sábado, agosto 15, 2015

A saúde vai bem, obrigado

Publicado também pela KBR Editora Digital em 15 de agosto de 2015
https://cronicasdakbr.kbrinternational.org/2015/08/15/a-saude-vai-bem-obrigado/
https://www.cronicasdakbr.com/2015/08/15/a-saude-vai-bem-obrigado/

Não, não me refiro ao sistema de saúde do Brasil nem do Canadá. É que na província de Quebec, a coisa anda tão complicada que resolvi, quase em desabafo, fazer um apanhado geral da situação, uma espécie de manual de instruções para um eventual usuário incauto, que venha se instalar por aqui, atendendo aos charmosos e atraentes recrutamentos feitos pelas Embaixadas e Consulados do Canadá, por esse mundo afora.

Estou especificando bem que se trata de Quebec, porque o assunto que vou abordar é saúde e aqui a assistência médica é da alçada do Ministério da Saúde de cada província e território. Como nunca morei em outras províncias, não posso dar testemunho, enquanto paciente, a respeito do que acontece no ROC – “Rest of Canada” (expressão usada pelos “Québécois, num antagonismo aos “Canadians”, os ingleses, sentimento que é recíproco – a versão canadense do “nós e eles”).

Longe de mim querer amenizar o que se passa no Brasil no quesito atendimento médico, mostrando que aqui também há problemas graves, mesmo porque a situação é muito pior lá, não resta a menor dúvida. Faço, porém, a prudente ressalva de que é pior não exatamente no que concerne aos médicos (do tempo em que eu ainda morava no Brasil), mas no contexto geral de falta de infraestrutura para atender às necessidades de uma população muito mais numerosa e com uma grande parcela em estado de pobreza. 

Mas vamos lá: como é que um cidadão “monsieur-madame-tout-le-monde” pode ser atendido por um médico na província de Quebec? Se já conseguiu ser um doente cadastrado, com um diagnóstico que demanda acompanhamento, aí os atendimentos seguintes são mais fáceis. Senão... 

Se for uma urgência, melhor ir de ambulância ao hospital, caso contrário, corre o risco de, após uma breve triagem feita por enfermeiros, ter que aguardar um dia inteiro na sala de espera e mesmo nem ser atendido por um médico.

Se não for tão urgente assim, há algumas opções, a saber:

- Se tiver um médico de família (que é um clínico geral), marcar uma consulta que, na melhor das hipóteses, será dentro de duas a três semanas. Consegui a proeza de ter um médico de família, coisa quase impossível por aqui, nos últimos anos. Nem me queixo de ter que viajar para me consultar – os médicos da cidade onde moro já estavam com sua “quota” completa. E não se atende nem meio paciente que ultrapasse a dita quota para a qual são pagos pelo governo, ou seja, pelo povo. 

A minha médica é muito ocupada; tentei marcar, certa vez, para uma consulta de “check-up” e fui informada de que ela estava com a agenda completa para os próximos 6 meses e que eu deveria telefonar de novo dentro de três meses, para tentar uma vaga, em data imprevisível.

- Se não tiver médico de família, ou teve a resposta que eu obtive (ver acima), procurar as clínicas sem marcação de consulta (cliniques sans rendez-vous). Antes, a gente chegava cedão e ficava na fila – recebia uma senha (até um certo ponto) e era atendido por ordem de chegada. Agora, para eliminar as filas, a gente tem que telefonar cedinho (ou na véspera, à noite, em algumas)... Ou seja, é mais ou menos “sans rendez-vous”. O telefone dá ocupado nos milhares de tentativas efetuadas e, quando atende, a funcionária apressada diz, secamente, que já está completo... “por favor, tente de novo amanhã”.

- Se conseguir passar pelo clínico geral (tem que ser o primeiro passo, obrigatoriamente), ele tenta resolver seu problema no menor tempo possível, com um mínimo irrisório de exames complementares e, se o caso tiver que ser encaminhado para um especialista, você é advertido de que, talvez, tenha que esperar não menos que um ano para ser avaliado.

- Se não conseguiu consultar ainda, após incontáveis tentativas, e tiver uma boa grana sobrando, pode procurar uma clínica particular, se houver uma na região. Isso não existia em Quebec, começou há alguns anos, completamente fora do controle do Ministério da Saúde. A conta sobe mais rápido que um foguete (um exemplo[1] : « Pour avoir un dossier à la clinique, les patients doivent débourser 110$ par année. Une urgence de 15 minutes coûte 80$, un rendez-vous de suivi de 20 minutes, 105$ et un bilan de santé de 30 minutes, 150$.») 

E, mesmo se houver uma clínica particular na região, corre o risco de não poder ser atendido no mesmo dia – tentei há um tempo atrás e não consegui. E nem para dia nenhum, pois não estavam mais aceitando novos "dossiers". Mesmo estando disposta a pagar. Quando vi quanto poderia custar, com a conta subindo a cada movimento do ponteiro do relógio, fiquei aliviada com a falta de disponibilidade.

Há quem diga[2] que o problema se deve à penúria de médicos de família. Mas eu tenho uma e não consigo me consultar, quando preciso. “Check-up”? Oublie ça.

Enquanto isso, há clínicas veterinárias em cada esquina, não teríamos dificuldade alguma para marcar uma consulta para a Totoche, nossa gatinha, nem no caso de uma urgência.

Aqui não existem aqueles convênios médicos, como no Brasil, pelos quais qualquer cidadão pode escolher um plano de saúde e pagar mensalidades, a fim de ter cobertura para consultas, exames complementares e internações, quando precisar. Algumas empresas têm convênios com planos de saúde para serviços oferecidos aos seus empregados, mas isso não muda em nada a maneira como se tem acesso a consultas. A única vantagem desses planos conveniados é cobrir serviços dentários e de oftalmologia, que não são cobertos pelo sistema público.

O Canadá está passando por uma fase de transição. Antes, só existia o sistema público de assistência à saúde. Pelo que ouvimos nos noticiários, os médicos alegam estarem sobrecarregados, apesar de ganharem um salário invejável e terem uma carga horária de trabalho privilegiada, no meu entender. Agora, estão aparecendo mais e mais clínicas particulares, mas as mudanças ainda não estão regulamentadas ao gosto de todos. Acho que vamos precisar de paciência... teremos que ser duplamente pacientes!

Nesse meio-tempo, tento ver o lado bom do que vivenciamos. Nesse caso específico, vejo a experiência pela qual estou passando como um exercício de desapego, muito útil para o autoaperfeiçoamento. Não é piada, estou falando sério. No Brasil, sempre trabalhei em hospitais, tinha muitos amigos e familiares médicos, tinha um bom plano de saúde, de modo que tinha fácil acesso a todos os serviços. Ao me estabelecer no Canadá, caí na vala comum dos mortais, com todas as dificuldades que enfrentam. Alguns poderão dizer, e até eu própria penso que foi bom para sentir na pele o que o povão brasileiro sofre. 

Em compensação, estou num país dentre os melhores do mundo em questão de qualidade de vida; com tudo o que acabei de relatar, parece piada também, mas não é. Aqui, pelo menos, não temos medo de sermos assaltados por bandidos da rua, nem do governo. A gente não pode querer ter tudo, não é?

Neste ano de 2015, houve uma pequena melhoria no atendimento, para mim, pois passei a ser uma “doente cadastrada”, portadora de um mal que necessita acompanhamento. Opa! Oba, não! Depois de reais longos e tenebrosos invernos, esperando uma chance de consultar minha médica, para o célebre “check-up”, por sorte ou azar – prefiro considerar que há males que vêm para o bem – meus exames acusaram hipotireoidismo: minha glândula tireóide está funcionando abaixo das expectativas. 

Voilà, matei dois coelhos de uma cajadada só: está justificada a minha preguiça e porque não consigo emagrecer – agora tenho uma boa desculpa! Mas não por muito tempo, pois já estou em fase de tatear qual dose do hormônio tireoidiano deverei tomar para controlar esse mau funcionamento. 

Há ainda um terceiro coelho que saiu da cartola: passei a ter direito a um atendimento sequencial, por uma super-enfermeira, que não é tão apressada como o coelho do país das maravilhas... nem como a minha lacônica médica, que é muito ocupada, como já disse. O atendimento intermediário pela enfermagem foi uma das saídas encontradas pelo sistema para aliviar o peso sobre os médicos. Espero que dê certo.

No final das contas, estou feliz da vida, pois já perdi alguns quilinhos, após o início do tratamento! Não tem jeito, as mulheres – sorry, nem todas – são mesmo escravas da vaidade!


                                                                                      

Nenhum comentário:

Postar um comentário