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Parece que está sempre
acontecendo alguma coisa, em algum lugar, levando as pessoas a se mudarem de
país. Embora em muito menor número que as catástrofes e guerras, também os
chamados do amor, por alguém ou por uma profissão impelem à migração. No meu
caso foi o amor... Qui prend mari, prend
pays.
Nunca tinha imaginado que iria
morar tão longe da minha terra natal. Não foi fácil deixar meus entes queridos
e minha profissão. A escolha da felicidade me custou o luto de tudo aquilo que eu
havia realizado na vida. Os dias que antecederam a viagem, com todos os
preparativos, e o dia da despedida, foram de muita angústia. Os últimos
instantes antes de partir foram cheios de emoção. Com direito a uma cena cinematográfica
que não assisti, de dentro do avião, não pude ver meus familiares, muito longe,
no terraço panorâmico do aeroporto. Meus olhos estavam por demais embaçados.
Soube depois que acenaram, minha mãe com um lenço branco. Ela também chorava.
Nem todos da família puderam
estar presentes ao meu casamento. Mandei o filme para que pudessem ver. Mesmo
com todo o incontestável progresso da tecnologia de comunicação, morar do outro
lado do planeta continua sendo muito longe. O amor, porém, perdoa e enaltece tudo.
Apesar dos pesares, esta é
uma história alegre – vivo uma união feliz com meu marido. Posso visitar meu
país de origem – quando posso. Após dezessete anos de exílio voluntário,
acabamos achando isso quase banal. Sou de sorte, em vista dos terríveis casos
de migração por motivo de tragédias, como temos visto, milhares de pessoas
tentando escapar dos massacres e da fome. E muitas, provavelmente, não poderão nunca
mais rever seus familiares, refugiados em outros lugares do mundo ou mortos em
conflitos sangrentos.
Tampouco pude estar com
minha mãe nos momentos antes de sua morte nem nos rituais de despedida desse
mundo. Pude ver seu corpo morto, ao vivo... Vi, graças à internet. Meu lenço
branco era de papel e não acenava.
Somos tão primitivos, tão
dependentes ainda de nosso próprio peso... Não temos a leveza do pensamento
que, em fração de segundos, pode viajar anos-luz. Chegaremos a esse estágio
algum dia?
Recordações de uma passagem
que me marcou, quando era ainda criança, vêm à tona, quando penso no exílio... ecos
de momentos dolorosos da História da Humanidade. Sempre houve muitos imigrantes
no meu país, mas testemunhei, em nossa casa, um caso em particular, em carne e
osso, e tristeza. Uma costureira austríaca, que trabalhava a domicílio, nos possibilitou
ouvir o sotaque da Segunda Guerra Mundial e suas consequências. Dona Gisela (pronunciado
Guísela) e seu marido, um alemão, tinham deixado a Europa para se aventurarem
do outro lado do Oceano Atlântico. Não tinham filhos. Os que restaram da família
dele, continuaram a viver no que foi a Alemanha Oriental, sob o jugo da antiga
União Soviética.
Não sei se é porque eu era
pequena, achava Dona Gisela enorme, com mãos muito maiores do que os padrões a
que estava acostumada. Sua voz fininha e sempre numa escala mais alta que o
habitual, surpreendia mais do que sua pronúncia de estrangeira. A delicadeza dos
modos era notável, ela não gesticulava muito, de forma que ocupava muito menos
espaço que qualquer um de nós, apesar do seu tamanho extraordinário. Era uma
boa pessoa, sem exageros.
A situação dos alemães,
mesmo os inocentes, ficou muito difícil após a guerra. O desmantelamento da
Alemanha nazista foi uma coisa necessária, ninguém questiona isso. Mas tentemos
imaginar o povo alemão que sobreviveu num país completamente destruído,
carregando um sentimento de culpa imenso, por causa das atrocidades cometidas
pelo nazismo – sentimento de culpa que carregam até hoje, diga-se de passagem,
mesmo os que nasceram após a guerra – e sendo subjugados por um outro regime
louco, que foi o comunismo da União Soviética. Mais sorte tiveram os alemães do
lado ocidental, não resta a menor dúvida.
Os que tiveram a chance de
se refugiarem nas Américas e puderam refazer suas vidas foram privilegiados.
Porém, devem ter sofrido muito com a nostalgia. Acho difícil escapar desse
sentimento.
Abro parênteses: não me
refiro aos criminosos de guerra que se esconderam no continente americano, pois
não posso nem imaginar se tinham algum tipo de sentimento. Fecho parênteses.
Gisela mantinha contato com
os parentes que ficaram na Europa. Isso devia ser um grande alento para ela.
Ficara sabendo que a Alemanha já havia melhorado bastante, tinha-se erguido dos
escombros. Seu orgulho ferido também começava a cicatrizar. Certa vez, ela
disse em tom firme: “A Alemanha não tem mendigos” – dito “mêndigos” na sua
pronúncia. Lembro que este comentário foi criticado, entre nós, como se fosse
uma ofensa à nação que a recebera tão bem. Será que tinha sido tão bem assim
mesmo? Talvez ela tenha dito isso por
ter medo de se tornar mendiga. Coitada... Compreendo o seu sentimento de
insegurança; é praticamente inevitável, quando nos instalamos em um outro país,
por mais acolhedor que ele seja, e mesmo que estejamos protegidos por um
sistema de apoio. Principalmente se não temos filhos.
Quando o marido de Gisela
morreu, ela quis voltar para a Alemanha. Seu cunhado, que tinha ficado lá, também
viúvo, escrevera-lhe uma carta, manifestando o desejo de que se casassem. Ela
foi e, ao chegar lá, não obteve permissão para ficar na Alemanha Oriental (a
comunista), onde seu pretendente vivia. O governo a considerou velha demais
para trabalhar, para ser produtiva. Não tendo outra saída, voltou para o país
que a acolhera. Ela nos contou, aos prantos, a rejeição sofrida. Anos mais
tarde, adoeceu, e quem cuidou dela, até a morte, foi uma família amiga, do país
de adoção.
Uma história desoladora. E
há muitas bem piores do que esta de Gisela.
É muito triste quando um
povo perde tudo, até sua liberdade; é aterrador quando um Estado autoritário se
apropria da alma das pessoas, que ficam sem ter nem como reagir. Até que se consiga
um novo equilíbrio, muito sofrimento é necessário, na maioria das vezes. Temos
que aprender com a História, pois ela se repete. A tirania estatal, seja de que
ideologia for, leva à destruição. Todo mundo sabe disso, mas parece que somos
lentos demais para reagir e o mundo continua cheio de guerras, lamentavelmente.
Naqueles tempos idos de
minha infância, não podia calcular o desconsolo de um desenraizado como Gisela
e tantos outros que abandonam sua Pátria, para se aventurarem em países
distantes, sem nada em comum, nem mesmo a língua. Hoje, posso fazer uma tênue
ideia disso, porque também mudei de país. Apesar de não ter sido por uma razão
dramática. Dá para compreender o banzo
dos negros que foram arrancados da África... e como escravos, situação mais
grave ainda.
Apesar de ter sido bem
acolhida e ter-me integrado razoavelmente bem onde vivo, nunca serei uma “pure
laine”, tal como se orgulha tanto a população daqui. Nunca farei um amálgama
perfeito com as pessoas do meu país de adoção, porque é impossível compartilhar
nossas experiências e nossa identidade como povo; podemos nos contar nossas
histórias, mas nunca será como ter o passado vivido nas mesmas circunstâncias. Por
outro lado, sinto falta das minhas origens, da minha família, do lugar onde
nasci e cresci. Sinto que já não é a mesma coisa, tudo mudou... talvez, eu
mesma. Aqui e lá, existe um hiato, uma lacuna que não se pode preencher.
O tempo não volta atrás para
que possamos vivenciar aquilo que perdemos com nossa ausência. O imigrante mora
no limbo, espécie de nenhures. Não se integra completamente ao país de adoção e
perde o elo com o país de origem. Em nenhures viverá o resto de seus dias.
E viva a América: versão um pouco diferente, mais curta
E viva a América: versão um pouco diferente, mais curta
Nossa, tia Du, que texto forte. Segurei as lágrimas aqui no trabalho. Muito bonito e intenso! Beijinhos! Clá
ResponderExcluirObrigada, querida! Beijinhos, Tia Du
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