quarta-feira, dezembro 27, 2017

Verglas 1998 – 20 anos depois

© Maria do Carmo Vieira-Montfils
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Foi em janeiro de 1998 [1] [2] [3]. Ainda não tinha-me mudado para o Canadá, mas me comunicava com meu então namorado, pela internet, diariamente. No dia 5 de janeiro, ele me preveniu que, provavelmente, faltaria energia elétrica e que não poderia se conectar. Os fios elétricos estavam cobertos por uma espessa camada de gelo, bem como tudo o mais. E a chuva congelada continuava.
Ainda bem que ele me avisou, do contrário teria pensado que ele não queria mais conversar comigo. Os noticiários no Brasil ainda não mencionavam o que estava acontecendo e, mesmo no auge do drama, noticiaram muito pouco. Sem energia elétrica e sem telefone, meu namorado tinha ficado praticamente isolado do mundo.
Os sites web do Canadá ficaram fora do ar por algum tempo, eu conseguia notícias através dos sites americanos. E as notícias não eram animadoras.
Para quem não sabe o que é a chuva congelada, em francês “pluie verglaçante” ou “verglas”, em inglês “freezing rain” ou “ice storm”, trata-se de um fenômeno meteorológico que acontece no inverno, quando a temperatura gira em torno de zero °C e cai uma chuva que se congela no momento em que toca as superfícies, onde se gruda, cobrindo tudo de gelo e dando uma aparência de vidro, como se tudo tivesse sido vitrificado. Ela faz um barulhinho típico, como se fossem pequenas e milhares de agulhas batendo na janela ou alguma outra superfície. Não tem nada a ver com o som da chuva líquida, muito menos com neve, que não faz barulho nenhum.
Essa chuva caiu nas províncias de Québec e Ontário durante alguns dias e o gelo que se formou tornou-se pesadíssimo, provocando desabamentos de telhados, quebra e queda de árvores, bem como de torres de transmissão de energia, que tombavam como num jogo de dominó – um cenário de devastação, como nunca antes ocorrera. O pior é que, após esses dias de temperaturas em torno de zero, o frio aumentou muito, com graus negativos em torno de -20°C, tornando esse gelo todo que se acumulara praticamente irremovível. Toda a rede elétrica teria que ser refeita!
A tragédia foi de magnitude inimaginável para quem vivia nas cidades. Além de a população ter ficado sem aquecimento nas suas moradias – impensável num tal frio – não tinham como fazer comida, nem podiam tomar banho, pois para sair água das torneiras depende-se de bombas que funcionam a eletricidade. Além disso, a água que ficou estagnada nas instalações hidráulicas congelou com o frio e estourou os canos.
Foi de sorte quem tinha parentes e amigos morando na zona rural e que conseguiu viajar antes que as estradas ficassem bloqueadas por árvores e postes envidraçados, tombados no meio do caminho. No interior, muitas casas ainda têm aquecimento à base de fogão de lenha, além da eletricidade, como era o caso do meu namorado. Uma família de amigos conseguiu se deslocar a tempo e ficou morando com ele até a situação melhorar. Foi ótimo, pois assim ele não ficou sozinho no meio de um mundo de vidro.
Ele conseguiu manter a casa aquecida, com o fogão de lenha próprio para aquecimento. Para ter água para cozinhar e para tomar banho, eles tinham que ir às instalações do Corpo de Bombeiros, na cidade. Os mantimentos eram comprados no vilarejo próximo, com muita dificuldade, pois as estradas estavam muito perigosas.
Os estoques das mercearias estavam sendo mantidos com muito custo e tudo ficou mais caro. O consumo de velas aumentou absurdamente, e os preços ficaram bem mais altos, pois os comerciantes também tinham dificuldades para repor suas reservas.
Durante a crise do “verglas”, todos se ajudaram, a solidariedade foi fortalecida. Os bombeiros, como de costume, desempenharam um papel muito importante na ajuda às pessoas. Eles estiveram muito ocupados todo o tempo.
Os trabalhos para consertar a rede elétrica foram hercúleos, uma luta contra o tempo e contra o frio glacial. O Exército foi acionado para ajudar os funcionários da companhia de energia elétrica e também para ajudar a população. Os soldados foram de porta em porta em todas as cidades e em todos os rincões, para verificar as condições das habitações, para socorrer os moradores e para transportá-los para abrigos, onde havia geradores, banho e alimentação. Foi uma ajuda abençoada, onde chegavam, o povo saudava os soldados como heróis.
Depois de quase um mês sem falar com meu amor, apesar dos milhares de tentativas de chamá-lo pelo telefone, das incontáveis verificações se não havia mensagens por e-mail, recebo uma... ah, que alívio! A mensagem era curta, pois estava usando um gerador para o computador, não podia demorar muito. A internet funcionava por telefone, então, poderia ligar para ele... Ufa! Mais uma semana e voltamos a nos comunicar normalmente.
Daí em diante, passei a ter acesso às notícias diretamente pelo meu namorado e tomei conhecimento da magnitude das conseqüências da inclemência da natureza. Nada para nos fazer rir, mas mesmo assim conseguimos encontrar algo engraçado. Como os flamingos congelados, dos quais vi a foto em um website dos Estados Unidos, fiquei consternada por vê-los mortos, daquele jeito, e mostrei a imagem para vários brasileiros que, por sua vez, ficaram inconsoláveis. Não estava indicado que as aves não eram verdadeiras, eram apenas objetos de plástico decorativos de jardim! Sempre rimos bastante, quando nos lembramos disso.
       Triste foi que morreram 30 pessoas em consequência dessa tragédia. Surpreendente, assim mesmo, que não tenha havido mais vítimas, tal foi a catástrofe.     
       Apesar de estar longe, participei dessa angústia... e sem poder fazer nada. Mas foi uma experiência muito importante, vi como o povo canadense é “duro na queda”, solidário e, sobretudo, vitorioso. Construíram e continuam sempre construindo um país de qualidade superior, em condições dificílimas. Aqui, nada é fácil. Nos velhos tempos e também hoje, nos bastidores de toda essa boa qualidade de vida, há muito, muito trabalho!
[3] 
http://ottawacitizen.com/news/local-news/remember-the-ice-storm-of-98-it-was-the-most-devastating-and-least-ferocious-of-disasters

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