sábado, março 14, 2015

Outono nas Planícies de Abraham

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Outono é outra primavera, cada folha uma flor.
Albert Camus

Ir à cidade de Quebec é como ir a Ouro Preto, ou a Salvador da Bahia, percorrer o passado que nos forjou; é revisitar histórias que traçaram nosso destino e viraram vitrine de nós mesmos. Nem sempre nos orgulhamos de tudo o que aconteceu ali, mas é o que temos. Há, pelo menos, tantos sonhos de justiça que viveram naquelas construções sólidas, na arquitetura de nossas ancestralidades.

Há um fascínio especial em caminhar pelas Planícies de Abraham, sobretudo quando sabemos que foram palco de batalhas que decidiram o futuro do Canadá. Impossível andar por ali sem pensar nisso, apesar de hoje ser um parque que nos transmite tanta paz.

Igualmente tocante pensar que a cidadela, no alto das planícies, já foi local de reuniões secretas dos Aliados para decidir estratégias que mudariam o rumo do planeta, uma delas a reunião entre Roosevelt, Churchill e o então Primeiro Ministro do Canadá, Mackenzie King, encontro que estabeleceu planos para dar fim à Segunda Guerra Mundial.

Absorta nesses pensamentos, estava eu passeando no parque, numa manhã de domingo, desses de céu azul, azul, sem nuvens. Era outono. Cheguei cedo para desfrutar do silêncio. Enquanto a cidade parecia ainda adormecida, o parque não dormia. Como sempre à escuta, oferecia seus mimos aos visitantes. Pequenos passarinhos, com sua habitual retórica, também lá estavam, balbuciando saudações matinais.

A natureza estava especialmente eloquente naquele dia. As folhas outonais, já caídas em grande número, estalavam esmagadas pelos meus passos, e aquelas que ainda estavam presas aos galhos das árvores resistiam ao vento e murmuravam velhas histórias de memórias distantes, ao sol tépido da manhã. Sentei-me em um banco no alto do parque, de onde podia admirar a beleza da paisagem, tendo diante de mim a vastidão do Rio São Lourenço, bom pano de fundo para o livro que queria ler.

Mal comecei a primeira página e percebi que chegava uma pessoa; com certa hesitação, sentou-se num banco quase em frente ao meu, de costas para o rio. Era um senhor idoso, pensei, e logo me corrigi: se o considero idoso, ele deve ser bem velho, pois idosa já estou eu, mesmo que na cabeça ainda me sinta jovem. Quando finalmente se sentou, levantei os olhos discretamente para vê-lo melhor e, um pequeno sobressalto, ele também me olhava, com um ligeiro sorriso. Sorri também, e gaguejei um bom-dia. Ao que ele me respondeu que eu tinha a melhor vista do parque sentada naquele banco, que era seu favorito. Mais que depressa levantei-me e cedi-lhe o lugar, dizendo que minha intenção era ler, onde quer que eu ficasse seria bom.

— Há espaço para os dois, se não se importar — disse ele, vindo sentar-se no meu banco. — A senhora é madrugadora, chegou antes de mim.

— Desculpe-me, estou de passagem, não moro na cidade — retruquei, tentando ser amável e, ao mesmo tempo, tranquilizando-o quanto ao fato de que o lugar no banco não seria ocupado todos os dias.

Ele continuou sua conversa, que parecia mais um relatório de vida, fazendo-me concluir que não conseguiria avançar muito na leitura. Mas não me importei; ele parecia simpático e inofensivo e, visivelmente, estava precisando conversar.

— Depois que me aposentei, venho quase todos os dias respirar o ar puro do parque. Às vezes, eu vinha com minha esposa, antes da doença.

Ficou pensativo por um momento e prosseguiu:

— Hoje, penso naqueles tempos felizes da nossa juventude. Minha mulher e eu vivemos em tempos mais difíceis, não havia todos os recursos que há hoje para criar uma família, mas as preocupações eram todas superáveis. Depois, momentos dolorosos vieram e perdi minha companheira na batalha pela vida. Justamente eu, que salvei a vida de muitos, não pude fazê-lo para a pessoa que amava tanto. Mas tenho a sensação de missão cumprida, porque estive sempre ao seu lado para confortá-la e dar-lhe tudo de que ela precisava… Tudo o que era possível.

— O senhor fez muito bem, se todos soubessem que ajudar a quem amamos pode fazer-nos um bem ainda maior do que ao outro…

Após a morte de sua doce companheira, ele vendera a casa onde moravam e, como tantas outras pessoas da sua idade, optara por morar em um apartamento, num edifício desses construídos para abrigar idosos que ainda são autônomos, capazes de cuidarem de si próprios. Ali ele esperava continuar, sem incomodar ninguém, até que viesse o momento de se juntar à sua querida.

E acrescentou:

— Desculpe-me incomodá-la com minhas histórias, por favor, continue sua leitura; tenho um compromisso, estou esperando alguém, não demorarei muito por aqui hoje. Dizendo isso, recostou-se, como quem não tem pressa.

Tenho a impressão de que as pessoas aqui no Canadá encaram o envelhecimento e a morte com mais serenidade, com mais naturalidade.

Consegui ler algumas poucas linhas, enquanto o meu vizinho de banco cochilava. Aos poucos, outras pessoas chegavam ao parque, podia-se ouvir os gritinhos e as risadas alegres das crianças. Minha concentração na leitura esvaiu-se completamente no voo de dois lindos gaios azuis, que soltavam seus gritos com pleno vigor. Uma pequena rajada de vento cobriu nosso banco de folhinhas miúdas, como uma chuva de estrelas douradas. Pensei que, com tudo isso, o nosso dorminhoco acordaria, mas não, ele devia estar acostumado.

O sol preguiçoso de domingo se levantava e aquecia o parque. Olhei para as árvores em volta e percebi que as cores já tinham mudado muito. Havia vermelhos em vários tons, havia amarelo e laranja, verdes ainda vários… As folhas estavam brilhantes, pareciam ter luz própria. O outono estava em sua plenitude, o ciclo da vida seguia sua jornada com muita graça e, acima de tudo, sem sofrimento. Identifiquei-me com a natureza, tive a impressão de integrar-me a esse cenário esplêndido e completo em sua dimensão. Por alguns instantes, não senti necessidade de fazer perguntas, compreendi e aceitei minha condição humana intuitivamente.

Um grande suspiro reteve a respiração do senhor ao meu lado por tanto tempo que ele acordou de seu cochilo, assustado. E percebeu uma lágrima descendo de seu olho esquerdo, sem o seu consentimento… Uma lágrima pesada, que seus dedos enxugaram instintivamente.

— Doutor!

Meu amigo teve um sobressalto quando ouviu este chamamento, certamente cada vez mais raro depois da aposentadoria. Olhou para o lado de onde vinha o chamado inesperado e viu um homem que parecia ainda mais velho, e corria em sua direção. Em boa forma, apesar da idade, o homem aproximou-se rapidamente, com um grande sorriso.

— Você me reconhece? Fui seu paciente durante muito tempo e você me curou.

Pelo semblante do doutor, pude concluir que ele não o reconhecera, mas ficou aliviado que seu paciente tivera a gentileza de se identificar e ainda mais feliz em saber que tudo correra bem após o tratamento.

— E como está sua saúde agora? Você parece estar muito bem.

O velho senhor fez um breve relato de seu estado de saúde, concluindo rapidamente que tudo estava bem e que estava muito feliz. Mas não podia ficar ali por muito tempo, tinha uma reunião dominical com os filhos. E acrescentou que tinha sido um presente tê-lo encontrado mais uma vez, para agradecer-lhe por tudo. Em seguida, desapareceu rapidamente em seu caminho, como se fosse um anjo que apenas viera transmitir uma mensagem.

Depois que o paciente se foi, meu amigo confessou-me que aquele encontro fora uma grande recompensa, tinha ficado contente em ver seus esforços reconhecidos.

Neste momento, ouvimos os gritinhos alegres de seus netos o chamando, e ele me explicou que era seu filho mais novo que vinha buscá-lo, acompanhado de sua nora e netos; todos pareciam radiantes com o encontro. Apontando para Jérôme, o neto mais novo, ele disse: este tem os olhos suaves de minha mulher. E voltando-se para Marie-Ève, contou-me que ela também tinha herdado algo de sua avó: o mais belo sorriso do mundo.

Era hora de partir, ele também, para a sua reunião dominical com a família. Tomou Jérôme nos braços e Marie-Ève deu-lhe a mão — seu filho e sua nora caminhando na frente, o avô atrás, com os netos e muitas histórias, lá se foram eles lentamente, deixando no parque vestígios radiosos de vida.

Compreendi a serenidade daquele avô. Ele teve a chance de viver num mundo civilizado que ajudou a edificar. Apesar de todas as dificuldades que teve que enfrentar, tinha feito a sua parte, tanto profissionalmente como em família. Seus filhos tinham sido bem educados, escolhido bem suas companheiras e estavam transmitindo essa boa herança para seus netos. Ele havia ajudado a povoar a Terra com pessoas boas, de bons princípios — isso valia os sacrifícios vividos, e poderia morrer em paz. Não havia sido inútil ter feito o melhor que pôde. Essa ideia me pareceu clara o bastante.

Fiquei ali nas Planícies de Abraham, esperando meu marido, para irmos almoçar juntos. Ainda não era minha hora de partir.

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