sábado, outubro 03, 2015

Livre

Publicado também na KBR Editora Digital em 3 de outubro de 2015:
https://cronicasdakbr.kbrinternational.org/2015/10/03/livre/

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e
https://www.cronicasdakbr.com/2015/10/03/livre/



Já começaram a pipocar opiniões e previsões para os filmes que concorrerão ao prêmio anual da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, o Oscar 2016, que se realizará em fevereiro, com a entrega da estatueta indubitavelmente mais cobiçada do mundo do cinema. Tenho visto várias notícias sobre os candidatos e me chamou a atenção o filme que representará o Brasil na disputa pelo melhor filme estrangeiro.
Dirigido por Anna Muylaert e estrelado por Regina Casé no papel principal, o nome original do filme[1] é “Que horas ela volta?”, renomeado “The second mother” e “Une séconde mère”, entre outras. Irrelevante, mas não posso resistir à observação de que não é só no Brasil que são dados nomes completamente diferentes do original aos filmes estrangeiros.
            Apresentações feitas, passemos à sinopse já amplamente divulgada, portanto, sem risco nenhum de fazer alguma revelação que já não seja de conhecimento geral. Se o leitor, porém, não quiser ser influenciado por esta crônica, para ser um juiz imparcial, “por favor, pare, agora”... de ler.
            A personagem principal é Val, uma nordestina que vai para o sudeste, tentar uma vida melhor, deixando sua filha com o avô. Em São Paulo, ela se emprega como babá, numa família de classe média alta e se torna uma segunda mãe da criança. Após 13 anos, sua filha pede sua ajuda para estudar e entrar na universidade, e se hospeda na residência dos patrões de Val.   
O filme instiga à reflexão sobre questões da sociedade brasileira, como o papel dos pais em relação aos filhos, mostrando a saga das mães, representadas por Val e sua patroa, ambas distanciadas de seus filhos, para trabalhar.
A questão principal, no entanto, que sobressai como o foco do enredo, é a divisão de classes e o tratamento discriminatório dispensado às domésticas, tudo encoberto por uma mistura confusa e desordenada de sentimentos e valores; os patrões consideram Val como “quase da família”, mas não a tratam como alguém igual a eles. Sua filha, a nova hóspede, vem perturbar esse estado de coisas, com um comportamento que não segue os rituais vigentes que dividem os moradores da casa em duas categorias, a de patrões e empregados domésticos.
Quando a nova lei para regulamentar os direitos trabalhistas das domésticas entrou em vigor, em 2013, achei a iniciativa justa. Urgia regularizar esta situação vexaminosa, em que pessoas são tratadas e consideradas como inferiores. Embora isso não esteja claro para todos, pois muitos estão ainda dentro de um contexto herdado dos tempos da escravidão, a lei é realmente necessária para acabar de vez com essa sequela da nossa história.
Não é fácil nos livrarmos de condicionamentos estabelecidos durante séculos e compreende-se que muitas pessoas não consigam enxergar a necessidade dessas mudanças. O costume é tão arraigado, que se manifesta até mesmo na arquitetura brasileira, com os projetos sempre incluindo uma pequena senzala – os aposentos da empregada doméstica. Eu precisei viver em um outro país, para enxergar o disparate deste “pequeno” detalhe arquitetural das construções no Brasil.  
Forçoso é aceitar que não se podia manter uma situação anômala como esta, mas teria que ter sido pensado em prover o país de uma infraestrutura adequada à nova situação, antes de fazer vigorar a lei, pois muitas famílias não terão condições de arcar com as novas despesas e ficarão desestruturadas;  e isso vai gerar desemprego em massa no país.
Muitas vezes, cito o Canadá em meus textos, o que é natural, é onde moro. Espero não estar sendo maçante e, se puder tirar daqui bons exemplos que sirvam ao Brasil, imbuída do mais nobre espírito cívico, não hesitarei... Eia, sus!
Aqui, na esmagadora maioria da população, cada um cuida da sua casa, sem sequer por vislumbre, pensar em uma empregada doméstica. Cada família faz sua própria comida, sua própria faxina diária.
Quando os pais trabalham fora, deixam as crianças pequenas em creches, que existem aos montes, públicas e particulares. As crianças maiores estudam na escola o dia inteiro, então, não ficam sozinhas em casa. Para os idosos em perda de autonomia, há numerosos asilos, igualmente públicos e particulares e de variados níveis de cuidados. Existem também muitos serviços públicos oferecidos a pessoas doentes, no domicílio. E todas essas “facilidades” seguem regras rigorosas para o bem-estar do cidadão, sendo inspecionadas regularmente.
Há milionários que têm empregados, claro, mas certamente não é como no Brasil, pois a “cultura” é diferente; de qualquer forma, este não é um costume difundido na sociedade canadense.
Atualmente, existe uma tendência crescente à adaptação de casas para uso de duas gerações de uma família, "les maisons bi-générationales” ou “bi-generation houses". Cada família tem entrada independente, sua própria cozinha e banheiros também separados, mas há comunicação interna entre as duas moradias. Enquanto os pais ajudam financeiramente os jovens a terem seu próprio lar, os filhos ajudam os pais na velhice ou em caso de doença. Esta pode ser uma boa ideia para o Brasil também.
Para solucionar o problema do desemprego que esta lei brasileira vai desencadear e para restabelecer o funcionamento das famílias que vão se ver obrigadas a despedir suas empregadas, será necessário criar muitas creches e asilos. E repito, isso deveria ter sido feito antes de a lei entrar em vigor. Os empregados antes domésticos poderiam passar a trabalhar nesses estabelecimentos, assim não ficariam desempregados.
Não vai ser fácil, mas quando tudo estiver funcional, creiam, a mudança será para melhor. Palavra de quem já foi patroa brasileira: não tenham medo de ficar sem suas empregadas. A liberdade não será só para elas, para os patrões também. Palavra de quem é hoje canadense... livre.
Deu até vontade de cantar aquela música[2] “Born Free”...



           

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