sexta-feira, dezembro 02, 2016

Os moradores de nenhures

www.dicio.com.br/nenhures
Ce texte en français: https://maviemontfils.blogspot.ca/2016/10/les-habitants-de-nulle-part.html

Parece que está sempre acontecendo alguma coisa, em algum lugar, levando as pessoas a se mudarem de país. Embora em muito menor número que as catástrofes e guerras, também os chamados do amor, por alguém ou por uma profissão impelem à migração. No meu caso foi o amor... Qui prend mari, prend pays.
Nunca tinha imaginado que iria morar tão longe da minha terra natal. Não foi fácil deixar meus entes queridos e minha profissão. A escolha da felicidade me custou o luto de tudo aquilo que eu havia realizado na vida. Os dias que antecederam a viagem, com todos os preparativos, e o dia da despedida, foram de muita angústia. Os últimos instantes antes de partir foram cheios de emoção. Com direito a uma cena cinematográfica que não assisti, de dentro do avião, não pude ver meus familiares, muito longe, no terraço panorâmico do aeroporto. Meus olhos estavam por demais embaçados. Soube depois que acenaram, minha mãe com um lenço branco. Ela também chorava.
Nem todos da família puderam estar presentes ao meu casamento. Mandei o filme para que pudessem ver. Mesmo com todo o incontestável progresso da tecnologia de comunicação, morar do outro lado do planeta continua sendo muito longe. O amor, porém, perdoa e enaltece tudo.
Apesar dos pesares, esta é uma história alegre – vivo uma união feliz com meu marido. Posso visitar meu país de origem – quando posso. Após dezessete anos de exílio voluntário, acabamos achando isso quase banal. Sou de sorte, em vista dos terríveis casos de migração por motivo de tragédias, como temos visto, milhares de pessoas tentando escapar dos massacres e da fome. E muitas, provavelmente, não poderão nunca mais rever seus familiares, refugiados em outros lugares do mundo ou mortos em conflitos sangrentos.
Tampouco pude estar com minha mãe nos momentos antes de sua morte nem nos rituais de despedida desse mundo. Pude ver seu corpo morto, ao vivo... Vi, graças à internet. Meu lenço branco era de papel e não acenava.
Somos tão primitivos, tão dependentes ainda de nosso próprio peso... Não temos a leveza do pensamento que, em fração de segundos, pode viajar anos-luz. Chegaremos a esse estágio algum dia?
Recordações de uma passagem que me marcou, quando era ainda criança, vêm à tona, quando penso no exílio... ecos de momentos dolorosos da História da Humanidade. Sempre houve muitos imigrantes no meu país, mas testemunhei, em nossa casa, um caso em particular, em carne e osso, e tristeza. Uma costureira austríaca, que trabalhava a domicílio, nos possibilitou ouvir o sotaque da Segunda Guerra Mundial e suas consequências. Dona Gisela (pronunciado Guísela) e seu marido, um alemão, tinham deixado a Europa para se aventurarem do outro lado do Oceano Atlântico. Não tinham filhos. Os que restaram da família dele, continuaram a viver no que foi a Alemanha Oriental, sob o jugo da antiga União Soviética.
Não sei se é porque eu era pequena, achava Dona Gisela enorme, com mãos muito maiores do que os padrões a que estava acostumada. Sua voz fininha e sempre numa escala mais alta que o habitual, surpreendia mais do que sua pronúncia de estrangeira. A delicadeza dos modos era notável, ela não gesticulava muito, de forma que ocupava muito menos espaço que qualquer um de nós, apesar do seu tamanho extraordinário. Era uma boa pessoa, sem exageros.
A situação dos alemães, mesmo os inocentes, ficou muito difícil após a guerra. O desmantelamento da Alemanha nazista foi uma coisa necessária, ninguém questiona isso. Mas tentemos imaginar o povo alemão que sobreviveu num país completamente destruído, carregando um sentimento de culpa imenso, por causa das atrocidades cometidas pelo nazismo – sentimento de culpa que carregam até hoje, diga-se de passagem, mesmo os que nasceram após a guerra – e sendo subjugados por um outro regime louco, que foi o comunismo da União Soviética. Mais sorte tiveram os alemães do lado ocidental, não resta a menor dúvida.
Os que tiveram a chance de se refugiarem nas Américas e puderam refazer suas vidas foram privilegiados. Porém, devem ter sofrido muito com a nostalgia. Acho difícil escapar desse sentimento.
Abro parênteses: não me refiro aos criminosos de guerra que se esconderam no continente americano, pois não posso nem imaginar se tinham algum tipo de sentimento. Fecho parênteses.
Gisela mantinha contato com os parentes que ficaram na Europa. Isso devia ser um grande alento para ela. Ficara sabendo que a Alemanha já havia melhorado bastante, tinha-se erguido dos escombros. Seu orgulho ferido também começava a cicatrizar. Certa vez, ela disse em tom firme: “A Alemanha não tem mendigos” – dito “mêndigos” na sua pronúncia. Lembro que este comentário foi criticado, entre nós, como se fosse uma ofensa à nação que a recebera tão bem. Será que tinha sido tão bem assim mesmo? Talvez ela  tenha dito isso por ter medo de se tornar mendiga. Coitada... Compreendo o seu sentimento de insegurança; é praticamente inevitável, quando nos instalamos em um outro país, por mais acolhedor que ele seja, e mesmo que estejamos protegidos por um sistema de apoio. Principalmente se não temos filhos.
Quando o marido de Gisela morreu, ela quis voltar para a Alemanha. Seu cunhado, que tinha ficado lá, também viúvo, escrevera-lhe uma carta, manifestando o desejo de que se casassem. Ela foi e, ao chegar lá, não obteve permissão para ficar na Alemanha Oriental (a comunista), onde seu pretendente vivia. O governo a considerou velha demais para trabalhar, para ser produtiva. Não tendo outra saída, voltou para o país que a acolhera. Ela nos contou, aos prantos, a rejeição sofrida. Anos mais tarde, adoeceu, e quem cuidou dela, até a morte, foi uma família amiga, do país de adoção.
Uma história desoladora. E há muitas bem piores do que esta de Gisela.
É muito triste quando um povo perde tudo, até sua liberdade; é aterrador quando um Estado autoritário se apropria da alma das pessoas, que ficam sem ter nem como reagir. Até que se consiga um novo equilíbrio, muito sofrimento é necessário, na maioria das vezes. Temos que aprender com a História, pois ela se repete. A tirania estatal, seja de que ideologia for, leva à destruição. Todo mundo sabe disso, mas parece que somos lentos demais para reagir e o mundo continua cheio de guerras, lamentavelmente.
Naqueles tempos idos de minha infância, não podia calcular o desconsolo de um desenraizado como Gisela e tantos outros que abandonam sua Pátria, para se aventurarem em países distantes, sem nada em comum, nem mesmo a língua. Hoje, posso fazer uma tênue ideia disso, porque também mudei de país. Apesar de não ter sido por uma razão dramática. Dá para compreender o banzo dos negros que foram arrancados da África... e como escravos, situação mais grave ainda.
Apesar de ter sido bem acolhida e ter-me integrado razoavelmente bem onde vivo, nunca serei uma “pure laine”, tal como se orgulha tanto a população daqui. Nunca farei um amálgama perfeito com as pessoas do meu país de adoção, porque é impossível compartilhar nossas experiências e nossa identidade como povo; podemos nos contar nossas histórias, mas nunca será como ter o passado vivido nas mesmas circunstâncias. Por outro lado, sinto falta das minhas origens, da minha família, do lugar onde nasci e cresci. Sinto que já não é a mesma coisa, tudo mudou... talvez, eu mesma. Aqui e lá, existe um hiato, uma lacuna que não se pode preencher.
O tempo não volta atrás para que possamos vivenciar aquilo que perdemos com nossa ausência. O imigrante mora no limbo, espécie de nenhures. Não se integra completamente ao país de adoção e perde o elo com o país de origem. Em nenhures viverá o resto de seus dias.

E viva a América: versão um pouco diferente, mais curta

2 comentários:

  1. Nossa, tia Du, que texto forte. Segurei as lágrimas aqui no trabalho. Muito bonito e intenso! Beijinhos! Clá

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