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Todos os dias, passo
por uma estrada que ladeia o terreno de uma propriedade. Incontáveis vezes tive
que parar o carro para esperar um caminhão-cisterna enorme, longo, manobrar
para entrar no local onde se abastece de leite, conforme se deduz da logomarca
sobre a cisterna, única pista para se concluir que se trata de uma fazenda de
gado leiteiro.
Outro dia, vi uma
vaquinha no pasto. Fiquei maravilhada! Depois de tantos anos passando por ali, sem
jamais ter visto sequer um ser vivente, compreende-se a minha surpresa e
alegria. Finalmente, vão deixar essas
pobres criaturas tomarem um pouco de sol, pastarem na relva fresquinha, tenra,
primaveril, pensei.
Que nada, alegria de
bobo dura pouco. Ela estava, supostamente, com algum problema, então foi
colocada do lado de fora para tomar um arzinho. A vaquinha não estava em pé,
parecia repousar tranquilamente, com um olhar vago. O diminutivo é puramente
afetivo, pois ela não tinha nada de pequena, muito menos suas tetas, enormes,
que me chamaram a atenção. “Vaca louca” não parecia, ainda bem.
Parece que os criadores de animais aqui no Canadá, de um modo geral, incluindo os criadores de gado bovino, são muito criteriosos e escrupulosos ao cumprirem as leis que visam a assegurar o bem-estar dos bichinhos, ao mesmo tempo garantindo a produção mais eficiente possível. Verdadeiros “gentlemen”... er... da pecuária.
Há dois tipos de
estábulo para vacas leiteiras no Canadá. No tipo tradicional, cada uma tem o
seu próprio espaço, milimetricamente medido para que seja o suficiente, nem
mais nem menos, para que ela possa se alimentar, se repousar e se deitar... E
dali não sai. No tipo chamado “livre”, as vacas podem andar dentro de um galpão,
enquanto não está na hora de ordenhar. Maquinarias modernas são usadas para
retirar o leite, com cuidados de limpeza e uso adequado de medicamentos. Porém,
ir lá fora que é bom, neca.
Dá até para compreender, pois o clima aqui é inclemente, com extremos de temperatura, e nos estábulos os animais ficam mais confortáveis, ao que parece, sob temperaturas apropriadas. Mas não deixa de ser uma situação diferente daquela que seria natural.
Nessas condições
“ideais”, a quantidade de leite retirado é muito maior do que seria se fosse
para a amamentação de um bezerro. Os bezerros são separados da mãe tão logo
nascem, para não prejudicarem o processo de ordenha. E a inseminação artificial
para engravidar as vacas é feita sem trégua, para que sua produção leiteira não
cesse. Dessa maneira, é comum começarem a apresentar problemas de saúde mais
cedo, quando são enviadas aos matadouros, para o aproveitamento da carne.
Tudo leva a crer que
aquela vaquinha que eu vi na relva estava aguardando a sua vez... de ser
conduzida à sua última morada.
- A pergunta que não
quer calar: será que isso é bem-estar mesmo?
Cá entre nós, acho bem
melhor ver o gado pastando na relva. Tão bom vermos os bezerrinhos e suas mães
juntos, nos identificamos com eles. Prefiro ver os carros-de-boi e dizer: - Coitadinhos, olha o esforço que fazem para
puxar tanto peso. Nós também fazemos esforços para viver e assim vamos
dando sentido à nossa vida nesta dimensão.
- Será que estou
ficando velha demais, começando a apresentar alguma síndrome de rejeição à evolução
da tecnologia?
O gado de corte parece
levar uma vida mais livre por aqui. Os animais têm mais oportunidades de
pastarem a céu aberto. Quando viajamos durante o verão, costumamos vê-los nas
pastagens, livres nas campinas verdes. É uma visão que agrada, não associamos o
que vemos ao fim que terão estas boas criaturas, nossas preferidas na cadeia
alimentar.
Apesar de não ser
vegetariana, estou cada vez mais compreendendo essa opção. Mas, na verdade, não
temos escolha. Os vegetais também têm vida e nós a tiramos para nós, até que a
natureza retome também a nossa. Enfim, nós também fazemos parte desse “pool” de
energia e matéria que vai-se reciclando.
- Que coisa! Sabia que
o olhar vago daquela vaquinha ia dar nisso. Cá estou a escarafunchar ideias que
me levam de volta ao “nosso estábulo”, de onde não podemos sair.
Embora tenha passado a
maior parte da minha vida na cidade, francamente, gosto de assistir àquelas
cenas cinematográficas do gado sendo conduzido por “cowboys” a cavalo. Isso ainda
acontece aqui nestas paragens nórdicas e até viraram atração turística,
principalmente nas províncias do oeste canadense, como Alberta. Além do
trabalho propriamente de cowboy, eles
também são esportistas e artistas dos rodeios, eventos que se transformaram em
festividades milionárias nos meios rurais, envolvendo competições e
espetáculos.
Mas as fazendas
especializadas em produção leiteira não têm graça nenhuma. O confinamento é a
norma, para que a maior quantidade possível seja produzida, pois a demanda de
leite cada dia aumenta mais. E não é só para uso indispensável. A lista de
produtos fúteis, e até mesmo nocivos à saúde, que necessitam de leite na sua
fabricação, na indústria de guloseimas, por exemplo, é uma coisa assustadora.
Aquele
caminhão-cisterna que vejo entrando na fazenda para ir recolher o leite
“fabricado”, me incomoda muito mais do que pela sua manobra, que me faz parar o
carro na estrada.
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