sábado, maio 16, 2015

Leite & Gentlemen

 Publicado também pela KBR Editora Digital:
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Todos os dias, passo por uma estrada que ladeia o terreno de uma propriedade. Incontáveis vezes tive que parar o carro para esperar um caminhão-cisterna enorme, longo, manobrar para entrar no local onde se abastece de leite, conforme se deduz da logomarca sobre a cisterna, única pista para se concluir que se trata de uma fazenda de gado leiteiro. 

Outro dia, vi uma vaquinha no pasto. Fiquei maravilhada! Depois de tantos anos passando por ali, sem jamais ter visto sequer um ser vivente, compreende-se a minha surpresa e alegria. Finalmente, vão deixar essas pobres criaturas tomarem um pouco de sol, pastarem na relva fresquinha, tenra, primaveril, pensei.


Que nada, alegria de bobo dura pouco. Ela estava, supostamente, com algum problema, então foi colocada do lado de fora para tomar um arzinho. A vaquinha não estava em pé, parecia repousar tranquilamente, com um olhar vago. O diminutivo é puramente afetivo, pois ela não tinha nada de pequena, muito menos suas tetas, enormes, que me chamaram a atenção. “Vaca louca” não parecia, ainda bem.

Parece que os criadores de animais aqui no Canadá, de um modo geral, incluindo os criadores de gado bovino, são muito criteriosos e escrupulosos ao cumprirem as leis que visam a assegurar o bem-estar dos bichinhos, ao mesmo tempo garantindo a produção mais eficiente possível. Verdadeiros “gentlemen”... er... da pecuária.

Há dois tipos de estábulo para vacas leiteiras no Canadá. No tipo tradicional, cada uma tem o seu próprio espaço, milimetricamente medido para que seja o suficiente, nem mais nem menos, para que ela possa se alimentar, se repousar e se deitar... E dali não sai. No tipo chamado “livre”, as vacas podem andar dentro de um galpão, enquanto não está na hora de ordenhar. Maquinarias modernas são usadas para retirar o leite, com cuidados de limpeza e uso adequado de medicamentos. Porém, ir lá fora que é bom, neca.

Dá até para compreender, pois o clima aqui é inclemente, com extremos de temperatura, e nos estábulos os animais ficam mais confortáveis, ao que parece, sob temperaturas apropriadas. Mas não deixa de ser uma situação diferente daquela que seria natural. 

Nessas condições “ideais”, a quantidade de leite retirado é muito maior do que seria se fosse para a amamentação de um bezerro. Os bezerros são separados da mãe tão logo nascem, para não prejudicarem o processo de ordenha. E a inseminação artificial para engravidar as vacas é feita sem trégua, para que sua produção leiteira não cesse. Dessa maneira, é comum começarem a apresentar problemas de saúde mais cedo, quando são enviadas aos matadouros, para o aproveitamento da carne.

Tudo leva a crer que aquela vaquinha que eu vi na relva estava aguardando a sua vez... de ser conduzida à sua última morada.

- A pergunta que não quer calar: será que isso é bem-estar mesmo? 

Cá entre nós, acho bem melhor ver o gado pastando na relva. Tão bom vermos os bezerrinhos e suas mães juntos, nos identificamos com eles. Prefiro ver os carros-de-boi e dizer: - Coitadinhos, olha o esforço que fazem para puxar tanto peso. Nós também fazemos esforços para viver e assim vamos dando sentido à nossa vida nesta dimensão. 

- Será que estou ficando velha demais, começando a apresentar alguma síndrome de rejeição à evolução da tecnologia?

O gado de corte parece levar uma vida mais livre por aqui. Os animais têm mais oportunidades de pastarem a céu aberto. Quando viajamos durante o verão, costumamos vê-los nas pastagens, livres nas campinas verdes. É uma visão que agrada, não associamos o que vemos ao fim que terão estas boas criaturas, nossas preferidas na cadeia alimentar.

Apesar de não ser vegetariana, estou cada vez mais compreendendo essa opção. Mas, na verdade, não temos escolha. Os vegetais também têm vida e nós a tiramos para nós, até que a natureza retome também a nossa. Enfim, nós também fazemos parte desse “pool” de energia e matéria que vai-se reciclando. 

- Que coisa! Sabia que o olhar vago daquela vaquinha ia dar nisso. Cá estou a escarafunchar ideias que me levam de volta ao “nosso estábulo”, de onde não podemos sair.

Embora tenha passado a maior parte da minha vida na cidade, francamente, gosto de assistir àquelas cenas cinematográficas do gado sendo conduzido por “cowboys” a cavalo. Isso ainda acontece aqui nestas paragens nórdicas e até viraram atração turística, principalmente nas províncias do oeste canadense, como Alberta. Além do trabalho propriamente de cowboy, eles também são esportistas e artistas dos rodeios, eventos que se transformaram em festividades milionárias nos meios rurais, envolvendo competições e espetáculos. 

Mas as fazendas especializadas em produção leiteira não têm graça nenhuma. O confinamento é a norma, para que a maior quantidade possível seja produzida, pois a demanda de leite cada dia aumenta mais. E não é só para uso indispensável. A lista de produtos fúteis, e até mesmo nocivos à saúde, que necessitam de leite na sua fabricação, na indústria de guloseimas, por exemplo, é uma coisa assustadora. 

Aquele caminhão-cisterna que vejo entrando na fazenda para ir recolher o leite “fabricado”, me incomoda muito mais do que pela sua manobra, que me faz parar o carro na estrada. 

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