segunda-feira, fevereiro 12, 2024

O vice-versa das coisas

 

Já escrevi sobre Guimarães Rosa - que audácia a minha -, trechos salpicados no Facebook, já faz um bom tempo. Que me perdoem os entendidos, incluindo ele próprio, onde quer que esteja. Estou resgatando alguns temas para os meus apontamentos.

O tema é sobre o famoso escritor mineiro e o seu Grande Sertão: Veredas em lista de grandes autores que ninguém lê (Ten Great Writers Nobody Reads - ver link ao final do texto), apesar de estar nos "Top 100 books of all time", em votação por escritores internacionais! E colocado na categoria: "A writer whose work is nearly impossible to translate".

Realmente, é uma linguagem difícil de compreender até para nós, mineiros. E olha que, na minha profissão, eu ouvi, durante anos a fio, gente oriunda de várias “veredas” do sertão mineiro, com seus linguajares, falando coisas do fundo de suas almas (penso que médico ouve confissões quase tão profundas quanto as que são confiadas aos padres).

Diga-se de passagem, não é esse "mineirês" de redes sociais. 

Há muitos neologismos no texto – intuitivamente compreensíveis – típicos do jeito de falar do sertanejo de Minas, mas muitas palavras ali não são inventadas; são erudições e arcaísmos que ficaram guardados no coração do sertão, sem contato com as cidades. Tem muito disso aqui no Québec, com relação à França, palavras antigas que os franceses não usam mais.

Sem dúvida, é uma obra riquíssima, não só pelos temas que aborda, mas também pela riqueza linguística, através da qual o leitor pode tentar desbravar a alma dos personagens; o livro focaliza um povo, mas é, ao mesmo tempo, universal. Entretanto, a porta de acesso para entrar nesse universo, profundamente, é a linguagem, com suas rudezas, sutilezas... e silêncios - tão singulares! - que tornam a obra intraduzível, no meu ponto de vista.

O tradutor precisaria ter vivido duas vidas numa só, para conhecer a fundo, não como um “expert”, mas como um “insider”, tanto a língua e linguagens da obra original quanto a língua e linguagens da tradução.

Para falar a verdade, podem até achar que é blasfêmia de minha parte, mas o “Grande Sertão: Veredas“ estar entre os "Top 100 books of all time", em votação feita por escritores internacionais, soa "A Roupa Invisível do Rei". O que até reforça a sua grandiosidade. Fico admirada de ter conseguido esse “status”, certa que estou de que nenhum “outsider” possa ter sido capaz de apreciá-lo na sua integralidade. Devem ter lido alguma explicação bem didática. Que bom, então!

Há algo genial nessa obra: colocar o leitor intelectual, filósofo, homem de estudos enfim, com uma certa dificuldade para entender a linguagem do homem do sertão - o vice-versa das coisas. Cada qual com seu linguajar, diferente em suas nuances, mas com todas as “intelectualidades” que lhe são comuns, mostrando, se dúvida existe, que estão - o estudado e o sertanejo - em inquestionável pé de igualdade; são humanos, com as suas angústias existenciais.

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Links relacionados:

Ten Great Writers Nobody Reads

Guimarães Rosa entrevistado por Walter Höllerer em Berlim

João Guimarães Rosa - Entrevistado por Günter Lorenz


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