segunda-feira, fevereiro 27, 2017

Turbante e pertencimento

Não sou francesa, mas uso béret.


Não sou francesa, mas uso béret.


Quem não ouviu falar sobre o caso do turbante como apropriação cultural? Creio que não preciso nem relatá-lo aqui; quem não souber, basta escrever “turbante câncer” na pesquisa do Google e aparecerão dezenas de notícias sobre o assunto. Outro dia, li um texto sobre essa polêmica, que me tocou bastante, pois mencionou o elemento “pertença”, que tenho vivido muito intensamente, na minha condição de imigrante. Tive total empatia com o texto, que achei lindo e que me fez mudar um pouco meu ponto de vista (link abaixo).
Penso que os “brancos” da minha terra vão conseguir se identificar afetivamente com o caso do turbante, por tabela, através do que vou relatar sobre mim mesma.
A autora do tal texto fala sobre o turbante como um símbolo de pertencimento das negras, justificando a sensação de usurpação gerada pelo uso do acessório por uma branca. A princípio parece absurdo, a reação foi amplamente criticada. Mas não é completamente descabida.
Há tantos anos morando fora do Brasil, não sabia que os negros brasileiros estavam manifestando, ultimamente, esse sentimento de não-pertencimento. Nunca pensei que eles pudessem ter esse ressentimento, porque nem passava pela minha cabeça que fossem menos brasileiros do que eu e, também, porque eles não demonstravam isso antes. Sem falar na miscigenação generalizada que ocorreu no Brasil. Mas faz sentido. Eles nunca tiveram as mesmas oportunidades que os brancos, sequer moravam nos mesmos bairros. Sempre houve uma separação, não podemos negar isso. Além do mais, suas raízes ficaram como que apagadas, como a autora bem explica no seu texto.
Não sei se haveria o mesmo ressentimento no caso dos índios que não se miscigenaram, que vivem em comunidades próprias. Eles também não têm oportunidades iguais, mas imagino que a sensação deve ser diferente, pois eles se consideram os donos da terra, já que foram os primeiros a chegar; suas raízes estão ali mesmo. Mas também devem-se sentir excluídos da sociedade dominante, claro.
Voltando ao turbante... Para encurtar a história, vou logo contar um caso que aconteceu comigo aqui no Canadá, na província do Québec, onde vivo. Vale lembrar, antes de tudo, que uma primeira geração de imigrantes nunca é vista como a população local de um país e, mesmo que seja tratada civilizadamente, sempre há alguma observação sobre nosso sotaque, sobre notícias do nosso país de origem... enfim, sempre há alguma coisa para nos lembrar que não somos da mesma "praia".
Estando eu num desses típicos festivais que acontecem no verão, em áreas rurais, com música, dança, sorteios, jogos... De repente, tomei um susto danado ao ouvir uma música “nossa” sendo cantada em francês, com uma letra que falava sobre as belezas daqui. Minha vontade foi de gritar para todos que aquela música era nossa, não deles. Se fosse hoje, diria a expressão da moda, que era uma “apropriação cultural”. A minha revolta não era por direitos autorais – os autores da versão em francês devem ter pagado o direito de usar a música, claro. Não era isso. A minha reação foi pelo fato de que aquela música tão nossa estivesse sendo usada por eles, patrioticamente. Em vez de ficar contente por terem apreciado a música ao ponto de a adotarem, achei aquilo aviltante.
Embora mantendo-me calma e educada, não me contive completamente e falei com meu marido e alguns amigos nossos que aquela música era brasileira. Eles não disseram nada, mas notei os olhares, de magnânimos a estupefatos, diante das minhas explicações. Não rendi muito mais a conversa. Em situação de não-pertencimento, apesar de toda a validade da minha cidadania canadense, voltei ao meu silêncio de mera imigrante, cujas raízes estavam bem distantes, desconhecidas por eles.
Voilà, não é semelhante ao caso do turbante? Reconheço que foi uma infantilidade de minha parte. Já cheguei a pensar que eu tinha sido arrogante. Mas no fundo, no fundo, foi uma reação pueril, por me sentir inferiorizada, como se eu dissesse:
- Vocês não me consideram uma igual? Então, não cantem música do meu país, como se fosse sua.
Ou então:
- Estão vendo como sou importante? Vocês estão cantando música do meu país.
Em resumo, essa história da “apropriação cultural” acabou servindo para minhas próprias reflexões, para enxergar minhas fraquezas no espelho em que me vi, nesse caso do turbante.
O que quero dizer, finalmente, é que precisamos tentar sentir empatia, compaixão. Não vamos instigar ódios, vamos tentar parar de produzir danos entre nós. Vamos nos perdoar.
Não vou-me estender muito sobre isso, para que tenham tempo de ler o texto comovente da autora Ana Maria Gonçalves, no link abaixo, embora ache que ela ainda tem muito chão de perdão a percorrer, como nós todos temos:

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