quinta-feira, julho 07, 2016

Roda pião, bambeia pião





                “Deixa o pião rodar

Por mais tranquila que tenha sido a morte de minha mãe – se é que podemos falar em tranquilidade quando se trata de morte – por mais que saibamos que ela foi uma admirável longeva e que não poderíamos querer que ela vivesse mais do que os seus 99 anos e uns quebrados, tendo perdido qualidade de vida nos últimos anos; por mais que tenhamos nos conformado com a sua partida, há um luto real a sofrer, dure o tempo que durar. Há uma retrospectiva que a traz de volta, de tempos em tempos, mesmo que seja apenas na cabeça da gente... até que o tempo passe e deixe só uma cicatriz.
Já passei por vários tipos de luto; o da minha mãe parece ser o mais natural que estou atravessando, provavelmente pelo fato de ela ter vivido próximo do máximo que um ser humano pode viver e, portanto, ter sido o desfecho iminente previsível. Além disso, já tínhamos resolvido, ela e eu, todas as pendências afetivas entre nós. Obviamente, sempre haverá lágrimas por cair, quando penso nos beijos e abraços que poderiam ter sido mais frequentes e afetuosos, quando vem a vontade de dizer a ela, incontáveis vezes, que a amo...
As mães sempre são especiais para os filhos, dizer que a minha era especial é, no mínimo, coisa banal. Pois digo assim mesmo, a minha era especialíssima! Muito apropriado que eu assim a proclame, ela que era tão generosa em superlativos para com os outros. Entre tantas qualidades, hoje estou-me lembrando de que ela era portadora de uma capacidade de intuição extraordinária. Chegava a dar a impressão de que tinha aquilo que chamamos de “sexto sentido” ou, às vezes, até telepatia. Parecia um dom independente da sua vontade, ela não se esforçava, a coisa brotava como que do nada.
Sua “intuição” se manifestava no cotidiano e, às vezes, em sonhos. Sempre tentávamos interpretar como alguma coisa natural, por exemplo, algum tipo de transmissão de pensamento. A ciência ainda não conseguiu provar a existência desse fenômeno, tampouco descartar que isso seja possível; quem sabe algum tipo de onda seja emitida quando pensamos e possa ser transmitida a quem esteja na mesma sintonia e tenha habilidade de captar? Sabemos muito pouco para ter certezas, nossa ciência não passa de mera crença. Uma linda e promissora crença.
Por exemplo: um dia a ciência creu que o átomo fosse uma partícula elementar e afirmou isso; era uma crença, pois hoje sabemos que há outras partículas menores que o compõem, os prótons, nêutrons e elétrons, e outras menores ainda, os piões (píons), múons e neutrinos, formados por outras subpartículas. Tudo não passa de crença, a partir do que nossa ínfima inteligência consegue deduzir e perceber. À medida que evoluímos, novas ideias e novos elementos se descortinam. A metodologia é magnífica: postula-se a existência de uma partícula antes de comprová-la. É uma espécie de intuição que vai-se traduzindo em complexas equações.
Voltando à minha mãe... Desses episódios “especiais”, um caso me deixou intrigada. Não foi como nos outros em que ela aparentemente intuía. Na época, consideramos como um engano, talvez um lapso de comunicação.
Tinha eu obtido êxito em algum ponto do percurso normal da minha vida, uma etapa qualquer vencida, não me lembro mais qual, comum na vida de qualquer pessoa; mas para minha mãe, cada etapa que seus filhos venciam era motivo de muita alegria e agradecimento a Deus, como graça concedida. Ela havia, então, mandado celebrar missa em ação de graças.
Interessante é que, missa mesmo, não sei se mandava celebrar para tudo. Desta fiquei ciente, pois no dia da celebração, ela quis que fôssemos com ela, minha irmã e eu. Fazendo, agora, uma retrospectiva, concluo que isso já foi algo intrigante, pois não me lembro de que ela tenha insistido outras vezes para que fôssemos com ela a missas que mandava celebrar. E olhe que tinha “conta” na secretaria da Igreja Boa Viagem, em Belo Horizonte. Ela telefonava, marcava as missas e ia pessoalmente pagar a conta mensal.
Pois bem, fomos. Como de costume, o padre leu as intenções da missa em voz alta. Para nossa surpresa, o meu nome foi anunciado como de uma pessoa falecida, para cuja alma rogávamos a Deus perdão e salvação eterna. Ficamos perplexas, por alguns instantes. Em seguida, nos entreolhamos como se nos perguntássemos se tínhamos entendido a mesma coisa... Sem dizer nada, continuamos ali, até o final da missa; eu estava em estado de choque.
Segurei o choro tanto quanto pude, mas não consegui me conter ao chegar em casa. Minha mãe chorava também e me pedia desculpas. Coitada, ela não tinha culpa. Havia sido um mal-entendido; eram tantas missas em intenção de tantas almas na lista de minha mãe, que a secretária pensou que fosse mais uma e ali acrescentou meu nome. E, afinal, o que valia era a verdadeira intenção. Passou... aquele mal-estar se dissipou rapidamente, quase virou anedota. Eu estava viva.
Mas aquilo me marcou, não me esqueci. Mais tarde, anos depois, pensei se não teria sido um caso de intuição da minha mãe, daqueles que nem ela se dava conta do que se tratava. Estaria eu me distanciando da fé e ela, sem querer, me submeteu a um tratamento de choque? Não sei.
Considerando a nossa fraca ciência com jeito de crença, se o tempo é uma variável que nos ilude, e se existe alguma conexão com um estado de vida atemporal, pode ser que a intenção daquela missa tenha validade – eu creio que sim – para quando eu morrer nesta "ilusão" em que vivemos.
Do jeito que o mundo ao meu redor vai indo, ninguém mais acreditando em nada além do que somos capazes de perceber por aqui, tenho minhas dúvidas de que sobreviverá alguém de meus conhecimentos que se lembre de mandar celebrar missa em intenção de minha alma. Sendo assim, minha mãe já garantiu alguns pontinhos para mim. Ela fez o papel de um filho ou filha que não tive, que o faria. Mãe é mãe!

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