Também publicada na KBR Editora Digital, em 18 de julho de 2015
https://cronicasdakbr.kbrinternational.org/2015/07/18/batuque-no-jardim/
http://www.kbrdigital.com.br/blog/batuque-no-jardim/
e
https://www.cronicasdakbr.com/2015/07/18/batuque-no-jardim/
Não sei se é por ter completado
mais um decênio de vida, ou se esse negócio de lembrar do passado é coisa de
expatriado. Talvez seja por ter encontrado tudo tão mudado, em recente viagem à
terra natal. "Mas que bobagem, isso é natural..."
Não vou dizer que é porque
estamos no verão, que este ano está estupendo aqui no Canadá; também não vou
dizer que é porque gostaria de estar lá... Não, sobretudo neste ano de 2015
d.C., o Brasil está refratário à ordem e ao progresso, está de dar medo, confesso.
Só mesmo família e amigos para me motivarem a visitar a terrinha. E esta
saudade eu bem posso cultivar, ela é minha...
Cuidando do meu jardim, uma flor
ou outra me transporta no tempo, de vez em quando, pelo poder dos aromas.
Cheiro é coisa difícil de descrever, mas a gente lembra. Havia perfumes em
certos bairros de BH, provenientes de não sei que planta. Cheiro de árvore
mesmo. Podiam me vendar os olhos que eu saberia onde estava.
Ah... as florinhas de abril tão
amarelinhas! Dignamente agrestes, cheiravam a mato mesmo, e brotavam em
qualquer lugar: nos barrancos, nos lotes, nos morros, no quintal, na rua...
Douradamente amarelas, como se fosse o sol derramado e esparramado.
Mas nem estava pensando em nada
disso, quando um vento por acaso vindo do sul, em rajadas, trouxe um som antigo
de uma escola de samba que ensaiava na favela do “Morro do Pau Comeu”, em Belo
Horizonte. O batuque ficava fraco, sumia, depois ficava mais forte de novo, ao
sabor das baforadas do ar. Aquele barulho às vezes atrapalhava, tirava a concentração;
mas quase sempre eu entrava na cadência, mentalmente, sem perceber. Era assim
quase o ano inteiro, o ritmo em modo subliminar, marcando para sempre minha
alma brasileira.
Interessante como há registros
latentes em nosso repertório de memórias, oriundos de eventos e sensações que
contribuíram para nos moldar, sem que nos déssemos conta disso, e que, volta e
meia, tornam a fustigar nossas emoções e pensamentos, reavivando
afeições, revelando nossas feições.
Pois o som daquela bateria, que
há tantos e tantos anos não ouvia, estava em algum recanto dos meus guardados,
pronto para sair a qualquer momento, sambando em pleno território canadense.
Num gesto instintivo mais forte
que a razão, desviei os olhos para o lado de onde vinha o vento, como se fosse
ver algum passista com suas acrobacias, ou uma porta-bandeira emplumada e
graciosa a rodopiar, surgindo através da vegetação exuberante que nos cerca
nesta época do ano. As árvores pareciam embaladas pelo ritmo, talvez estivessem
escondendo seus tambores em suas folhagens abundantes.
Sem anúncio alusivo nem grito de
guerra, comecei a gingar e ensaiei alguns passos, como uma tresloucada. Sem
poder associar minha mise-en-scène à sonoplastia que me inspirava, meu marido
não pôde resistir ao ímpeto de rir, com um certo ar desconfiado, diante daquele
súbito gestual... Seria algum ritual primitivo que eu ainda não tinha lhe
revelado que costumava praticar?
Para que o efeito observado nele
não causasse alguma consequência irreversível, rapidamente perguntei sobre a
origem daquele barulho. Foi aí, então, que ele reconheceu a dança que, pelo
menos, acompanhava o ritmo. Claro que já tentei sambar muitas outras vezes, mas
sempre acho que meu jeito é um tanto acaboclado, provavelmente como eu e minha
brasilidade, que mistura tudo; lembra um pouco, talvez, a dança indígena para
chamar chuva, sei lá. Bem que minhas plantinhas estavam precisando de uma
chuvinha...
Os tambores ritmados que ouvíamos
vinham de uma velha enfardadeira[1],
que estava sendo usada numa fazenda dos nossos arredores. Trata-se de uma espécie
de trator com dispositivos para comprimir o feno, produzindo os tradicionais
fardos em forma de paralelepípedo ou cilindro, que são assim recolhidos. É um
trabalho duro – carregar fardos não é fácil. Mas são boas recordações da sua
juventude quando, junto com a família e amigos, meu marido enfrentava a labuta
diária da fazenda, antes de tomar outros rumos na sua vida. Apesar de não haver
muitos momentos de descanso, eram atividades saudáveis, uns ajudando os outros
na sobrevivência. Agora existem maquinarias que fazem praticamente todo o
trabalho, porém alguns poucos remanescentes dos antigos tratores ainda
continuam em uso.
Vivendo aqui, venho aprendendo
muita coisa sobre o Canadá, vou me inteirando da História deste país. Acho tudo
muito interessante para ampliar meu conhecimento, sem ficar olhando só para o
meu próprio umbigo brasileiro. A gente passa a compreender melhor como é que
“assim caminha a humanidade”. Por isso, partilho esses traços de cultura com
meus leitores e espero que não seja inútil.
De lá para cá, do nosso tempo de
juventude até os dias de hoje, tanta coisa mudou! Embora nem sempre para
melhor, não podemos negar que houve algum desenvolvimento e que a vida ficou
melhor em muitos aspectos. A tecnologia, por exemplo, ajudou bastante. Sem ela,
não poderia estar expondo aqui minhas palavras e meus sentimentos, que ficarão,
como tantos outros, disponíveis para quem quiser ler e, quem sabe, encontrar
neles alguma graça ou utilidade.
Não podemos desanimar, não podemos
deixar o samba morrer. Faço a minha parte, prometo nunca mais tentar sambar.
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