brasil ainda não mencionavam o que estava acontecendo e, mesmo
no auge do drama, noticiaram muito pouco. Sem energia elétrica e sem telefone, meu
namorado tinha ficado praticamente isolado do mundo.
Os sites web do Canadá
ficaram fora do ar por algum tempo, eu conseguia notícias através dos sites
americanos. E as notícias não eram animadoras.
Para quem não sabe o que é a
chuva congelada, em francês “pluie verglaçante” ou “verglas”, em inglês “freezing
rain” ou “ice storm”, trata-se de um fenômeno meteorológico que acontece no
inverno, quando a temperatura gira em torno de zero °C e cai uma chuva que se
congela no momento em que toca as superfícies, onde se gruda, cobrindo tudo de
gelo e dando uma aparência de vidro, como se tudo tivesse sido vitrificado. Ela
faz um barulhinho típico, como se fossem pequenas e milhares de agulhas batendo
na janela ou alguma outra superfície. Não tem nada a ver com o som da chuva
líquida, muito menos com neve, que não faz barulho nenhum.
Essa chuva caiu nas províncias de Québec e Ontário durante
alguns dias e o gelo que se formou tornou-se pesadíssimo, provocando
desabamentos de telhados, quebra e queda de árvores, bem como de torres de
transmissão de energia, que tombavam como num jogo de dominó – um cenário de
devastação, como nunca antes ocorrera. O pior é que, após esses dias de temperaturas
em torno de zero, o frio aumentou muito, com graus negativos em torno de -20°C,
tornando esse gelo todo que se acumulara praticamente irremovível. Toda a rede
elétrica teria que ser refeita!
A tragédia foi de magnitude
inimaginável para quem vivia nas cidades. Além de a população ter ficado sem
aquecimento nas suas moradias – impensável num tal frio – não tinham como fazer
comida, nem podiam tomar banho, pois para sair água das torneiras depende-se de
bombas que funcionam a eletricidade. Além disso, a água que ficou estagnada nas
instalações hidráulicas congelou com o frio e estourou os canos.
Foi de sorte quem tinha parentes e amigos
morando na zona rural e que conseguiu viajar antes que as estradas ficassem
bloqueadas por árvores e postes envidraçados, tombados no meio do caminho. No interior, muitas casas ainda têm aquecimento à base de fogão de
lenha, além da eletricidade, como era o caso do meu namorado. Uma família de
amigos conseguiu se deslocar a tempo e ficou morando com ele até a situação
melhorar. Foi ótimo, pois assim ele não ficou sozinho no meio de um mundo de
vidro.
Ele conseguiu manter a casa
aquecida, com o fogão de lenha próprio para aquecimento. Para ter água para cozinhar e para tomar banho, eles tinham que ir às instalações do Corpo de Bombeiros, na cidade. Os mantimentos eram comprados no vilarejo próximo, com muita
dificuldade, pois as estradas estavam muito perigosas.
Os estoques das mercearias
estavam sendo mantidos com muito custo e tudo ficou mais caro. O consumo de velas
aumentou absurdamente, e os preços ficaram bem mais altos, pois os comerciantes
também tinham dificuldades para repor suas reservas.
Durante a crise do “verglas”, todos
se ajudaram, a solidariedade foi fortalecida. Os bombeiros, como de costume,
desempenharam um papel muito importante na ajuda às pessoas. Eles estiveram muito ocupados todo o tempo.
Os trabalhos para consertar
a rede elétrica foram hercúleos, uma luta contra o tempo e contra o frio
glacial. O Exército foi acionado para ajudar os funcionários da companhia de
energia elétrica e também para ajudar a população. Os soldados foram de porta
em porta em todas as cidades e em todos os rincões, para verificar as condições
das habitações, para socorrer os moradores e para transportá-los para abrigos, onde
havia geradores, banho e alimentação. Foi uma ajuda abençoada, onde chegavam, o
povo saudava os soldados como heróis.
Depois de quase um mês sem
falar com meu amor, apesar dos milhares de tentativas de chamá-lo pelo
telefone, das incontáveis verificações se não havia mensagens por e-mail,
recebo uma... ah, que alívio! A mensagem era curta, pois estava usando um
gerador para o computador, não podia demorar muito. A internet funcionava por telefone, então, poderia ligar para ele... Ufa! Mais uma semana e voltamos a nos comunicar normalmente.
Daí em diante, passei a ter acesso às notícias diretamente pelo meu namorado e tomei conhecimento da magnitude das conseqüências da inclemência da natureza. Nada para nos fazer rir, mas mesmo assim conseguimos encontrar algo engraçado. Como os flamingos congelados, dos quais vi a foto em um website dos Estados Unidos, fiquei consternada por vê-los mortos, daquele jeito, e mostrei a imagem para vários brasileiros que, por sua vez, ficaram inconsoláveis. Não estava indicado que as aves não eram verdadeiras, eram apenas objetos de plástico decorativos de jardim! Sempre rimos bastante, quando nos lembramos disso.
Triste foi que morreram 30 pessoas em consequência dessa tragédia. Surpreendente, assim mesmo, que não tenha havido mais vítimas, tal foi a catástrofe.
Apesar de estar longe, participei dessa angústia... e sem poder fazer nada. Mas foi uma experiência muito importante, vi como o povo canadense é “duro na queda”, solidário e, sobretudo, vitorioso. Construíram e continuam sempre construindo um país de qualidade superior, em condições dificílimas. Aqui, nada é fácil. Nos velhos tempos e também hoje, nos bastidores de toda essa boa qualidade de vida, há muito, muito trabalho!
Triste foi que morreram 30 pessoas em consequência dessa tragédia. Surpreendente, assim mesmo, que não tenha havido mais vítimas, tal foi a catástrofe.
Apesar de estar longe, participei dessa angústia... e sem poder fazer nada. Mas foi uma experiência muito importante, vi como o povo canadense é “duro na queda”, solidário e, sobretudo, vitorioso. Construíram e continuam sempre construindo um país de qualidade superior, em condições dificílimas. Aqui, nada é fácil. Nos velhos tempos e também hoje, nos bastidores de toda essa boa qualidade de vida, há muito, muito trabalho!
http://ottawacitizen.com/news/local-news/remember-the-ice-storm-of-98-it-was-the-most-devastating-and-least-ferocious-of-disasters
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